domingo, 19 de fevereiro de 2012

O MUNDO DOS “ZUMBIS”




Por Laerte Braga*




O incêndio numa prisão em Honduras matou perto de 400 presos. O “presidente” Pepe Lobo foi à tevê e em rede nacional disse que ia determinar a apuração dos fatos, punir os responsáveis e assistir às famílias dos mortos. A mídia domesticada – corrupta – não fala em presos políticos, mas em criminosos comuns.

No extinto estado do Espírito Santo, hoje dirigido por um fantoche do líder da principal máfia política local, um estudante foi preso por protestar contra o aumento das tarifas dos transportes coletivos urbanos e levado para um presídio de segurança máxima onde ficou por sete dias.
Foi preso pelos “bravos” soldados da PM – uma aberração em se tratando de polícia – e acusado da posse de explosivos. Não existiam esses. A transferência para um presídio de segurança máxima é a típica atitude de “autoridade H2o”. Ou o “teje preso”.

Honduras, com a deposição do presidente Manoel Zelaya vive um regime de terror imposto pelas elites que governam o país desde sua fundação e hoje se subordinam aos EUA. Nos arredores de Tegucigalpa, capital, está a maior base norte-americana na América Latina, conhecida como “escola de golpes”.


Lá foram planejados e montados golpes militares em vários países latino-americanos, um governo fora dos parâmetros traçados por Washington – caso de Zelaya – seria um complicador sem tamanho para os Estados Unidos.

Pepe Lobo é o típico representante de uma elite tacanha, bisonha e que ainda não descobriu nem a roda e nem o garfo e a faca. O fogo sim. Usa-o para eliminar inimigos do regime, misturados a uns poucos presos comuns (que são seres humanos e têm direitos básicos) e aí, em rede de tevê, contando com a cumplicidade da mídia domesticada – caso GLOBO no Brasil, RECORDE, BAND, Folha de São Paulo, Veja, etc –, vende a idéia cristã e democrática que de fato preside Honduras e manda alguma coisa. Pode até mandar, mas depois de consultar o comandante da base norte-americana no país.
É mais ou menos como aqueles sargentos vendidos em massa pelos filmes patrióticos de Hollywood. Ironizados num anúncio de determinada marca de canos. Quem entra por esse tipo de cano são presos políticos. A avenida da “democracia” é pavimentada sobre corpos de adversários políticos e abençoada pelo crucifixo que criminosamente Pepe Lobo coloca ao alto do fundo que se presta ao seu discurso de “líder” cristão e democrático.

O governo de ultra-direita do Chile foi chamado a fornecer peritos para identificar os corpos carbonizados. O relatório final já está pronto, os “especialistas” vão apenas sacramentar a explicação do governo para a chacina.





Líderes católicos, entidades de direitos humanos denunciam a farsa e o crime hediondo. A mídia tradicional silencia.

O julgamento de Lindemberg Alves, um criminoso comum, vira manchete prioritária em todo o Brasil, na ânsia de alimentar a alienação dos “zumbis” conduzidos ao estilo Big Brother.

A prisão de um estudante em flagrante violação à lei num presídio de segurança máxima foi tão somente a costumeira tentativa de intimidar, coagir e assim buscar que os protestos contra o fantoche que imagina governar alguma coisa (Paulo Hartung governa o extinto Espírito Santo hoje um condomínio de máfias chamadas empresas), não aconteçam, os desmandos sejam acatados.
Notícias desse tipo de fato só fora da mídia de mercado. O silêncio é absoluto sobre assuntos assim. Tanto na mídia nacional, quando na estadual. São braços das quadrilhas.

Isso equivale a tratar o cidadão como objeto de segunda categoria na mentira de cada dia em redes de tevê, jornais e revistas.

Se listados os abusos – e são muitos os relatórios que condenam o Brasil por procedimentos abusivos de autoridades e polícia militar principalmente – contra direitos humanos, a quantidade de papel a ser gasta será absurda.

Pior que isso é o incitamento direto e indireto, via mídia, que direitos humanos são eufemismo para proteger criminosos. Abre espaços para barbáries em Honduras, no extinto Espírito Santo, em Guantánamo – campo de concentração montado pelos EUA em território ocupado de Cuba – e assim por diante. Mas vira “bandeira” quando um robô/jornalista defende assassinatos seletivos.

A afirmação feita pela presidente do Brasil Dilma Roussef que “direitos humanos não podem ser uma arma ideológica”, a despeito dos rumos do governo, é precisa, correta.

Chegou-se a um ponto que o robô/jornalista – Caio Blinder – defende publicamente numa rede de tevê via satélite a validade e a necessidade dos assassinatos seletivos praticados por serviços secretos norte-americanos e israelenses, como forma de defender a “democracia”, a “paz”. E é secundado por um foragido da justiça brasileira o jornalista Diogo Mainardi. Não há espanto e nem indignação por um disparate desses.

A dose de anestesia aplicada pela mídia paralisa o que William Bonner chamou de “Homer Simpson, o público/vítima desse tipo de informação.

É o grande desafio das forças populares. Acordar, despertar desse estado as pessoas que a cada dia mais marcham como “zumbis” numa ordem desordenada que mantém intactos privilégios e leva o ser humano a uma condição de objeto/abjeto.

Os ataques do governo sírio contra rebeldes e mercenários financiados pelos norte-americanos vão ser sempre violação dos direitos humanos e o são numa boa medida (pelo caráter ditatorial do governo). A destruição da Líbia em nome de interesses de empresas e bancos do cartel ISRAEL/EUA TERRORISMO S/A foram divulgados como “missão libertadora”. A desordem na Líbia após a “ajuda humanitária” da OTAN (braço do terror capitalista) é de tal dimensão que as tribos brigam entre si e forças remanescentes do governo de Kadafi começam a ganhar espaço.

Na Grécia, um levante popular, protestos e luta contra pacotes impostos por bancos e grandes corporações, que sugam mais ainda os trabalhadores são vistos como manifestações de inconformismo diante do “estupro inevitável”. A necessidade de salvar a Comunidade Européia. O que é isso a não ser um arranjo das classes dominantes?

Cada vez mais, em países considerados “democráticos”, o poder popular é menor. Limita-se ao voto na presunção que isso é o bastante e ato contínuo os governantes entram na imensa bolha do capitalismo e só retornam ao mundo dos “zumbis” quando for novamente a hora de votar.

Não há quem seja “zumbi” por vontade própria, pelo menos nessa condição. Mas há um claro processo de formação de legiões de “zumbis” dóceis, servis à ordem dominante e em caso de reação a borduna. Seja em Honduras, no extinto Espírito Santo, no Egito, em qualquer canto do mundo onde prevaleça a informação que defende “assassinatos seletivos” pela “paz” e pela “democracia”.

Laerte Braga é jornalista e colabora com esta nosssa Agência Assaz Atroz

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Miguel, um português urbano: "A crise, iniciada nos EUA, alastrou-se pela Europa"

“O socialismo do futuro terá as cores das sociedades que por ele optarem”

Miguel Urbano Rodrigues acredita que um socialismo humanizado abrirá ao homem a possibilidade de desenvolver todas as suas potencialidades e de se realizar integralmente, liberto das forças que o oprimem há milênios.

Por Nilton Viana



“O mundo está num caos em conseqüência da crise global do capitalismo”. Assim, o jornalista e escritor português Miguel Urbano Rodrigues define o atual cenário mundial. Para ele, a crise atual do capitalismo é estrutural. Segundo o escritor, a crise, iniciada nos EUA, alastrou à Europa e as medidas tomadas por Bush, primeiro, e Obama depois, em vez de atenuarem a crise, agravaram-na. “Os EUA, polo do sistema que oprime grande parte da humanidade, mostram-se incapazes de controlar os colossais défices do orçamento e da balança comercial”.

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Urbano diz que o grande capital pouco alterou as práticas criminosas e fraudulentas que originaram a crise. Para ele, a fatura é paga pelos trabalhadores que tiveram os seus salários brutalmente diminuídos e suprimidas conquistas históricas. Taxativo, afirma que as guerras fazem parte das alternativas imperialistas e que as agressões militares são sempre precedidas de uma campanha midiática de âmbito mundial. Embora avesso a profecias, Urbano acredita que o socialismo do futuro terá as cores das sociedades que por ele optarem de acordo com as suas tradições, cultura e peculiaridades de cada uma.

Brasil de Fato – O mundo vive hoje uma de suas maiores crises financeiras. Que avaliação o senhor faz dessa crise que tem se agudizado principalmente nos Estados Unidos e na Europa?

Miguel Urbano Rodrigues – O mundo está num caos em conseqüência da crise global do capitalismo. É uma crise estrutural. Nos países centrais a teoria da acumulação não funciona mais de acordo com a lógica do capitalismo e, na busca de uma solução, os Estados Unidos, polo hegemônico do sistema, multiplicam as guerras contra países do Terceiro Mundo para saquear os seus recursos naturais.

As medidas tomadas pelos governos, a seu ver, resolvem os graves problemas dessa crise? E o agravamento dessa crise, que é estrutural do capitalismo, a seu ver, irá enfraquecer ainda mais o imperialismo?

A crise, iniciada nos EUA, alastrou à Europa. As medidas tomadas por Bush, primeiro, e Obama depois, em vez de atenuarem a crise, agravaram-na. O objetivo foi salvar a banca, as seguradoras e grandes empresas à beira da falência como as da indústria do automóvel. Mais de mil bilhões foram investidos pelo Estado Federal nessa estratégia com resultados medíocres. Um volume gigantesco de dinheiro (os dólares emitidos) foi encaminhado para os responsáveis pela crise, enquanto a principal vítima, os trabalhadores estadunidenses, foi esquecida. Centenas de milhares de famílias perderam as suas casas, e o desemprego aumentou muito em consequência de despedimentos maciços. O grande capital pouco alterou as práticas criminosas e fraudulentas que originaram a crise. É significativo que o atual secretário do Tesouro, Thimothy Geithner, que goza da total confiança de Obama, seja um homem de Walt Street comprometido com as políticas de desregulamentação que tiveram efeitos funestos.

Na União Europeia, que é um gigante econômico mas um anão político, a estratégia adotada para enfrentar a crise foi diferente. A fragilidade do euro é inseparável do fato de o dólar ser, na prática, a moeda universal cujas emissões são incontroláveis. O Banco Central Europeu não pode imitar Washington.

A crise atingiu primeiro países periféricos, como a Irlanda, a Grécia e Portugal. A Alemanha e a França, que põem e dispõem em Bruxelas, sobrepondo-se à Comissão Europeia e às instituições comunitárias em geral, impuseram a esses três países “políticas de austeridade” orientadas para a redução drástica dos défices orçamentais e a salvação da banca. A fatura foi paga pelos trabalhadores que tiveram os seus salários brutalmente diminuídos, suprimidas conquistas históricas como os subsídios de Natal e de férias, enquanto setores sociais como a Educação e a Saúde eram duramente golpeados.

A Itália e a Espanha encontram-se também à beira de um colapso, na iminência de pedirem à Comissão Europeia e ao FMI uma “ajuda” que agravaria extraordinariamente as condições de vida da classe trabalhadora. Na Espanha o desemprego ultrapassa já os 21%.

A chanceler Merckel e o presidente Sarkosy estão, porém, conscientes de que os efeitos da crise atingem também perigosamente os seus países. O Reino Unido, fora da zona euro, não é exceção; teme igualmente o agravamento da situação.

Neste contexto o futuro do euro e da própria União Europeia apresentam-se sombrios. São a cada semana mais numerosos os políticos e economistas que preconizam a saída do euro de alguns países.

Obviamente, as tensões sociais na contestação ao sistema assumem características explosivas, sobretudo na Grécia, em Portugal, na Espanha e na Itália.

Os EUA e as grandes potências da União Europeia puseram fim às guerras interimperialistas, substituindo-as por um imperialismo coletivo. O senhor poderia explicar como têm se dado guerras?

O imperialismo evoluiu nas últimas décadas para responder à crise do capitalismo. As guerras interimperialistas que na primeira metade do século 20 devastaram a Europa e a Ásia não vão repetir-se; remotíssima essa hipótese. As contradições entre as potências imperialistas mantêm-se. Mas não são hoje antagônicas.

Um imperialismo coletivo – a expressão é do argentino Cláudio Katz – substituiu o tradicional.

Os seus contornos principiaram a definir-se na primeira guerra do Golfo e tornaram-se nítidos com as agressões aos povos do Afeganistão, do Iraque e da Líbia.

Hegemonizada pelos Estados Unidos, formou-se uma aliança tática de que participam o Reino Unido, a Alemanha e a França, além de sócios menores como a Itália, a Espanha, o Canadá e a Austrália, inclusive países da Europa do Leste, ex-socialistas.

Então é esse bloco imperialista que comanda o mundo hoje e fomenta as guerras?

A superioridade militar e tecnológica do bloco imperialista permite-lhe, com um custo de vidas reduzido, atacar e ocupar países do Terceiro Mundo para saquear os seus recursos naturais, nomeadamente os petrolíferos.

Isso ocorreu já no Afeganistão, no Iraque e na Líbia. Atinge agora a África com a intervenção militar dos EUA em Uganda. O Africa Comand, por ora instalado na Alemanha, anuncia a criação de um exército permanente para o continente africano, previsto para 100 mil homens.

Obama já afirmou que a “ajuda militar” (leia-se intervenção) ao Sudão do Sul, ao Congo e à República Centro Africana depende de um simples pedido a Washington.

As guerras têm sido as saídas para o capitalismo. Com essa crise, teremos novas guerras?

As agressões militares são sempre precedidas de uma campanha midiática de âmbito mundial. A receita tem sido repetida com algum êxito. Para impedir a solidariedade
internacional com os povos a serem alvo de agressões previamente planejadas e semear a confusão e a dúvida em milhões de pessoas nos países desenvolvidos, os Estados Unidos e seus aliados promovem campanhas de satanização de líderes apresentados como ditadores implacáveis, ou terroristas que ameaçam a humanidade. A invasão do Afeganistão foi precedida da diabolização de Bin Laden – definido como inimigo número 1 dos EUA – e a guerra do Iraque, da satanização de Sadam Hussein. No caso da Líbia, Kadafi , que um ano antes era recebido com todas as honras em Paris, Londres, Roma e Madri, e tratado com deferência por Obama, passou de repente a ser apresentado como um monstro sanguinário que submetia o seu povo a uma opressão cruel. O desfecho é conhecido: a aprovação pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) de uma “zona de exclusão aérea” para “proteger as populações”. Logo depois começaram os bombardeios de uma guerra que durou sete meses, definida como “intervenção humanitária”. Sabe-se hoje que a “insurreição” de Benghasi foi preparada com meses de antecedência por comandos britânicos e agentes da CIA, dos serviços secretos britânicos e franceses, e da Mossad israelense.

Como o senhor avalia as consequências dessa crise para os países pobres, do chamado Terceiro Mundo?

O custo destas agressões imperiais para os países por elas atingidos tem sido altíssimo. Não há estatísticas credíveis sobre as destruições de infraestruturas e o saque de bens culturais e sobre o número de mortos civis resultante das guerras no Afeganistão, no Iraque e na Líbia. Mas o saldo dessa orgia de barbárie ocidental ascende – segundo grandes jornais da Europa e dos EUA – a centenas de milhares.

A satanização de Bachar Assad e do seu exército gera o temor de que a intervenção imperial na Síria esteja iminente. Mas o grande “inimigo” a abater é o Irã. Motivo: é o único entre os grandes países muçulmanos que não se submete às exigências do imperialismo.

Israel ameaça atacar e incita os EUA a bombardear as instalações nucleares de Natanz. Obama conseguiu que o Conselho de Segurança aprovasse vários pacotes de sanções ao Irã, mas o Pentágono hesita em envolver-se numa nova guerra contra um país que dispõe de uma capacidade de retaliar ponderável. A invasão terrestre está excluída e o bombardeio das instalações subterrâneas de Natanz com armas convencionais poderia, na opinião dos especialistas, ser ineficaz.

O balanço das guerras do Afeganistão e do Iraque não é animador para a Casa Branca. O presidente Obama ao anunciar a retirada das últimas tropas estadunidenses do Iraque sabe que mentiu aos seus compatriotas. Num discurso eleitoreiro, triunfalista, que pode ser qualificado de modelo de hipocrisia, afirmou que os Estados Unidos alcançaram ali os objetivos previamente fixados. Na realidade a resistência prossegue e dezenas de milhares de mercenários substituíram as forças do Exercito e da Força Aérea. Mas qualquer previsão sobre futuras agressões é desaconselhável. Tudo se pode esperar da engrenagem do sistema imperial, comandado por um presidente elogiado como humanista e defensor da Paz quando, na realidade, a sua estratégia de dominação planetária configura uma ameaça sem precedentes à humanidade.

Como o senhor avalia o papel de organismos como a ONU, o FMI, o Banco Mundial e a OMC?

O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) são instrumentos do sistema imperial, criados para o servir. Quanto à Organização da Nações Unidas (ONU), há que estabelecer a distinção entre a Assembleia-Geral e o seu órgão executivo, o Conselho de Segurança. A primeira, representativa de quase 200 Estados, é uma instituição democrática, mas as suas resoluções somente produzem efeito se referendadas pelo Conselho de Segurança. Ora este, manipulado pelos EUA, com o apoio do Reino Unido e da França, funciona há muito como instrumento da vontade dos três, até porque a Rússia e a China, os outros membros permanentes, não têm exercido o direito de veto, com raríssimas exceções.

Como o senhor vê os protestos e as mobilizações que têm ocorrido em vários países, na chamada Primavera Árabe, na Grécia e nos Estados Unidos?

Em primeiro lugar é útil esclarecer que a expressão “Primavera Árabe”, muito divulgada pelos governos ocidentais e pela mídia é, por generalizante, fonte de confusão. Os levantamentos populares no Egito e na Tunísia foram espontâneos e inesperados para o imperialismo. Triunfaram ambos, provocando a queda de Hosni Mubarak e de Ben Ali.

No caso da Tunisia, a vitória de um partido islamista moderado nas recentes eleições não representa um problema para o imperialismo. Tudo indica que as relações dos Estados Unidos e os grandes da União Europeia com Tunis serão cordiais como eram com o governo da ditadura.

No Egito tudo permanece em aberto, porque o povo não aceitou o governo dos militares comprometidos com o imperialismo e continua a exigir a sua renúncia.
No Bahrein e no Iémen não houve qualquer “primavera”. Washington e os seus aliados abstiveram-se de criticar os regimes que eram alvo dos protestos populares. No tocante ao Bahrein, base da IV Frota da US Navy, os EUA manobraram de modo a que tropas sauditas e dos Emirados do Golfo invadissem o pequeno país e reprimissem com violência as manifestaçõesOs protestos populares na Europa e nos Estados Unidos contra regimes de fachada democrática, que na prática são ditaduras da burguesia e do grande capital apresentam também características muito diferenciadas.

O acampamento inicial dos indignados em Madri funcionou como incentivo a movimentos similares em dezenas de cidades da Europa e dos EUA. Esses jovens sabem o que rejeitam e os motiva a lutar, mas não definem com um mínimo de precisão uma alternativa ao capitalismo.

Inspirado pelos espanhóis, o acampamento de Manhattan, realizado sob o lema “Ocupem Wall Street”, alarmou a engrenagem do poder. A solidariedade de intelectuais progressistas como Noam Chomsky, Michael Moore e James Petras contribuiu para que o movimento alastrasse a muitas cidades.

No caso estadunidense, os protestos foram uma surpressa? Como o senhor analisa a reação do governo dos Estados Unidos a estas manifestações?

A reação da administração Obama foi inicialmente de surpresa. Mas perante a amplitude assumida pelo movimento recorreu a uma repressão brutal. As conseqüências dessa opção foram inversas das esperadas pelo governo. Os acontecimentos de Oakland, na Costa do Pacífico, demonstraram que a contestação é agora dirigida contra a engrenagem capitalista responsável pela crise que afeta 99% dos cidadãos e beneficia a apenas 1% , tema de um slogan que já corre pelo país. A profundidade do descontentamento popular é transparente. Uma certeza: alarma Obama e Wall Street.

Paralelamente aos protestos espontâneos referidos, desenvolvem-se na Europa outros, promovidos pelos sindicatos e por partidos revolucionários.

A greve geral de novembro, em Portugal, e as grandes manifestações de protesto ali realizadas traduziram não só a condenação de políticas de direita impostas por Bruxelas e a submissão ao imperialismo, com perda de soberania, como a exigência de uma política progressista incompatível com a engrenagem capitalista.

É sobretudo na Grécia que as massas exprimem em gigantescas e permanentes concentrações populares a sua determinação de lutarem contra o sistema capitalista até a sua destruição Quinze greves gerais num ano, empreendidas sob a direção de uma Frente Popular na qual o papel do Partido Comunista da Grécia é fundamental, os trabalhadores da pátria de Péricles batem-se hoje com heroísmo pela humanidade inteira.

Frente a esse cenário de crise mundial do capitalismo, qual a alternativa para os povos? Como o senhor vê o futuro da Humanidade?

A única alternativa credível à barbárie capitalista é o socialismo. O capitalismo conseguiu superar desde o século 19 sucessivas crises. Desta vez, porém, enfrenta uma crise estrutural para a qual não encontra soluções. Os EUA, polo do sistema que oprime grande parte da humanidade, mostram-se incapazes de controlar os colossais défices do orçamento e da balança comercial. Forjaram um tipo de contracultura monstruosa que pretendem impor a todo o planeta. Mas o declínio do seu poder é transparente e irreversível.

Por si só, as gigantescas reservas de dólares e os títulos do Tesouro norte-americano que a China e o Japão acumularam, estimados aproximadamente em dois mil bilhões de dólares, são esclarecedores da fragilidade da economia dos Estados Unidos, um colosso com pés de barro, hoje o país mais endividado do mundo.

Sou avesso a profecias de qualquer natureza. Mas creio que o socialismo do futuro terá as cores das sociedades que por ele optarem de acordo com as suas tradições, cultura e peculiaridades de cada uma – um socialismo humanizado que abrirá ao homem a possibilidade de desenvolver todas as suas potencialidades e de se realizar integralmente, liberto das forças que o oprimem há milênios.


Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português. Redator e chefe de redação de jornais em Portugal antes de se exilar no Brasil, onde foi editorialista principal do jornal O Estado de S. Paulo e editor internacional da revista brasileira Visão. Regressando a Portugal após a Revolução dos Cravos, foi chefe de redação do jornal do Partido Comunista Português (PCP) Avante!, e diretor de O Diário. Foi ainda assistente de História Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, presidente da Assembleia Municipal de Moura, deputado da Assembleia da República pelo PCP entre 1990 e 1995 e deputado da Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da União da Europa Ocidental, tendo sido membro da comissão política desta última. Tem colaborações publicadas em jornais e revistas de duas dezenas de países da América Latina e da Europa e é autor de mais de uma dezena de livros publicados em Portugal e no Brasil

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Os aeroportos e a privataria petista

Por Diego Cruz

Diego CruzGoverno do PT faz a maior privatização de sua história e entrega principais aeroportos do país ao capital privado. Com recursos do BNDES


• Na Bolsa de Valores de São Paulo, acionistas se alvoroçam em um mega leilão de privatização. Há quilômetros dali, no mesmo momento, tropas federais reprimem uma greve considerada ‘politica’. O que poderia muito bem ser um cenário típico dos anos 1990, em plena era FHC e auge do neoliberalismo financeiro, acontecia no dia 6 de fevereiro de 2012, no terceiro mandato consecutivo do PT à frente do Governo Federal.

Em meio à comemoração da grande imprensa ao que é considerada a maior privatização do PT, uma coisa é certa: a privatização dos três maiores aeroportos do país, que aglutinam no total 30% dos passageiros e quase 60% das cargas, representa um marco para o governo petista. A venda ocorre poucas semanas após o lançamento do livro ‘A Privataria Tucana’, do jornalista Amaury Ribeiro Jr. sobre as negociatas que envolveram as privatizações do governo do PSDB e que provocou até a aprovação de uma CPI na Câmara dos Deputados.

Como afirmou a economista Elena Landau, diretora de Privatizações do BNDES entre 1993 a 1994 ao jornal O Globo, “acabou o ‘FlaXFlu’ ideológico sobre privatização” . Segundo ela, “no governo do PT, a privatização teve a mesma característica de outras tão criticadas. ”. Não é à toa o clima de júbilo entre o tucanato. Além do uso dos fundos de pensão para a compra dos aeroportos, o governo vai financiar a venda através do BNDES, em um prazo a perder de vista. Ou seja, a privatização será financiada por dinheiro público, mas os lucros serão privados.

Modelo tucano
A venda dos aeroportos foi acompanhada diretamente por Dilma Roussef em seu gabinete, mas seguiu à risca o modelo tucano de privatização. Primeiro, precariza-se ao máximo a empresa ou o serviço público, a fim de preparar a opinião pública para a venda. Após isso, deprecia-se o preço para turbinar o ‘ágio’, ou seja, a diferença do preço mínimo do leilão e a quantia oferecida pelo consórcio e alardear a operação como um verdadeiro ‘sucesso’. E foi o que aconteceu.

A privatização do maior aeroporto do país, o aeroporto internacional de Guarulhos, foi efusivamente comemorada na imprensa. O leilão foi arrematado pelo consórcio Invepar, integrado pelos maiores fundos de pensão do país (Previ, Funcef e Petros) e a empreiteira OAS, junto a uma estatal sul-africana. Invepar já controla a Linha Amarela, Raposo Tavares, o Metrô Rio, Bahia Norte, Litoral Norte, além de 25% da CRT (Concessionária Rio-Teresópolis). A venda foi realizada por pouco mais de R$ 16 bilhões. O pagamento será feito em até 20 anos.

O aeroporto de Viracopos, em Campinas, foi arrematado pelo consórcio formado pela Triunfo Participações, Constran e a francesa Egisavia por R$ 3,8 bilhões, no prazo de 30 anos. Já o de Brasília foi para as mãos do consórcio controlado pela Engevis e pela argentina Corporación América, por R$ 4,5 bilhões. O governo autorizou o BNDES a subsidiar 80% do total de investimentos que as empresas se comprometeram a fazer nos aeroportos.

Setor lucrativo
O modus operandi da privatização dos aeroportos seguido pelo governo do PT segue à risca o modelo tucano dos anos 1990. Ao contrário da era FHC, porém, a conjuntura é totalmente distinta. O país passa por anos de crescimento econômico e um aumento da arrecadação proporcionalmente maior. A crise da dívida externa e a falta de divisas, que fez o país atrair capital estrangeiro para a compra das estatais, não mais existem, embora a dívida pública no total seja recorde hoje.

O único argumento que resta para que o governo Dilma privatize é a lógica neoliberal de que os principais setores da economia, inclusive os estratégicos e lucrativos, devem ser controlados pelo capital privado. Lógica que permaneceu no governo do PT. De acordo com a própria Infraero, Guarulhos, por exemplo, deu um lucro de R$ 770 milhões só em 2011, com uma movimentação diária de 160 mil pessoas e perspectivas de aumento no próximo período.

Com a privatização, a maior parte dos investimentos virá do BNDES, mas o lucro irá para os consórcios privados. E agora, o governo já coloca na mira dos investidores privados os aeroportos de Confins, em Minas, e o do Galeão, no Rio. Para os usuários, restará o aumento das tarifas, o que aconteceu em todos os aeroportos privatizados no mundo. “Geralmente aumentam o custo, as tarifas dos aeroportos, para fazer frente ao investimento necessário” , atestou à imprensa Carlos Ebner, diretor no Brasil da Associação Internacional de Transporte Aéreo.

Resta saber se Amaury Ribeiro abrirá um capítulo sobre a privataria petista em alguma reedição do livro.

Diego Cruz é Jornalista do Jornal do PSTU.

O fascismo dos "meninos do Rio"

Por Gilson Caroni Filho



Vítor Suarez da Cunha, o jovem de 21 anos, que teve 63 pinos implantados no rosto, deu uma magnífica lição de vida, de solidariedade humana. Muitos escreverão sobre sua atitude, mas nenhum texto será capaz de traduzir sua coragem, seu amor ao próximo, sua consciência de cidadania

O que há em comum entre uma moradora de rua agredida a socos e pontapés no Leblon, zona sul do Rio de Janeiro, por três homens de classe média que a acusam de quebrar o retrovisor do carro e Vítor Suarez da Cunha, jovem estudante brutalmente espancado ao tentar proteger um mendigo que apanhava de cinco delinquentes no bairro Jardim Guanabara, na Ilha do Governador? Ambos foram vítimas de um estrato social que tem como traço ideológico funesto a recusa da cidadania.

Em menos de uma semana, a violência de um segmento incapaz de distinguir o público e o privado, que tem na venalidade uma de suas marcas, que trata a rua como prolongamento da casa e do quintal, desconhece direitos sociais e políticos, menospreza a condição humana dos que não pertencem à sua geografia social, reiterou, em pontos do estado do Rio de Janeiro, o caráter fascista que lhe é inerente.

Para eles, a liberdade se reduz ao ato de escolher entre várias marcas do mesmo produto e a felicidade é o fim de semana em família esvaziando shopping centers, o consumo do Natal e o réveillon em uma boate "superluxo". A protegê-los, vigias, olhos eletrônicos, cães de guarda, grupos de extermínio e a polícia violenta que conhecemos, protetora de “gente de bem”. Quando se lançam em busca das ilusões perdidas, dão início a uma busca feroz, mostrando uma força ideológica assustadora.

Num tempo em que pessoas têm sua condição humana aviltada, morrendo como moscas, fatos como estes não podem, após algum tempo de exposição midiática, provocar, no máximo, bocejos. É preciso deixar de contentarmo-nos em sobreviver, de acreditar que "com a gente não acontece" ou, o que é pior, fazer da vítima o culpado. Recusar a indiferença, persistindo em chamar de acidente uma rotina de mortes e de mutilações, conhecida, anunciada e burocraticamente executada cotidianamente. Nas ruas do Leblon e do Jardim Guanabara, o que aconteceu foi um fato político. E como tal precisa ser combatido.

Como classificar o comportamento dos fascistas de "boa aparência”? Perversão? É pouco. Isto é sordidez, abjeção, cegueira de valores. Mais ainda: é sintoma de uma cultura que faz da sarjeta sua medida moral e que, pouco a pouco, destrói um legado histórico, construído com sacrifício de homens, de povos e de nações. O que está em jogo é a consciência de que a vida é um bem, cuja posse não temos o direito de negar a quem quer que seja. O que estamos esperando? Que a lei da oferta e da procura regule o mercado de massacres e extermínios?

A punição exemplar dos agressores, "gente de boa cepa", é fundamental para que não continuemos a ser uma sociedade moralmente idiotizada. A barbárie não pode continuar satisfazendo o apetite de quem faz do riso cínico a única saída para a impotência e a covardia. Os fascistas têm que saber que já não contam com o "jeitinho brasileiro" de lidar com o direito à vida e a dignidade física e moral de cada um. Do contrário, a certeza da impunidade continuará ampliando a lista de vítimas. Em um país democrático, não se confunde desejo de justiça com direito de vingança.

Vítor Suarez da Cunha, o jovem de 21 anos, que teve 63 pinos implantados no rosto, deu uma magnífica lição de vida, de solidariedade humana. Muitos escreverão sobre sua atitude, mas nenhum texto será capaz de traduzir sua coragem, seu amor ao próximo, sua consciência de cidadania. Ao afirmar que "faria tudo de novo se preciso fosse", torna-se um símbolo de que a luta política não só é possível como conta com bons combatentes.



Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Polícia no Brasil: uma força mal paga e com vestígios da ditadura

Por Por Claire de Oliveira | AFP – qua, 8 de fev de 2012

A greve dos policiais na Bahia reflete o mal-estar de uma corporação historicamente mal paga e coloca em evidência a necessidade de modernizar esta força que ainda utiliza métodos herdados da ditadura militar (1964-1985), segundo analistas.

Na terça-feira, as negociações para pôr fim à greve fracassaram, em meio ao cerco militar aos cerca de 200 policiais entrincheirados há uma semana no Assembleia de Salvador.

A paralisação da Polícia Militar gerou uma onda de saques, incêndios e mais de 120 assassinatos em nove dias, mais do que o dobro da semana anterior, o que obrigou o governo brasileiro a enviar tropas para garantir a segurança do estado.

Estes policiais militares armados (a PM) prometeram "resistir" se forem desalojados à força. Mais de mil soldados cercam a Assembleia desde domingo.

O Brasil tem uma das maiores taxas de homicídios do mundo - cerca de 40 mil por ano, segundo o Ministério da Justiça -, dois terços cometidos com armas de fogo. A esta violência soma-se a impunidade dos criminosos e a corrupção policial.

"No Brasil, o policial é mal pago e isto abre caminho para a corrupção. Está mal preparado e é violento e isso gera muito medo na população. Não foi educado para a democracia, continua sendo um produto da ditadura militar", disse à AFP Walter Maiorevitch, ex-secretário nacional antidrogas.

"O Brasil não pode ainda garantir a segurança pública em um Estado federal. São 27 estados dotados de seus próprios organismos policiais e judiciais que não se comunicam entre eles", acrescentou Maiorevitch.

Existem três tipos de forças de segurança no Brasil: a Polícia Federal (PF) - com melhor formação e mais bem remunerada - e as polícias Civil e Militar de cada um dos 27 estados.

Um projeto de unificação das polícias Civil e Militar aguarda há anos na Câmara.

"Temos um problema histórico de baixa remuneração. Houve promessas feitas durante a campanha eleitoral e depois Dilma Rousseff retrocedeu. Isto gerou insatisfação na polícia", disse à AFP Sandro Costa, da ONG Viva Rio, que milita pela paz e pelo desenvolvimento social.

Segundo Costa, "a tendência é que as reivindicações dos policiais aumentem" porque nos últimos meses a PM dos estados de Minas Gerais, Santa Catarina, Ceará e São Paulo já fizeram greve e obtiveram promessas de reajustes salariais até 2015.

"Agora o Rio se prepara; uma convocação de greve foi lançada para sexta-feira", acrescentou Costa, informando que Brasília é que possui os melhores salários, enquanto as do Rio estão entre as de salários mais baixos, 1.200 reais iniciais.

"O Congresso Nacional deve mudar a lei para reformular o treinamento e o monitoramento dos policiais", declarou o deputado estadual pelo Rio de Janeiro Marcelo Freixo, presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as milícias em 2008 e ameaçado de morte desde então.

"A PM responde a um código que data da ditadura militar. Além disso, não há representante do setor. Não fizemos uma transição democrática neste setor", disse.

Para a especialista em violência Alba Zaluar, da Universidade do Estado do Rio, "é evidente que a estrutura militar da PM e dos bombeiros não funciona mais".

"Sua formação é para a guerra, não para proteger o cidadão. Devem ter outra formação, com um plano de carreira. São militares, não podem se sindicalizar e sua situação salarial é complicada", completou.

A Guerra "Fria"

"Uma verdadeira aula de História.Muito bom!"(Ninféia G)

O mundo dividido em dois

Em meados do século XIX, quando o movimento operário começava a ganhar força, Karl Marx e Friedrich Engels anunciaram a chegada do fantasma do comunismo para assombrar as nações da Europa. Com isso, os dois pensadores e militantes do socialismo queriam dizer que, em pouco tempo, os trabalhadores organizados estariam varrendo do continente a sociedade burguesa e a ordem capitalista, implantando um mundo justo, solidário e fraterno. Sem ganâncias ou arrogâncias. O pesadelo da burguesia...

O "fantasma" apareceu, de fato, na revolução bolchevique de 1917, na Rússia. Sobre os escombros do velho império czarista - irremediavelmente abalado durante a Primeira Guerra Mundial - os revolucionários russos fundaram a União Soviética e começaram a construir o primeiro Estado e a primeira sociedade comunista da história contemporânea.

Aquele era um acontecimento intolerável para os governos dos países capitalistas. A vitória do socialismo na Rússia abria um precedente perigoso, que colocava em risco a ordem de exploradores e explorados, que eles se esforçavam por manter. Logo países como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos declararam guerra ao novo Estado, enviando contingentes armados para tentar sufocar já no berço a revolução bolchevique. Não conseguiram e, precocemente, tornaram-se inimigos declarados dos soviéticos.

Desde essa época, um permanente clima de hostilidade e desconfiança marcaria as relações entre norte-americanos e britânicos, de um lado, e soviéticos, de outro; parecia não haver um único ponto de concordância entre eles. Só uma situação muito excepcional poderia proporcionar algum tipo de aproximação entre adversários tão ferrenhos.



Teerã, dezembro de 1943



Foi uma situação assim que se apresentou no início dos anos 40. Em plena Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Josef Stalin, Winston Churchill e Franklin Roosevelt - representando, respectivamente, os governos da União Soviética, da Grã-bretanha e dos Estados Unidos - encontraram-se em Teerã, capital do Irã, para anunciar ao mundo sua união com o objetivo de derrotar aquele que consideravam seu inimigo comum, as forças do Eixo: Alemanha, Itália e Japão. Era a primeira vez que os líderes daqueles três países se encontravam numa reunião de cúpula.

Como era de se esperar, um clima de grande expectativa cercava o que se tornou conhecido como o encontro dos Três Grandes. Aquela união era sobretudo de caráter militar: destinava-se a combater as potências do Eixo, que tinham como objetivo declarado estender seu domínio a todas as nações do planeta, impondo um regime totalitário e racista. Isso não significava que as antigas divergências tivessem sido esquecidas pelos agora denominados Aliados. Churchill e Roosevelt continuavam a defender intransigentemente o capitalismo, da mesma maneira que Stalin o fazia em relação ao socialismo.

Tratou-se de uma aliança estratégica de regimes democráticos contra a tirania Nazi-fascista. Na URSS praticava-se a democracia do humano com uma ditadura sobre o capital – trabalho humano morto por definição; nos demais países, um regime de liberdade para o capital em detrimento das liberdades humanas. Esta diferença, finda a guerra, viria a evidenciar-se.

O encontro de dezembro de 1943 em Teerã, contudo, parecia representar um primeiro sinal de boa vontade. Os mais otimistas esperavam que daquela união militar evoluísse, gradualmente, uma nova relação de entendimento entre as grandes potências, assim que a guerra acabasse. A cooperação nos campos de batalha poderia dar origem a uma nova ordem internacional, baseada mais no diálogo que no confronto, capaz de impedir o surgimento de aventuras bélicas e expansionistas, como a do Terceiro Reich alemão e de seus aliados italianos e japoneses. Essa nova ordem internacional consagraria o princípio da autodeterminação dos povos, talvez através da criação de um novo organismo internacional, que cumpriria o papel originariamente atribuído à Liga das Nações. Esse organismo, amplamente reconhecido, teria legitimidade e força para estabelecer mecanismos de colaboração entre as nações e mesmo para arbitrar pacificamente eventuais disputas.

A declaração oficial redigida pelos três líderes reunidos em Teerã parecia justificar tais esperanças. Stalin, Churchill e Roosevelt concordavam em que seus países deveriam manter a cooperação mútua tanto naqueles tempos de guerra quanto na construção da futura paz. Ressaltavam que era necessário "banir por muitas gerações o flagelo e o terror da guerra". E antecipavam a chegada do dia "em que todos os povos da terra poderão viver livres, desconhecendo a tirania e de acordo com seus diferentes desejos e suas próprias consciências".

Antes disso, entretanto, havia uma primeira tarefa a ser realizada, e nela se concentravam agora os Três Grandes: era preciso vencer a guerra.

Ialta, fevereiro de 1945



A Segunda Guerra Mundial foi o confronto militar mais arrasador de todos os tempos. Há divergências quanto ao número total de pessoas que perderam a vida entre 1939 e 1945, em decorrência do conflito. Alguns autores falam em quarenta milhões de mortos. Mas o historiador estadunidense James Gormly eleva esse número para cinqüenta milhões, entre os quais cerca de 25 milhões de civis. Vastas regiões e um número enorme de cidades foram totalmente destruídas.

A ação conjunta e coordenada dos Aliados foi fundamental para a derrota dos países do Eixo. Enquanto a União Soviética mantinha o grosso da resistência às forças alemãs a leste, com largas perdas humanas (a URSS foi a Nação que mais mortos teve na guerra. Mais de 20 milhões de seres humanos...) coube a britânicos e norte-americanos abrir uma segunda frente de batalha a oeste, através do norte da França ocupada pelos nazistas. Os soviéticos faziam os alemães retrocederem de um lado, retomando zonas ocupadas, como a Bulgária, a Hungria e a Polônia. Ao mesmo tempo, a Grã-bretanha e os Estados Unidos planejavam um ataque pelo outro lado - desencadeado em 6 de julho de 1944, o famoso Dia D Sofrendo seguidas derrotas e cercado nas duas frentes, Hitler era forçado a recuar cada vez mais.

A derrota final da Alemanha parecia irreversível, e os Três Grandes decidiram encontrar-se novamente. Em fevereiro de 1945, Stalin, Churchill e Roosevelt reuniram-se em Ialta, na Criméia soviética, para uma nova rodada de conversações. Parte da pauta tinha a ver com questões essencialmente militares, como o acerto dos detalhes da ofensiva final contra a Alemanha e a possível participação das forças soviéticas, ao lado das norte-americanas, na luta contra os japoneses, no Pacífico. Mas, dessa vez, a antevisão da derrota total do Eixo forçosamente colocava em discussão, em termos mais concretos, a organização da ordem mundial no pós-guerra.

A idéia de criar um novo organismo internacional, com autoridade para servir como árbitro de eventuais disputas, foi formalmente aprovada pelos três líderes. A Organização das Nações Unidas - como foi chamada a nova entidade - assumiria a tarefa de julgar situações de confronto, sugerir caminhos diplomáticos para sua solução pacífica e, se necessário, adotar medidas drásticas, como o bloqueio econômico contra as nações que resistissem a suas deliberações. Parecia um bom começo.

No entanto, à medida que novos tópicos iam sendo discutidos, foram emergindo diferenças de opinião que colocavam Stalin em oposição a Churchill e Roosevelt. Stalin achava, por exemplo, que a Alemanha, como a grande responsável por aquela guerra desastrosa, deveria pagar aos Aliados vinte bilhões de dólares, a título de reparação. Metade desse valor caberia à União Soviética, o país mais atingido pelo conflito. Churchill foi contra, argumentando que medida semelhante, no final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), havia resultado no enfraquecimento econômico da Alemanha e na criação do clima político no qual surgira a tenebrosa liderança de Adolf Hitler.

Polêmica maior, contudo, estava reservada para o último item da pauta do encontro de Ialta: a questão da Polônia. Tendo tomado aos nazistas o território polonês - na realidade, todo o Leste europeu -, os soviéticos haviam entregado o poder no país a lideranças políticas comunistas. O Governo de Lublin, como ficou conhecido o novo governo polonês, tinha à frente antigos simpatizantes do regime soviético, como Boleslaw Bierut e Wladyslaw Gomulka. Churchill, com o apoio de Roosevelt, argumentava veementemente que os britânicos haviam entrado na guerra já em 1939, muito antes dos soviéticos, justamente por conta da covarde agressão de Hitler à Polônia. Stalin, por sua vez, lembrava que a Polônia havia sido libertada com o sangue dos soldados soviéticos, não dos britânicos.

Havia mais nessa discussão que a simples preocupação com o destino do povo polonês. Por trás dos eloqüentes duelos verbais, insinuava-se a idéia tradicional de que cabe aos vencedores de qualquer guerra o direito de controlar os territórios conquistados aos perdedores, anexando-os ou estabelecendo neles governos de sua confiança. A questão foi provisoriamente resolvida quando Stalin afinal concordou com a realização de eleições livres na Polônia, no prazo de um mês.

O saldo final da conferência não deixou de ser produtivo, e os Três Grandes marcaram um novo encontro, a ser realizado após a derrota final alemã. Mas, para além da cordialidade protocolar, os três líderes sabiam que o previsto desaparecimento do fator de sua união - a ameaça nazi-fascista - abria um novo tipo de jogo entre eles. Aproximava-se o momento de definir o novo mapa do mundo, em termos de influência política. Da habilidade dos jogadores e do tipo de compromisso estabelecido entre eles, dependeria a estabilidade internacional no pós-guerra. Apenas uma coisa parecia certa: a próxima conferência seria crucial.

Potsdam, julho de 1945

Divergências à parte, numa coisa Churchill e Stalin haviam concordado plenamente em Ialta: na observação de que Franklin Roosevelt parecia inusitadamente abatido. Pálido e muito magro, o presidente norte-americano tinha a aparência de um homem com a saúde seriamente abalada, muito distante da imagem do líder vigoroso de outros tempos. Talvez isso explicasse sua participação discreta na conferência, quase totalmente dominada pelos outros dois líderes. De fato, Roosevelt estava no fim de suas forças; dois meses depois da conferência de Ialta, em abril de 1945, ele morria vitimado por uma hemorragia cerebral.

Foi um choque para os norte-americanos. O desaparecimento do presidente praticamente coincidia com a etapa final da guerra na Europa. Naquele mesmo mês de abril, as tropas soviéticas finalmente ocuparam Berlim, levando Hitler ao suicídio. No início do mês seguinte, as forças alemãs renderam-se aos Aliados. Tendo comandado o país nos anos difíceis da guerra, Roosevelt não sobrevivera para participar da comemoração pela vitória total contra o nazismo.

O lugar de Roosevelt foi ocupado por seu vice, Harry S. Truman. Figura até então relativamente apagada no cenário político norte-americano, Truman não imaginava que um dia chegaria à Presidência. Sua indicação como companheiro de chapa de Roosevelt, na eleição presidencial de 1944, havia acomodado a disputa entre outros candidatos mais expressivos, dentro do Partido Democrata; seu papel deveria ser apenas o de ocupar figurativamente a vice-presidência, até que Roosevelt terminasse seu quarto mandato consecutivo. Agora, cabia exatamente a ele conduzir o país até a vitória final contra a última potência do Eixo que ainda resistia, o Japão, e defender os interesses norte-americanos na montagem da nova ordem internacional.

A segunda tarefa parecia a mais difícil. Truman sempre fora ignorado por Roosevelt nas discussões estratégicas e na tomada das decisões mais importantes. Só ao assumir a Presidência, por exemplo, ele tomou conhecimento de um dos segredos mais bem guardados pelo governo norte-americano: o de que este, desde alguns anos, vinha investindo volumes maciços de recursos num projeto secreto, destinado à criação de um novo tipo de arma - a bomba atômica. (Sobre o assunto, ver, dos mesmos autores, O brilho de mil sóis - História da bomba atômica, Coleção História em Movimento, Ática, 1994)

Subitamente elevado à Presidência, na realidade Truman recebeu informações ainda parciais sobre o esforço nuclear norte-americano, então em curso. As perspectivas pareciam bastante animadoras: previa-se que aquele novo tipo de bomba seria a arma mais arrasadora de todos os tempos, com um poder de destruição incomparavelmente maior que o das armas convencionais. E isso daria aos Estados Unidos uma superioridade militar absoluta entre todas as nações do mundo. No entanto, ainda não se sabia se o modelo então em desenvolvimento de fato funcionaria e, se o fizesse, com que potência. Foi dito ao presidente que os cientistas que participavam do projeto secreto estavam fazendo tudo para preparar, tão rapidamente quanto possível, um teste experimental decisivo.

Truman logo compreendeu o significado daquelas informações. Se de fato a arma funcionasse, os Estados Unidos seriam a única superpotência: teriam não só um formidável recurso militar, mas também um poderoso elemento de pressão política. Que país ousaria afrontar diretamente os interesses norte-americanos, sob a ameaça implícita de ser atacado por bombas como aquela? Era exatamente o que Truman precisava para ir à conferência dos Três Grandes e fazer prevalecer suas posições. A bomba era o argumento decisivo para levar Stalin a retroceder em suas pretensões de controlar novos territórios, limitando a experiência socialista à União Soviética.

A terceira conferência entre os líderes aliados foi marcada para o mês de julho de 1945, em Potsdam, subúrbio de Berlim. A escolha do local já trazia, em si, uma forte carga simbólica. Tomada aos nazistas, Berlim encontrava-se agora sob administração conjunta das forças aliadas, em uma

Alemanha dividida em quatro zonas de ocupação - sob controle de soviéticos, norte-americanos, britânicos e franceses. Era no coração daquele país derrotado e retalhado que os vencedores vinham se encontrar para partilhar os territórios conquistados e definir a ordem mundial em tempos de paz.



O fim da aliança



Ao chegar a Potsdam, em 15 de julho, Truman ainda não sabia se a bomba atômica funcionava ou não. Apesar de todo o empenho dos cientistas em realizar o experimento antes que o presidente embarcasse para a conferência, o teste só pôde ser realizado no dia 16, no deserto de Alamogordo, região isolada do estado do Novo México, nos Estados Unidos. Imediatamente após o teste, o presidente teve as primeiras informações: êxito total. Poucos dias depois, Truman recebeu um relatório mais detalhado do coordenador-geral do Projeto Manhattam, o general Leslie Groves. Suas palavras mal continham o entusiasmo:

“o efeito [da explosão] bem poderia ser chamado de inaudito, magnífico, maravilhoso, estupendo e terrível. Nunca antes um fenômeno provocado pelo homem revelou força tão tremenda. [..] Palavras são instrumentos inadequados para descrever aos que não estavam presentes os efeitos físicos, mentais e psicológicos. É algo que precisa ser visto para ser compreendido.”

O presidente foi informado ainda de que aquela única bomba explodira com urna potência equivalente a 18 mil toneladas de TNT* - fato que assombrou mesmo os militares mais experientes. Era tudo o que Truman esperava ouvir.

Ao longo de suas 13 sessões plenárias, a conferência de Potsdam deixou algumas coisas bastante claras. A primeira delas: o que antes era visto como a união dos Três Grandes se transformava rapidamente na disputa entre apenas dois - Estados Unidos e União Soviética. Abalada econômica e militarmente, a Grã-Bretanha tinha pouco cem que afirmar sua posição além dos rasgos de oratória de Winston Churchill. Se havia vencedores naquela guerra com força suficiente para ditar os termos da nova situação mundial, estes eram os norte-americanos e os soviéticos. Ao velho e declinante império britânico, parecia estar irreversivelmente reservado o papel de potência de segunda importância. A posição da Grã-Bretanha tornou-se ainda mais frágil quando, em plena conferência, Churchill acabou sendo substituído por Clement Attlee. Derrotado nas eleições britânicas, cujos resultados só então foram divulgados, Churchill havia perdido o cargo de primeiro-ministro.

Mas a grande marca da conferência de Potsdam seria seu caráter inconclusivo. Em termos gerais, os pontos de divergência entre norte-americanos e soviéticos ultrapassavam muito os de convergência. Dificilmente sairia dali um compromisso claro e satisfatório para as partes envolvidas. A desconfiança mútua abria um fosso cada vez maior entre eles: Stalin não revelava a menor intenção de retirar suas tropas do Leste europeu, como queriam os norte-americanos; estes, por sua vez, resistiam a várias reivindicações do líder soviético. Entre elas estavam o estabelecimento de uma nova fronteira ocidental para a Polônia, formada pelos rios Óder e Neisse, incorporando partes do território alemão (a chamada Linha Óder-Neisse) e, de novo, o pedido de reparações. Também não se chegou a um acordo com relação ao futuro imediato da Alemanha; o clima de disputa impediu a concretização da proposta de controle unificado do país. Pelo menos temporariamente, cada zona de ocupação seria administrada separadamente.

Mais do que qualquer outra coisa, em Potsdam tornou-se claro que a aliança dos anos de guerra não sobreviveria em tempos de paz. Alguns acordos de importância secundária foram obtidos, o que ajudou a salvar as aparências em termos protocolares. Nem mesmo a efetiva criação da Organização das Nações Unidas - cuja assembléia de fundação ocorrera em 26 de junho, reunindo representantes de cinqüenta países - parecia capaz de mudar aquele quadro.

Para Harry Truman, contudo, a maior surpresa tinha sido o fracasso de sua tentativa de intimidar Stalin com o anúncio de que os Estados Unidos agora dispunham da bomba atômica. Em vez de se tornar mais manejável - termo usado pelo secretário de Estado de Truman, James Byrnes, para prever o recuo do líder soviético -, este persistira obstinadamente em suas posições e reivindicações.

Na realidade, Truman não contara novidade alguma a Stalin. Havia muito o serviço soviético de espionagem o vinha informando sobre a existência e o desenvolvimento do Projeto Manhattam. Os soviéticos já tinham até iniciado seu próprio projeto nuclear, coisa de que Truman nem sequer suspeitava.

A fase da diplomacia parecia definitivamente encerrada. Se a mera comunicação da existência da nova arma não havia feito a União Soviética retroceder em sua pretensão de controlar novos territórios no Leste europeu, talvez uma demonstração prática de seu poder de destruição o fizesse.

Hiroshima e Nagasaki, agosto de 1945

Cinco dias após o encerramento da conferência de Potsdam, em 6 de agosto de 1945, a cidade portuária japonesa de Hiroshima foi subitamente arrasada por uma bomba de urânio, jogada por um bombardeiro B-29 norte-americano. Em poucos minutos, morreram pelo menos 78 mil pessoas. O efeito continuado das queimaduras e da radiação, contudo, fez muitas outras vítimas nos anos seguintes. Estima-se que em 1950 foi atingida a quantidade total de duzentos mil mortos - quase dois terços da população da cidade no dia do ataque.

Em 9 de agosto, três dias depois do bombardeio a Hiroshima, foi realizado um segundo ataque, desta vez à cidade de Nagasaki. Ali uma bomba de plutônio matou pelo menos setenta mil pessoas - número que, cinco anos depois, se elevava a 140 mil mortos. Aturdido pelo golpe inesperado, o governo japonês não teve alternativa a não ser a rendição incondicional às forças norte-americanas.

Os ataques a Hiroshima e Nagasaki certamente serviram para colocar um ponto final na guerra. Mais do que isso, porém, serviram para revelar ao mundo - à União Soviética em particular - a extensão do poderio bélico atingido pelos Estados Unidos. Tratava-se, na realidade, de um recado a Stalin: os norte-americanos não hesitariam em usar a arma toda vez que seus interesses políticos fundamentais estivessem em jogo. O monopólio nuclear deveria levá-los naturalmente a uma posição de primazia na condução dos assuntos internacionais.

Alguns autores localizam exatamente aí o inicio da chamada guerra fria. Teria sido a partir de Hiroshima e Nagasaki que as tentativas de diálogo entre norte-americanos e soviéticos foram definitivamente substituídas por demonstrações de força e ameaças indiretas. Daí em diante, os caminhos da negociação diplomática ficariam obscurecidos pelas sombras de Hiroshima e pela ameaça de uma nova aventura belicista. Já no final dos anos 40, P. M. S. Blackett, físico britânico envolvido nos projetos de desenvolvimento de armas nucleares, declarava em tom grave que "o lançamento da bomba atômica não foi tanto o último ato militar da Segunda Guerra Mundial, foi mais o primeiro da guerra fria diplomática com a Rússia".

O mundo dividido em dois

A partir daí, as relações entre as duas grandes potências vencedoras da guerra deterioraram-se com grande rapidez. Curiosamente, não foi Truman, mas Churchill, o primeiro a anunciar publicamente a ruptura política entre os antigos aliados. Recebido pelo presidente norte-americano, o ex-primeiro-ministro britânico proferiu em Fulton, Missouri, em março de 1946, um discurso que se tornaria famoso, no qual atacava a União Soviética e o domínio que esta agora exercia sobre o Leste europeu:

“Uma sombra se abateu sobre o cenário até há pouco iluminado pelas vitórias aliadas. Ninguém sabe o que a Rússia soviética e sua organização comunista internacional pretendem fazer no futuro imediato, ou quais são os limites - se é que eles existem -para suas tendências expansionistas e proselitistas. [...J De Stettin, no Báltico, até Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o continente. Atrás dela estão todas as capitais dos antigos países da Europa central e do Leste europeu [..J. Não importa que conclusões possamos tirar desses fatos - e fatos eles são -, esta certamente não é a Europa livre que lutamos para construir Tampouco é uma situação capaz de proporcionar uma paz duradoura.”

O discurso indicava claramente que, uma vez superado o inimigo nazista, a União Soviética passava a ser vista como a nova ameaça à liberdade e à democracia, valores que os países capitalistas afirmavam defender. A tarefa desses países agora era conter, a qualquer preço, o que consideravam o perigo comunista.

Tal posição foi definitivamente assumida pelo governo norte-americano no ano seguinte, com o lançamento da chamada Doutrina Truman. Temendo que a Grécia e a Turquia caíssem sob domínio soviético, Truman anunciou em discurso ao Congresso sua disposição de auxiliar financeiramente tais países, como forma de mantê-los na esfera capitalista. Para o presidente, os Estados Unidos tinham não só o direito, mas o autêntico dever de intervir nesses e em quaisquer outros casos em que as ameaças do "terror e da opressão" se fizessem presentes. Na realidade, Truman nem sequer mencionou diretamente os soviéticos em seu discurso, mas o clima político vigente não deixava dúvidas sobre a quem ele se referia.

Pouco depois, as linhas da Doutrina Truman deram origem a um novo programa, conhecido como Plano Marshall. Formulado pelo então secretário de Estado de Truman, George C. Marshall, o plano estendia o auxílio econômico norte­-americano a todos os países da Europa ocidental - inclusive às ex-inimigas Alemanha e Itália. A idéia era fortalecer esses países, cuja economia estava abalada pela guerra, para que tivessem condições de resistir a eventuais avanços soviéticos. Além disso, foi organizada em 1949 uma aliança militar, com o objetivo específico de proteger a Europa ocidental da ameaça comunista - a Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN. Liderada pelos Estados Unidos e formada pelos países capitalistas europeus, além do Canadá, a OTAN declarava, no texto de seu acordo de criação, que "um ataque armado contra um ou mais membros da aliança, na Europa ou na América do Norte, será considerado um ataque contra todos". O recado aos soviéticos não podia ser mais claro.

O bloqueio de Berlim

Stalin, por sua vez, reagiu à ofensiva. Em 1947 promoveu a criação do Kominform, organismo destinado a unificar a ação dos partidos comunistas e dos governos do Leste europeu sob sua direção, naturalmente. Dois anos depois procurou criar uma versão própria do Plano Marshall através do Comecon, conselho planejado para incrementar o auxílio econômico mútuo entre os países do bloco comunista. A consolidação de sua presença no Leste europeu dependia apenas da solução a ser encontrada para a Alemanha.

Em 1948, após três anos de seguidos desentendimentos sobre o destino a ser dado ao pais, os soviéticos determinaram um bloqueio a Berlim, que ficava dentro de sua zona de ocupação, mas também estava dividida. Três quartos da antiga capital alemã - a parte ocidental - ainda estavam sob domínio das forças britânicas, francesas e norte-americanas. Com o bloqueio, Berlim Ocidental passou a receber apoio e suprimentos através de um corredor aéreo, uma linha de comunicação por avião montada especialmente para isso.

A crise, que elevou perigosamente a temperatura das relações entre os Estados Unidos e a União Soviética, acabou resultando na divisão da Alemanha em dois países, em 1949: República Federal da Alemanha, sob controle norte-americano, e República Democrática Alemã, sob controle soviético. À semelhança do meridiano de Greenwich, que divide o globo terrestre e marca os fusos horários, a linha que agora dividia o mundo capitalista do mundo comunista passava por cima do antigo território alemão. E a divisão da Alemanha transformou-se no símbolo mais forte da impossibilidade de acordo entre Estados Unidos e União Soviética.

O mundo saíra da Segunda Guerra Mundial dividido em dois. Restava apenas esperar que a crescente oposição entre os dois lados não resultasse em uma nova guerra. Os norte-americanos, de qualquer maneira, acreditavam que seu poderio bélico - conquistado através da posse isolada da bomba atômica - afastaria os soviéticos de um confronto direto. Pelo menos do ponto de vista militar, o Ocidente estava bem defendido.

O ano de 1949, contudo, reservava uma última surpresa. No início de setembro, Harry Truman foi informado de que a União Soviética acabara de realizar com êxito um teste nuclear no deserto do Cazaquistão, próximo à cidade de Semipalatinsk. A novidade deixou o presidente perplexo: estava encerrado o monopólio nuclear norte-americano. Os soviéticos também dispunham da bomba atômica.

A notícia fechava a equação da guerra fria. O mundo do segundo pós-guerra era dominado por duas superpotências rivais e absolutamente incompatíveis. Estava claro que um lado não se sentiria totalmente satisfeito a menos que obtivesse a rendição incondicional do outro. Mas ambos possuíam armas nucleares, o que significava que um confronto entre eles poderia levar o planeta a um desastre de proporções globais. Era nesse terreno literalmente explosivo que a humanidade deveria caminhar nas décadas seguintes.

A “cruzada” pelo capitalismo

Os Estados Unidos da América chegaram ao segundo pós-guerra numa posição nova em sua história: a de superpotência mundial. Antes disso, o país era internacionalmente reconhecido como uma força emergente, mas ainda marginal em termos de influência política. O balanço de poder até então vigente consagrava o tradicional predomínio das potências européias.

Estas, no entanto, chegaram ao final da Segunda Guerra Mundial absolutamente esgotadas do ponto de vista econômico e militar, portanto político. Mesmo a vitoriosa Grã-Bretanha já não tinha condições de se impor como antes. Das cinzas da guerra surgira uma nova ordem mundial, muito diferente da que vigorara até os anos 3O. No núcleo dela estavam agora os norte-americanos: no complexo jogo das relações internacionais, seus interesses e seus pontos de vista passavam a ocupar uma posição central. O mundo teria que se habituar a ouvir e acatar a retórica e as posições dos Estados Unidos.



O significado da guerra



Ironicamente, o governo dos Estados Unidos havia resistido por um bom tempo à perspectiva de envolver o país na guerra. Sustentando a princípio uma posição de isolacionismo, o presidente Roosevelt encarava o conflito como um assunto essencialmente europeu, que devia ser resolvido pelas partes diretamente envolvidas - alemães e italianos de um lado, ingleses e franceses de outro. Além disso, os Estados Unidos enfrentavam sérios problemas internos, decorrentes da crise de 1929*, o que desaconselhava sua intervenção em cenários externos. Roosevelt fora eleito pela primeira vez em 1932, prometendo reerguer a economia norte-americana; no final dos anos 30, sua prioridade administrativa continuava a ser o desenvolvimento do amplo programa de recuperação interna, conhecido como New Deal.

Mas o assustador avanço da Alemanha nazista, somado à agressão japonesa à base norte-americana de Pearl Harbour, no Havaí, em dezembro de 1941, praticamente forçou os Estados Unidos a entrarem na guerra ao lado de britânicos e soviéticos. A decisão de recorrer à força das armas logo se revelaria surpreendentemente lucrativa: mais que à vitória nos campos de batalha, a mobilização nacional dos anos de guerra levou à superação definitiva da crise econômica interna. No final de 1945, os norte-americanos podiam comemorar orgulhosamente não só o total êxito militar, mas também o fato de que a produção industrial havia duplicado durante seu envolvimento no conflito.

Tudo isso teve um custo, evidentemente. Cerca de trezentos mil soldados norte-americanos morreram na Segunda Guerra. Mas esse número parecia pouco expressivo, em comparação com as perdas de outros países. A contabilidade final da guerra revelava por exemplo que, para cada norte-americano morto, pelo menos cinqüenta soviéticos tinham perdido a vida. Além disso, os Estados Unidos não haviam tido seu território invadido, como a União Soviética, ou suas cidades bombardeadas, como a Inglaterra. O preço por aquela vitória fulgurante parecia, em termos comparativos, bastante baixo.



Um novo inimigo



A pujança econômica e militar, capaz de sustentar uma influência política em escala praticamente global, portanto, dava aos norte-americanos motivos para viver um clima de intenso otimismo no imediato pós-guerra. Vitorioso em todos os sentidos, o país via chegar o momento de assumir o papel de grande líder internacional na reconstrução da ordem mundial em tempos de paz.

Uma sombra, contudo, obscurecia tal otimismo. A vitória na guerra fora obtida ao lado de um parceiro cada vez mais incômodo, a União Soviética. A inclusão dos soviéticos na aliança que derrotou o nazi-fascismo havia sido fundamental, em termos militares: dificilmente Hitler seria vencido sem a participação do Exército Vermelho. Mas o reconhecimento desse fato não significava que os Estados Unidos estivessem, agora, dispostos a partilhar fraternalmente com os soviéticos o prestígio e a liderança política que haviam conquistado. Afinal, a União Soviética sempre representara - e continuava representando - a negação de todos os princípios políticos considerados básicos pelos norte-americanos: em lugar da democracia, a ditadura; em lugar da livre iniciativa, o planejamento econômico centralizado; em lugar da liberdade de escolha e de pensamento, a sujeição do indivíduo ao Estado. Em termos ideológicos, dificilmente poderia haver oposição maior do que a que existia entre Estados Unidos e União Soviética.

Como se não bastasse, Stalin apresentara, ao final da guerra, a inabalável disposição de estender seu controle a novas regiões, impondo o comunismo aos países do Leste europeu. Para os analistas do governo norte-americano, isso nada tinha a ver com justiça ou direito a reparações; significava, na verdade, o início de um plano destinado a levar o regime comunista a todas as regiões do planeta. Não era exatamente isso o que, no século anterior, previra Karl Marx, o grande inspirador ideológico do regime soviético?

Levando tal lógica adiante, os mesmos analistas chegaram a uma conclusão surpreendente: ao contrário do que imaginavam os ingênuos e os desavisados, na realidade a guerra não havia terminado. A derrota do nazi-fascismo representara apenas uma primeira etapa na luta maior contra os adversários da liberdade e da democracia. Essa luta estava longe de ter chegado ao fim; o "mundo livre" era agora ameaçado por um novo e poderoso inimigo, talvez ainda mais temível que o anterior: o movimento comunista internacional, organizado, patrocinado e disseminado pela União Soviética.

O que tornava os soviéticos tão atemorizantes não era apenas o fato de que dispunham de uma formidável máquina militar, como se revelara o Exército Vermelho durante a guerra. O pior, aos olhos do governo norte-americano, era a crença de que eles pareciam dispostos a levar adiante seus planos de conquista através de outros métodos, diferentes dos da guerra convencional. O novo inimigo não mostrava a face, mas infiltrava seus agentes nos partidos políticos, na imprensa, nos meios de comunicação, nas escolas, nos lares. A estratégia seria a de enfraquecer e dividir para depois conquistar, destruindo assim o "mundo livre".

Assim, nessa nova etapa da guerra, as armas seriam bem mais sutis que os tradicionais canhões e bombas. À medida que os países capitalistas ou da esfera de influência capitalista fossem se enfraquecendo ante essa verdadeira guerra psicológica, os soviéticos os iriam anexando um a um, instalando neles governos de sua confiança, como no Leste europeu.

Ora, os Estados Unidos não poderiam assistir a tudo isso passivamente; cabia ao país uma responsabilidade moral correspondente à sua posição de liderança: a de enfrentar decididamente e sem tréguas a "ameaça vermelha". Nessa fase da guerra, travada nos bastidores, longe das trincheiras - por isso denominada guerra fria - os norte-americanos deveriam estar permanentemente alertas contra todas as manobras do inimigo.



Fobia anticomunista



A crença de que os soviéticos estavam empenhados num diabólico plano secreto para dominar o mundo foi rapidamente irradiada do governo norte-americano para a população do país. O grande combate contra o comunismo ocorreria em todas as partes e de várias formas, mas era preciso começá-lo em casa. Era preciso descobrir quem, dentro dos Estados Unidos, simpatizava, colaborara ou operava de acordo com os planos de Moscou. Gradualmente, a perseguição aos comunistas - ou aos que parecessem ser comunistas - tornou-se a grande obsessão nacional.

Nos anos do imediato pós-guerra, havia um clima de autêntico pânico coletivo. Se o inimigo se infiltrava por todos os lados, então todos eram suspeitos até prova em contrário. Quem poderia garantir que o próprio vizinho não era, disfarçado, um perigoso espião a serviço do movimento comunista internacional, sustentado e cuidadosamente treinado pela União Soviética?

O primeiro passo, portanto, era identificar os comunistas infiltrados. Com esse objetivo, foi desenvolvida toda uma campanha, que contava até com filmes oficiais, veiculados diariamente nos cinemas, nas escolas e naquela novidade que se tornava cada vez mais popular, a televisão. Um desses filmes ensinava:



“Para reconhecer um comunista, as aparências podem enganar [..] Se alguém lê ou sustenta publicações comunistas, talvez seja um comunista. Se apóia organizações com doutrinas comunistas, ou organizações assim consideradas por Washington, talvez seja um comunista. Se defende as atividades dos paises comunistas e critica sistematicamente a política interna e externa dos Estados Unidos, talvez seja um comunista. Mas se alguém faz tudo isso ao mesmo tempo, certamente é um comunista.”



O segundo passo, naturalmente, era procurar banir quem fosse identificado como comunista. Qualquer um assim considerado passava a ser visto como um verdadeiro perigo público: perderia o emprego e seria cuidadosamente segregado, quando não hostilizado diretamente. Empregar ou exibir laços de amizade com comunistas não eram apenas atos impatrióticos, mas acima de tudo atos suspeitos. Manter qualquer tipo de ligação com elementos subversivos significaria, no fundo, simpatia pela subversão. O comunismo era encarado como um mal contagioso, que exigia o rigoroso isolamento do indivíduo contaminado.

Nesse trabalho de vigilância, alguns setores deveriam receber atenção redobrada, em especial aqueles ligados às artes, ao ensino, à divulgação de notícias e ao movimento sindical. Acreditava-se que a partir daí os simpatizantes da União Soviética disseminariam seus ataques aos valores tradicionais norte-americanos.

Além das organizações patrióticas que passaram a se multiplicar por todo o país, o próprio Congresso mobilizou-se para enfrentar o perigo vermelho. Uma comissão especial ali criada já em 1945 o Comitê de Atividades Anti-Americanas - passou, principalmente a partir de 1947, a investigar a vida de figuras públicas suspeitas de subversão, convocando-as para depor em audiências abertas. Se não concordasse em participar desses depoimentos ou não pudesse explicar satisfatoriamente aos rigorosos inquiridores eventuais ligações ou simpatias com a esquerda, o suspeito tinha a carreira encerrada: ele não mais encontraria trabalho nos Estados Unidos. Os grandes estúdios de cinema, por exemplo, recebiam periodicamente da comissão uma relação - conhecida como lista negra - com os nomes dos roteiristas, diretores e atores a serem banidos. Muitos deles nunca mais voltariam a atuar profissionalmente.

Mesmo figuras aparentemente acima de qualquer suspeita foram investigadas e condenadas. O físico Robert Oppenheimer, antes encarado como um verdadeiro herói nacional por sua decisiva participação no desenvolvimento da bomba atômica, teve de enfrentar um processo em 1953 - era acusado de traição, de manter ligações clandestinas com movimentos de esquerda e de realizar espionagem pró-soviética. Não foram obtidas provas de tais acusações mas, daí em diante, a carreira de Oppenheimer entraria em franco declínio. Ele só seria parcialmente reabilitado dez anos depois, ao receber um prêmio das mãos do presidente Johnson.

O grande articulador da campanha anti-subversão no Congresso foi o senador Joseph McCarthy, que logo ganhou notoriedade nacional como "caçador de comunistas". McCarthy, de fito, parecia ser capaz de enxergar subversão em toda parte: suas bombásticas declarações incluíam denúncias até contra integrantes do governo e das Forças Armadas norte-americanas. Em 1953, ele atacou o próprio presidente Eisenhower (eleito no ano anterior), que a seu ver não vinha promovendo com a eficiência necessária a eliminação de funcionários suspeitos de subversão. O macarthismo - movimento assim batizado em referência a seu coordenador e inspirador - chegou a promover cerimônias públicas de queima de livros considerados pró-comunistas.



A bomba



A crença de que agentes soviéticos procuravam se infiltrar por todos os lados era apenas uma das faces do clima de pavor anticomunista vivido pelos norte-americanos. Desde 1949, quando a União Soviética realizou seu primeiro teste nuclear, havia também o receio de que os soviéticos subitamente decidissem utilizar a bomba atômica.

Gradualmente, foi se cristalizando na opinião pública dos Estados Unidos a idéia de que a União Soviética preparava em segredo um fulminante ataque nuclear contra o território norte-americano, a ser desencadeado sem prévio aviso. Imaginava-se que os impiedosos soviéticos não hesitariam em cometer assassinato em massa, como parte de seu projeto de conquistar o mundo. A crença de que o apocalipse nuclear poderia acontecer a qualquer momento - talvez dali a cinco minutos - acentuava o clima de pânico.

A montagem de abrigos subterrâneos antiatômicos tornou-se um dos ramos mais lucrativos da indústria de construção civil nos anos 50: nenhuma família se sentiria totalmente protegida a menos que contasse com um deles em sua casa. A Defesa Civil, por sua vez, desenvolveu esquemas de emergência, a serem imediatamente ativados caso alguma cidade norte-americana fosse vítima de um ataque nuclear.

Assistindo à televisão, as crianças aprendiam como deveriam agir, caso tal ataque fosse realizado. Um personagem de desenho animado - Burt, a tartaruga - repetia as instruções: "Jogue-se ao chão, cubra os olhos!" Outro filme, também repetido à exaustão, dava mais detalhes:



“Este é Tony, um escoteiro mirim. Tony sabe que a bomba pode explodir a qualquer momento. Mas ele está preparado: jogue­-se ao chão, cubra os olhos! Muito bem, Tony! O clarão da bomba exige reflexos rápidos! [...J Tony sabe o que fazer - não se desespera, nem sai correndo. Fica parado, até o perigo passar A Defesa Civil virá socorrê-lo. Ela nos protege em caso de ataque nuclear. Devemos obedecer suas instruções. Devemos saber nos abrigar também nos ônibus escolares ou coletivos: jogue-se ao chão, cubra os olhos! E afaste-se das janelas, por causa dos cacos de vidro!”



Preparar a população para o caso de um ataque atômico era apenas uma das medidas a serem tomadas. Outras tinham a ver com a conquista de uma superioridade nuclear inquestionável em relação à União Soviética. Se os Estados Unidos não eram mais o único país a dispor de bombas atômicas, então que ao menos possuísse mais e melhores bombas. O governo passou a investir um volume cada vez maior de recursos no desenvolvimento de novos modelos de bombas nucleares, sempre mais poderosas.

Em novembro de 1952, finalmente, foi realizado o primeiro teste com a bomba de hidrogênio, também conhecida como bomba H. Ao contrário da que tinha sido jogada no Japão em 1945, baseada no principio da fissão nuclear*, a bomba de hidrogênio funciona com base na fusão nuclear* - o que implica uma explosão muitas vezes mais destrutiva. A primeira bomba H, que explodiu no teste realizado na ilha de Elugelab, no atol de Eniwetok, no Pacífico, tinha uma potência quase mil vezes superior à da bomba de Hiroshima. No futuro seriam desenvolvidos novos modelos de bomba H, ainda mais poderosos. Nenhum preço parecia alto demais na luta contra a subversão em escala internacional.

A “cruzada” pelo capitalismo

A idéia de que seu papel era o de empreender uma guerra sem tréguas contra o comunismo soviético passou a orientar todas as ações do governo norte-americano desde o imediato pós-guerra. Internamente, os instrumentos para tanto eram a perseguição indiscriminada a ativistas de esquerda e o desenvolvimento de campainhas alarmistas junto à população. Em termos externos, a norma passou a ser o apoio irrestrito aos governos alinhados com a política anticomunista de Washington e o combate aos governos que se recusassem a seguir o mesmo caminho. Convencidos de que a nova ordem internacional lhes atribuía o papel de defensores da ordem capitalista, os norte-americanos passaram a intervir nos assuntos internos de outros países.

Isso, contudo, não podia ser feito sempre abertamente. Naquele ambiente político tenso, algo como o desembarque de soldados norte-americanos para derrubar um governo não-alinhado constituiria uma provocação direta a Moscou. Os soviéticos poderiam sentir-se autorizados a fazer o mesmo para defender esse governo, sob o risco do confronto nuclear entre as superpotências.

A solução foi o desenvolvimento de um tipo de ação invisível aos olhos do público -ás chamadas operações encobertas. Para tanto, foi criada a Central Intelligence Agency (CIA), um serviço secreto capaz de agir eficazmente no exterior. Recrutando milhares de agentes, técnicos, analistas e informantes, a CIA tornou-se o instrumento secreto de intervenção dos Estados Unidos no cenário externo durante todo o período da guerra fria.



O caso Rosenberg

Certo de que espiões comunistas haviam passado os segredos da construção da bomba atômica aos soviéticos, o governo norte-americano promoveu uma investigação que culminou com a execução do casal Rosenberg, em 1953. Julius e Ethel Rosenberg eram, de fato, militantes comunistas, e durante a guerra haviam convencido o irmão de Ethel, David Greenglass, que trabalhava no Projeto Manhattam, a desviar informações sigilosas para serem repassadas aos soviéticos. Mas as informações reunidas por Greenglass eram de importância absolutamente secundária; certamente não foi a partir delas que a União Soviética desenvolveu a bomba atômica. Mesmo assim, o casal Rosenberg foi condenado à morte e executado na cadeira elétrica. O presidente Eisenhower, que poderia ter transformado a pena em prisão perpétua, relembraria depois em suas memórias que estava então determinado a fazer do caso um exemplo de como o governo dos Estados Unidos tratava aqueles que considerava traidores e espiões.

Desde o início, a CIA procurou aliar o máximo de eficiência com o mínimo de visibilidade pública. Poucas pessoas notaram que, escondido entre as diversas leis que o presidente Truman enviou ao Congresso para aprovação, em 1947, estava um discreto parágrafo que autorizava o governo a criar uma agência de serviço secreto para operar no exterior. Subordinada diretamente à Presidência da República, o único escalão a quem devia prestar contas de suas ações, a CIA encontrou amplo espaço para expandir-se e desenvolver suas operações.

A primeira delas foi feita já em 1948, na Itália. Naquele ano foram realizadas eleições gerais no país, em uma campanha na qual os comunistas pareciam ter razoáveis chances de vitória. Sigilosamente, a CIA promoveu uma campanha de desmoralização do Partido Comunista Italiano e de apoio ao Partido Democrata Cristão - que acabou vencendo as eleições.

As próximas operações da CIA, contudo, iriam além da mera interferência em processos eleitorais. Passaram a incluir planos de assassinato de políticos de esquerda, apoio a golpes de Estado, estímulo à formação de governos militares de direita e reforço dos órgãos policiais de repressão política.

Para o governo norte-americano, existia um motivo para tudo isso. Em sua luta permanente contra o comunismo soviético, os Estados Unidos consideravam-se como verdadeiros cruzados em defesa do capitalismo e da democracia.

A favor do socialismo

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas chegou ao segundo pós-guerra numa posição nova em sua história: a de superpotência mundial. Antes disso, o primeiro - e até então o único - Estado socialista do planeta havia sofrido um implacável processo de marginalização, num cenário internacional dominado pelas nações capitalistas. Estas haviam primeiro tentado derrubar seu governo revolucionário, depois promoveram seu isolamento político e econômico.

A participação da União Soviética na Segunda Guerra Mundial servira para revelar ao mundo a extensão de seu poderio militar. Mesmo sofrendo grandes perdas, o país contribuíra decisivamente para a derrota do nazi-fascismo. Dentro da ordem internacional que agora se estabelecia, a presença, os interesses e os pontos de vista dos soviéticos não poderiam mais ser ignorados - quisessem ou não os países capitalistas. O mundo teria de se habituar a ouvir e acatar a retórica e as posições da União Soviética.



O significado da guerra



Apesar de tudo, o governo soviético havia resistido por um bom tempo à perspectiva de envolver o país na guerra. Para Stalin, a principio aquele era um conflito capitalista, que devia ser resolvido por quem o havia iniciado - os países capitalistas. A União Soviética nada tinha a ver com as disputas entre alemães e italianos de um lado, ingleses e franceses de outro. Se eles queriam assassinar-se uns aos outros em sua luta por mercados e influência política, que o fizessem - mas que deixassem os soviéticos fora disso. Era justamente para ficar tão longe quanto possível da guerra que, em agosto de 1939, Stalin havia firmado um pacto de não-agressão com aquele que parecia o mais bélico dos líderes europeus: Adolf Hitler.

Além disso, a União Soviética vivia uma fase particularmente decisiva em sua revolução. Enfrentando todos os obstáculos e resistências internas, o governo de Stalin conduzia com mão de ferro um processo de coletivização das propriedades agrícolas e de industrialização acelerada do pais, consideradas metas prioritárias para a construção do socialismo. Em 194O, havia sido atingida a marca de quase 97% de coletivização no campo, com a substituição de propriedades privadas por kolkhozes (fazendas coletivas controladas pelo Estado). Pouco antes, a União Soviética, um país predominantemente agrário mesmo depois da revolução de 1917, chagara à posição de terceira nação industrial do mundo, uma marca impressionante pela rapidez com que fora conquistada. Tudo isso, naturalmente, havia exigido sacrifícios enormes do povo soviético: dezenas de milhões de camponeses que haviam resistido à coletivização, por exemplo, tinham sido transferidos de região, presos ou mortos. Mas, pelo menos para Stalin, esse era o preço a ser pago em nome do socialismo. Agora era o momento de consolidar a revolução internamente, e não de participar de aventuras no exterior.

A determinação de ficar fora da guerra, contudo, foi por terra em junho de 1941, quando Hitler desencadeou um ataque de surpresa contra a União Soviética. Em pouco tempo, a avassaladora ofensiva nazista colocou sob domínio alemão vastas regiões do território soviético, como a Bielo-Rússia e parte da Ucrânia e da Criméia. As tropas de Hitler chegaram a conquistar posições a cerca de trinta quilômetros de Moscou. Foi preciso um tremendo esforço para organizar a resistência ao invasor. Mas, pouco a pouco, o Exército Vermelho conseguiu rechaçar o inimigo, primeiro reconquistando as regiões perdidas e depois fazendo os nazistas retrocederem até a Alemanha. Quando Berlim finalmente capitulou, em maio de 1945, eram tropas soviéticas que cercavam e ocupavam a cidade.

O custo da vitória, no entanto, tinha sido terrível. Mais de 20 milhões de soviéticos morreram em conseqüência da guerra - entre eles 9,5 milhões de civis atacados pela fome, pelas doenças ou simplesmente executados pelo inimigo. Há controvérsias sobre esses números: segundo o historiador James Gormly, o total de mortos ficou entre vinte e 25 milhões de soviéticos. Só em Leningrado, que resistira heroicamente ao cerco nazista, morreram mais soviéticos que a soma de todos os soldados que a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, juntos, perderam na guerra.

Vastas regiões foram arrasadas e a economia quase totalmente desarticulada. Não era à toa que Stalin insistira tanto na questão das reparações, nas conferências dos Três Grandes: seu país estava praticamente esgotado pela guerra.



Um novo inimigo



Mesmo assim, a União Soviética havia obtido uma incontestável e retumbante vitória. Sem sua participação na mobilização contra o Eixo, dificilmente Hitler teria deixado de vencer a guerra. Por maiores que fossem os problemas relacionados com a reconstrução econômica do país, mais importante permanecia o fato de que o Exército Vermelho havia demonstrado a capacidade de mobilização e o poderio soviético ao mundo. A partir dali, qualquer nação teria de pensar duas vezes antes de agredir a pátria do socialismo.

Mais ainda, uma série de países do Leste europeu - Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Iugoslávia, Bulgária, Albânia e, pouco depois, a Alemanha Oriental - vivia agora sob o regime socialista, contando com governos amigos de Moscou. A revolução fora ampliada, tirando a União Soviética do isolamento anterior. Existia agora não apenas um país, mas todo um bloco socialista, sob a liderança firme da própria União Soviética.

A participação naquela sangrenta guerra capitalista tinha, afinal, rendido seus frutos. Mas, assim que a guerra acabou, um novo inimigo surgiu no horizonte. Até então aliados, os Estados Unidos passaram a hostilizar cada vez mais duramente os soviéticos com ameaças veladas e atos unilaterais que visavam reduzir sua influência internacional.

Havia uma lógica nisso. A guerra fizera dos norte-americanos os novos líderes do mundo capitalista e, como tais, estes haviam também assumido a liderança na oposição ao regime soviético - que declaradamente lutava pelo fim do capitalismo no planeta. Seu objetivo era claro: agir de todas as maneiras para fazer refluir a revolução, se possível exterminá-la totalmente, reintegrando os países do bloco socialista no circuito de exploração capitalista.

O Estado soviético sempre tivera muitos inimigos, mas este parecia especialmente agressivo. Logo os Estados Unidos iniciaram uma campanha difamatória, visando apresentar a União Soviética como uma potência expansionista, empenhada em estender seu controle a novos países através da conquista. Isso era falso, pelo menos naquele momento. Sua prioridade era reerguer uma economia arrasada pela guerra e consolidar as recentes conquistas no Leste europeu; mesmo que tivessem tais planos expansionistas, os soviéticos não teriam como sustentá-los no futuro imediato. Stalin nem sequer estimulara a eclosão da revolução chinesa, tendo antes recomendado prudentemente a Mao Tse-tung que procurasse manter a aliança com o governo nacionalista de Chang Kai-chek.

Várias medidas precisavam ser tomadas, portanto, para que a União Soviética fosse capaz de enfrentar os norte-americanos. Uma das mais importantes tinha a ver com o desenvolvimento da bomba atômica. Enquanto perdurasse a vantagem dos Estados Unidos em termos nucleares, raciocinava Stalin, o bloco socialista correria um perigo permanente. O projeto nuclear soviético, iniciado em 1943, foi intensamente acelerado no pós-guerra. Sua coordenação foi entregue a Lavrenty Beria, homem forte dentro do regime e uma das pessoas em quem Stalin parecia ter confiança absoluta. Beria também dirigia, com status de ministro, o poderoso Comissariado do Povo para a Segurança do Estado, responsável pela polícia política e pelos serviços de espionagem.

O teste nuclear realizado com êxito no deserto do Cazaquistão em 1949 não representara o ponto final nessa verdadeira epopéia, apenas o inicio. A partir daí, norte-americanos e soviéticos passariam a competir pelo desenvolvimento de novos modelos de armas nucleares, mais avançados e poderosos. Menos de um ano depois que os Estados Unidos explodiram em teste sua primeira bomba de hidrogênio, em 1952, os soviéticos fizeram o mesmo. E depois que os norte-americanos realizaram uma nova experiência, fazendo explodir uma bomba mais poderosa que todas as anteriores no atol de Bikini, em março de 1954, os soviéticos responderam realizando mais um teste: jogaram pela primeira vez uma bomba H de um avião, em novembro de 1955.

O crescente arsenal nuclear soviético foi sendo elevado à categoria de orgulho nacional, com mísseis e ogivas sendo gloriosamente exibidos à população nas paradas militares comandadas pelo Partido Comunista. O governo era obrigado a gastar um volume cada vez maior de recursos para manter-se na corrida nuclear, em detrimento do investimento em outros setores - por exemplo, no aperfeiçoamento da economia ou na melhoria da qualidade de vida dos soviéticos. Nada disso parecia importar: o Estado soviético não recuaria em sua responsabilidade de defender a revolução. Nessa nova etapa de sua permanente luta contra a agressão imperialista - nessa guerra fria - os soviéticos novamente demonstraram sua capacidade de sacrifício em nome do socialismo.

O Grande Líder, Pai e Amigo

Tal caminhada teve uma liderança que comandava os destinos não só da União Soviética, mas de todo o mundo socialista: Josef Stalin. O nome que Josef Vissarionovich Djugashivili escolhera para si mesmo já em seus dias como jovem revolucionário -Stalin - era também um termo russo que significa homem de aço. Após a guerra, seu poder e seu prestígio atingiram o ponto máximo; comunistas de todo o mundo consideravam-no verdadeiro herói internacional, um autêntico mito vivo.

Stalin havia atravessado um longo caminho para chegar a tal ponto. Durante a revolução de 1917 e mesmo depois dela, seu brilho havia sido ofuscado pela ação de outros líderes, como Lênin e Trotski. Mas após a morte do primeiro, em 1924, iniciou uma fulminante trajetória em direção ao posto de dirigente máximo da União Soviética - todos os seus oponentes na luta pelo poder acabaram exilados ou assassinados. Assumiu definitivamente o governo ao expulsar do país, em 1929, seu maior rival, Leon Trotski, que acabaria depois assassinado por um emissário de Stalin em seu exílio no México (1940).

Determinado a assumir pleno controle da revolução, Stalin promoveu um intenso processo de concentração do poder. A partir de 1934, uma série de expurgos eliminou qualquer sombra de oposição a sua liderança, em todas as áreas - no mundo político, acadêmico, artístico, onde quer que ousassem discordar abertamente de suas posições ou das diretrizes por ele fixadas. Calcula-se que pelo menos três milhões de pessoas perderam a vida em conseqüência de tais expurgos.

Comandante supremo das forças soviéticas durante a Segunda Guerra Mundial, apontado como o grande responsável pela vitória, Stalin viu seu poder e sua imagem chegarem ao apogeu. Sua figura era cultuada: Generalíssimo, Grande Guia dos Povos, Farol da Revolução, Maior Gênio da História, Radioso Sol da Humanidade, Mestre de Todos os Trabalhadores, Guia Genial dos Povos, Pai e Amigo - nenhum elogio parecia excessivo quando se tratava dele. Em sua homenagem, uma cidade soviética - conhecida como Tsaritsine antes da revolução - foi rebatizada com o nome de Stalingrado ("cidade de Stalin"). Espalhavam-se por toda a União Soviética pinturas e esculturas mostrando a figura altiva do líder, muitas vezes com o braço erguido, a mão apontando para um ponto indefinido, o próspero futuro reservado ao povo soviético.

Filmes eram produzidos com o propósito de exaltá-lo. O cavaleiro da estrela de ouro, produção soviética de 195O, é um exemplo típico. Em determinado ponto do enredo, um dos personagens faz um inflamado discurso:

“Vejam vocês, todas essas coisas boas, as coisas que existiam antes da guerra, elas voltaram, e para ficar! Porque somos guiados pelo Partido Comunista! E por isso, vamos erguer nossos copos, pelo poder soviético, pelo Partido Comunista e pela saúde de nosso Pai e Amigo Stalin!”



Na seqüência da cena, uma pequena multidão, contagiada, canta uma música em louvor à "nossa vida alegre e nossos kolkhozes".

Em outras peças, a arte do chamado realismo socialista* mostrava um povo alegre e decidido, empenhado na construção de um futuro radioso. Não havia espaço para fraquezas ou temores. Na produção musical A primavera, de 1947, o povo marcha e canta, feliz e disciplinadamente, pelas ruas:



“Camaradas! Camaradas! No campo e no combate, com toda a nossa alma, protegeremos nossa pátria! O grande povo soviético marcha ao nosso lado, desafiando tempestades e fatalidades em nome da liberdade. Marcha inexoravelmente em direção à meta que fixou. Tudo o que sonhamos, tudo o que queremos, tudo o que procuramos, nós realizaremos! Postos à prova no trabalho e na luta, é com segurança e coragem que nosso povo vê o futuro!”



O herói simbólico desse novo mundo em plena construção - além, naturalmente, do camarada Stalin - era o homem do povo. Monumentos mostravam vigorosos operários e camponeses, figuras musculosas em impecáveis roupas de trabalho, com a cabeça erguida e o olhar contemplando placidamente o futuro que o novo homem moldava com as próprias mãos. Acima de tudo, ele parecia saber que, um dia, toda a humanidade caminharia ao seu lado, ao lado do socialismo.

Este mesmo homem não hesitaria em dar sua própria vida, assegurava a propaganda oficial, na luta contra a agressão imperialista. A União Soviética era a "pátria da paz", esforçava-se mais que qualquer outra nação para mantê-la, mas não fugia da luta quando necessário. Não era isso o que ficara demonstrado na Segunda Guerra Mundial? Para o governo soviético, o heroísmo de seu povo, seu crescente poderio militar e a direção segura de Stalin não poderiam resultar em outra coisa senão na vitória final do socialismo sobre seus inimigos.



Lutando a favor do socialismo

A crença de que seu papel era empreender uma guerra sem tréguas em defesa da revolução e contra as manobras norte-americanas passou a orientar todas as ações do governo soviético desde o imediato pós-guerra. Internamente, os instrumentos para tanto eram o terror político, a perseguição implacável a qualquer traço de oposição ao regime e o reforço ao poder do líder Stalin. Em termos externos a norma era o apoio aos países do Leste europeu, à China e aos partidos comunistas de todas as nações do mundo. Convencidos de que seu papel histórico era o de coordenar o movimento comunista internacional, os soviéticos procuravam disciplinar rigidamente a conduta de cada um desses partidos, muitas vezes decidindo de Moscou quais as linhas de ação que eles deviam adotar. Toda vez que um movimento nacional de libertação reunisse força suficiente para enfrentar o governo capitalista de seu país, deveria receber apoio soviético.

Isso, contudo, não podia ser feito abertamente. Uma intervenção direta, naquele ambiente político de permanente tensão, constituiria uma provocação a Washington e o risco do confronto nuclear. A solução foi a montagem de uma extensa estrutura subterrânea de contatos, coordenada pelo serviço secreto soviético. Nesse sentido, o Comissariado do Povo para a Segurança do Estado foi reformulado e ampliado, recebendo em 1954 o nome que se tornaria famoso dali em diante - Comitê para a Segurança do Estado, KGB.

A nova superagência foi concebida para atuar simultaneamente em diversas áreas: em operações secretas no exterior, na organização do serviço de espionagem, de coleta de informação e de contra-informação, na organização da repressão interna e no patrulhamento das fronteiras soviéticas. A KGB, portanto, tornou-se ainda maior que a CIA norte-americana, ao incorporar também a polícia secreta interna - nos Estados Unidos, essa função vinha sendo exercida há décadas pelo Federal Bureau of Investigation, FBI.

O governo da União Soviética tinha, afinal, um motivo para tudo isso. Em sua luta permanente contra a agressão imperialista, os soviéticos consideravam-se verdadeiros cruzados em defesa da revolução e do socialismo.

A dança no gelo

Durante os tempos da guerra fria, o planeta era encarado como uma espécie de enorme tabuleiro de xadrez. A partida era disputada por dois jogadores, Estados Unidos e União Soviética, empenhados em manter as posições que já haviam conquistado - suas áreas de influência política, consolidadas depois da Segunda Guerra Mundial - e, tanto quanto possível, tomar novas áreas ao adversário. Nenhum país ou região do globo era considerado fora dos limites do jogo: cada casa do tabuleiro estaria, forçosamente, sob domínio de um ou de outro competidor.

Tratava-se, porém, de uma partida com características muito especiais. Ao contrário do xadrez comum, era inimaginável um ataque direto ao núcleo das forças adversárias. O confronto aberto entre as superpotências, como já vimos, provavelmente faria voar pelos ares todas as peças e o próprio tabuleiro. Essa curiosa partida devia ser jogada com decisão, mas também com certa cautela. A estratégia a ser adotada recomendava limitar o jogo às regiões em disputa. Pacientemente, ano a ano, norte-americanos e soviéticos moviam seus peões em diversas partes do globo, atacando ou defendendo governos nacionais e grupos em disputa pelo poder local. Submetido à mera condição de cenário dessa disputa, o mundo assistia aos lances de um jogo que parecia interminável - e que se arrastaria angustiosamente por décadas.



A Guerra da Coréia



No início dos anos 50, um dos palcos dessa competição era a Coréia. Libertada do controle japonês pelos Aliados ao final da Segunda Guerra, o país foi dividido em zonas de ocupação, a exemplo da Alemanha. Uma linha demarcatória, conhecida como Paralelo 38, separava o setor sul, sob domínio dos norte-americanos, do setor norte, sob domínio dos soviéticos. Mais uma vez, a exemplo do que aconteceria na Alemanha, não se chegou a um acordo sobre o estabelecimento de uma administração unificada para o país. Em 1948, ele seria fragmentado em duas nações diferentes: o setor controlado pelos Estados Unidos deu origem à República da Coréia (Coréia do Sul); o setor controlado pela União Soviética resultou na República Popular Democrática da Coréia (Coréia do Norte).

Esse arranjo, contudo, não foi capaz de resolver a questão. Após a retirada das tropas norte-americanas e soviéticas da região, entre 1948 e 1949, ocorreu na área do Paralelo 38 uma série de incidentes de fronteira, seguidos de crescentes ataques verbais entre os dois novos governos - ambos reivindicavam a reunificação do país, sob seu controle. Em junho de 195O, por fim, os exércitos da Coréia do Norte desencadearam um ataque de surpresa contra a Coréia do Sul.

A reação norte-americana foi imediata. No mesmo dia, o governo dos Estados Unidos obteve do Conselho de Segurança da ONU a declaração que caracterizava a Coréia do Norte como nação agressora, portanto sujeita a represálias. Essa decisão certamente foi facilitada pela ausência do representante soviético naquela sessão do conselho. Em seguida, o presidente Truman nomeou comandante de uma expedição de intervenção na Coréia o general Douglas MacArthur, veterano da Segunda Guerra.

Mesmo criticando o que chamou de pressão brutal dos norte-americanos sobre o Conselho de Segurança da ONU, o governo soviético preferiu não se envolver diretamente na guerra, limitando-se a fornecer assistência militar indireta aos norte-coreanos. Mas o governo chinês passou a sentir-se cada vez mais ameaçado com o constante avanço das forças norte-americanas pelo norte, até quase suas fronteiras. Em outubro de 195O, a China de Mao Tse-tung desencadeou uma contra-ofensiva destinada a provocar o recuo das forças de MacArthur. Os combates, cada vez mais acirrados, multiplicavam o número de vítimas e aumentavam a tensão política. Truman chegou a insinuar, em entrevista coletiva, que poderia recorrer uma vez mais à bomba atômica, como forma de colocar um ponto final no conflito.

Só em julho de 1953 foi obtido um acordo de paz - o Armistício de Panmunjon -, pondo fim à guerra e ratificando definitivamente a divisão da Coréia. Mas até então os combates já haviam provocado a morte de mais de cinqüenta mil soldados norte-americanos e de cerca de 1,5 milhão de soldados chineses e norte-coreanos. Além disso, aproximadamente um milhão de civis sul-coreanos e dois milhões de civis norte-coreanos perderam a vida como resultado da fome, das epidemias e dos bombardeios.

O acordo que acabou com esse verdadeiro massacre foi possível, em grande medida, graças à troca de comando dentro do governo norte-americano. Desde janeiro de 1953 os Estados Unidos tinham um novo presidente, Dwight Eisenhower, que mesmo antes da posse se havia comprometido publicamente a encerrar a guerra. Mas o impacto de outro acontecimento, ocorrido três meses antes da assinatura do acordo de Panmunjon, talvez tenha também exercido sua influência para a suspensão do conflito - e certamente influenciaria todos os assuntos relacionados com a guerra fria a partir de então. Em março de 1953, aos 73 anos de idade, Josef Stalin tinha morrido em Moscou.



União Soviética: à procura de novos rumos



A morte de Stalin provocou um clima de grande expectativa em todo o mundo. Por cerca de um quarto de século, os destinos da União Soviética haviam dependido inteiramente das opiniões, decisões e determinações do líder agora desaparecido. Poucas pessoas em toda a História haviam reunido tanto poder quanto ele. O gigante soviético e, a partir do segundo pós-guerra, o bloco comunista haviam sido conduzidos com mão de ferro por Josef Stalin. A grande interrogação era o que seria do mundo comunista sem ele e em que medida seus sucessores dariam continuidade às suas políticas.

Um primeiro sinal de que ocorreriam mudanças surgiu já em 1953, pouco depois da morte de Stalin. Em julho, Lavrenty Beria, seu homem de confiança, foi detido e processado por "atividades criminosas contra o partido e o Estado". Condenado, Beria seria executado em dezembro do mesmo ano.

Mas a grande reviravolta viria em fevereiro de 1956, quando Nikita Kruschev, novo homem forte do regime, proferiu um surpreendente discurso durante o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Nele, atacava duramente Stalin e o culto quase religioso até então dedicado a sua personalidade, além de denunciar as impiedosas perseguições que haviam resultado na morte de tantos cidadãos soviéticos inocentes. O antigo herói tornava-se, subitamente, um criminoso. A palavra de ordem oficial passava a ser a política de desestalinização da União Soviética.

Foi uma verdadeira bomba para o mundo comunista. O discurso de Kruschev, proferido a princípio em caráter reservado apenas para os dirigentes do Partido, logo vazou para a imprensa internacional. Nos países do Leste europeu, passou a fermentar a oposição entre defensores e adversários do stalinismo. Mais do que isso, em alguns deles começaram a pipocar rebeliões contra o próprio controle soviético.

Já em junho de 1956 registraram-se agitações em Poznan, na Polônia. No dia 28 daquele mês, uma multidão calculada em mais de cinqüenta mil pessoas realizou um protesto pelas ruas da cidade, pedindo melhores condições de vida, eleições livres e a retirada das tropas soviéticas do país. As forças policiais, aturdidas, abriram fogo contra os manifestantes. Setenta pessoas morreram.

Isso só fez agravar a crise. Como resultado dela, antigos líderes stalinistas poloneses foram forçados a renunciar a seus postos no Partido Comunista, abrindo espaço para a volta triunfal de Wladislaw Gomulka ao poder. Desde o final dos anos 40, por ter entrado em atrito com as políticas oficiais de Stalin, ele havia sido retirado do governo, expulso do Partido e depois preso. Cerca de 250 mil pessoas reuniram-se nas ruas de Varsóvia para comemorar seu retorno.

O governo soviético aceitou a ascensão de Gomulka, abandonando os planos de invadir a Polônia para mantê-la alinhada ao bloco comunista. Na realidade, fez-se um acordo: o Partido Comunista polonês passaria a ter mais autonomia, mas a Polônia manteria sua filiação ao Pacto de Varsóvia e a fidelidade política à União Soviética. Kruschev resolvera a crise de maneira negociada. Isso, contudo, não seria possível no caso da rebelião que estouraria pouco tempo depois, na Hungria.

Em outubro de 1956, uma manifestação de estudantes realizada em frente à estação de rádio de Budapeste pedia a divulgação de uma lista de reivindicações. Novamente, exigiam-se melhores condições de vida, eleições livres e a retirada das tropas soviéticas do país. Logo o movimento se ampliou, com a realização de concentrações populares exigindo a volta ao poder de Imre Nagy - escolhido primeiro-ministro húngaro em 1953, Nagy fora derrubado dois anos depois. Como na Polônia, o movimento teve êxito e Imre Nagy tornou-se o novo líder húngaro.

O primeiro-ministro, no entanto, declarou publicamente sua disposição de retirar a Hungria do Pacto de Varsóvia, como parte de seu projeto de procurar construir um caminho próprio em direção ao socialismo. Era demais para os soviéticos. No inicio de novembro, duzentos mil soldados e quatro mil tanques do Exército Vermelho avançaram sobre Budapeste com o objetivo de derrubar Nagy e - segundo a versão oficial soviética - "ajudar o povo húngaro a esmagar as obscuras forças da reação e da contra-revolução". Pelo menos cinqüenta mil húngaros morreram nos combates de rua que se seguiram. Imre Nagy foi deposto e, dois anos depois, executado. Em seu lugar, assumiu o poder Janos Kadar, líder húngaro considerado confiável pela União Soviética e que governaria até 1988.

A intervenção soviética na Hungria revelou os limites do processo de desestalinização proposto por Kruschev.

Este prometia reformas econômicas capazes de elevar gradualmente o padrão de vida do povo soviético e um relativo processo de relaxamento da censura política, além da concessão de um pouco mais de autonomia aos governos do Leste europeu. Mas isso não significava que esses governos pudessem contestar a autoridade da União Soviética corno condutora dos destinos do bloco comunista. Qualquer tentativa neste sentido seria encarada como adesão ao inimigo capitalista e duramente reprimida. No tabuleiro de xadrez da política internacional, esses países constituíam casas estratégicas a serem dominadas.



Estados Unidos: ação nas sombras



Os Estados Unidos, por sua vez, faziam o possível para manter sob seu controle aquilo que também consideravam como casas estratégicas. Os anos 50 foram uma época de intenso trabalho para a CIA, cuja presença passou a se fazer sentir em várias partes do mundo. Já na Guerra da Coréia a agência havia dado sua colaboração. Enquanto os soldados norte-americanos lutavam na linha de frente, os agentes da CIA trabalhavam nos bastidores, treinando guerrilheiros e organizando expedições paramilitares contra norte-coreanos e chineses.

Seria na administração Eisenhower, contudo, que a CIA ampliaria mais significativamente seu raio de ação. A política externa do novo governo foi entregue ao secretário de Estado, John Foster Dulles, que levou para a direção da CIA seu irmão, Allen. Juntos, eles desenvolveriam a doutrina de que, na grande luta internacional contra o comunismo, ninguém poderia ser imparcial: "Quem não está conosco, deve estar secretamente ligado à União Soviética e ao movimento comunista mundial", repetia Allen Dulles. Não é surpreendente, portanto, que sob sua direção o serviço secreto norte-americano tenha passado a intervir diretamente em regiões como o Oriente Médio e a América Latina.

No Irã, a CIA inaugurou uma nova modalidade de ação - a promoção de golpes de Estado. Em 1951, o primeiro-ministro iraniano, Mohammed Mossadegh, havia tomado a decisão de nacionalizar os campos de petróleo do país, até então controlados por empresas inglesas. Durante a administração Truman, a CIA se limitara a acompanhar atentamente o que parecia uma medida suspeita, talvez o primeiro passo no sentido da aproximação política do Irã com a União Soviética. Mas, assim que Eisenhower tomou posse, desencadeou uma agressiva campanha com o objetivo de derrubar Mossadegh. Foram organizadas e financiadas secretamente várias manifestações populares contra o primeiro-ministro, que acabou destituído (1953). Em seguida, formou-se um governo militar sob o comando do xá Mohammed Reza Pahlevi, aliado incondicional dos Estados Unidos.

O mesmo tipo de operação foi repetido pouco depois, na Guatemala. Ali, o presidente eleito, Jacobo Arbenz, havia anunciado sua disposição de realizar uma reforma agrária, expropriando as terras da maior proprietária do país - a empresa norte-americana United Fruit Co. Logo se iniciou contra Arbenz uma campanha de desmoralização, que incluía ataques pelo rádio, manifestações de rua e ampla distribuição de panfletos anônimos com críticas a seu governo. Ao mesmo tempo, a CIA armava e treinava sigilosamente contingentes militares guatemaltecos, sob o comando do coronel Castillo Armas. Em junho de 1954, finalmente, Jacobo Arbenz foi derrubado e substituído pelo governo militar de Castillo Armas.

A promoção de golpes de Estado e a sustentação de ditaduras de direita eram apenas algumas das atividades da CIA. Pouco a pouco, a agência passaria a desenvolver também outras linhas de atuação em sua luta contra políticos de esquerda ou lideranças locais não alinhadas à política oficial de Washington. Para promover a desmoralização do presidente da Indonésia, Sukarno, considerado excessivamente independente em relação aos Estados Unidos, a CIA chegaria a produzir um filme pornográfico que mostrava o presidente - interpretado por um ator mascarado - envolvido numa orgia com uma mulher loira, teoricamente uma perigosa espiã comunista. (O resultado foi uma produção tão confusa e ridícula que a peça nem sequer chegou a ser divulgada.)

Em outra ocasião, para assegurar a vitória de Ramón Magsaysay nas eleições filipinas, foi organizada uma campanha que contou com o apelo à crença da população no sobrenatural: vozes misteriosas, vindas do céu (na realidade, -de aviões equipados com alto-falantes), asseguravam que Deus não se contentaria com a vitória de qualquer outro candidato.

Outros planos ainda foram- elaborados para o assassinato de líderes estrangeiros, como Patrice Lumumba, do Congo (atual Zaire), Rafael Trujillo, da República Dominicana, e o coronel Abdul Karim Kassem, do Iraque. Sentindo-se cada vez mais onipotente, a direção da CIA parecia acreditar que podia fazer qualquer coisa para garantir a supremacia dos interesses norte-americanos no exterior.



A dança no gelo



Apesar dos contínuos esforços dos Estados Unidos e da União Soviética para superarem um ao outro, houve momentos em que seus governos ensaiaram estabelecer canais mais desobstruídos de comunicação, como forma de reduzir a tensão política. Tais tentativas avançavam ou recuavam ao sabor dos acontecimentos - por vezes surpreendentes e generosas declarações de disposição ao diálogo, por outras o surgimento de crises internacionais que logo traziam de volta as acusações e críticas mútuas. Ora aproximando-se, ora afastando-se, era como se norte-americanos e soviéticos executassem uma curiosa dança política no cenário gelado da guerra fria.

Tal procura pelo entendimento não acontecia exclusivamente pelo amor à paz, evidentemente. Numa geopolítica internacional cada vez mais complexa, tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética percebiam que havia fatores que escapavam não só ao seu controle, mas também ao controle do adversário. Era o caso, por exemplo, da corrida internacional pela posse da tecnologia nuclear. Desde 1952 a Inglaterra também dispunha da bomba atômica e, em 1960, a França realizaria com êxito seu primeiro teste nuclear. Outros países certamente patrocinavam projetos atômicos secretos, o que levava à necessidade do estabelecimento de algum tipo de regulamentação internacional na área.

Além disso, tornava-se cada vez mais evidente que nem todas as forças políticas do mundo se filiavam obrigatoriamente a um dos dois lados. O quadro rigorosamente bipolarizado pintado por analistas como os irmãos Dulles revelava-se inadequado para retratar uma realidade muito mais ampla e complexa. O próprio mundo comunista começava a conhecer uma divisão que iria se aprofundar a partir do final dos anos 50: o progressivo afastamento entre a União Soviética e a China.

Um momento de aproximação entre norte-americanos e soviéticos ocorreu em setembro de 1959, quando Nikita Kruschev visitou os Estados Unidos. Numa série de pronunciamentos públicos, ele defendeu o que chamava de coexistência pacífica entre as superpotências e chegou a propor um processo geral e completo de desarmamento, a ser obtido no prazo de quatro anos. Mas a esperada visita de Eisenhower à União Soviética acabou sendo adiada quando estourou uma nova crise, em maio de 196O: os soviéticos derrubaram um avião U-2 norte-americano, que voava em missão de espionagem sobre seu território.

Novas perspectivas de entendimento pareceram surgir no início de 1961, quando John F. Kennedy tomou posse como presidente dos Estados Unidos. Sua chegada ao poder não deixava de representar uma certa renovação política, para um pais que havia sido governado durante oito anos por Eisenhower. O novo presidente prometia não fugir ao diálogo com os soviéticos: referindo-se ao assunto num de seus discursos, afirmava que "nunca negociaremos acossados pelo medo; ao mesmo tempo, nunca teremos medo de procurar a negociação".

Pouco tempo depois da posse, contudo, Kennedy teria de lidar com uma desastrada tentativa de invasão de Cuba por parte de exilados cubanos armados e supervisionados pela CIA, com o objetivo de derrubar o governo revolucionário de Fidel Castro. Os planos de provocar a queda de Castro haviam sido formulados ainda durante a administração Eisenhower. A agência já vinha treinando e armando exilados cubanos na Guatemala e tinha prontos esquemas de ataque às forças de Castro. Deveria ser apenas mais uma operação encoberta de substituição de um governo indesejável por um governo militar de direita.

Recém-chegado à Casa Branca, Kennedy hesitava entre autorizar e suspender a operação. Acabou autorizando pela metade: nem todas as forças disponíveis foram mobilizadas na invasão da baía dos Porcos, em abril de 1961.O resultado foi uma operação confusa e mal coordenada, que terminou com a vitória triunfal da resistência de Fidel Castro. Este, a partir daí, assumiu definitivamente sua aliança com a União Soviética. Foi o maior fracasso da CIA em seus 14 anos de existência.



A crise dos mísseis

Cerca de um ano depois, a administração Kennedy se veria novamente às voltas com uma crise em Cuba - dessa vez, com a perspectiva de bater de frente com a União Soviética. Em outubro de 1962, aviões de espionagem norte-americanos obtiveram provas de que os soviéticos estavam montando uma base de lançamento de mísseis nucleares em território cubano, a apenas 150 quilômetros da costa da Flórida. Como resposta, Kennedy impôs um bloqueio aéreo e naval a Cuba, com o objetivo de impedir a chegada dos mísseis, e mobilizou suas Forças Armadas para um possível enfrentamento militar. Se os soviéticos insistissem no empreendimento, seria a guerra.

Por alguns dias, o mundo viveu num estado de ansiedade quase insuportável. O confronto nuclear global nunca parecera tão próximo. No dia 24, dez dias depois da identificação da base pelos aviões norte-americanos, Kennedy foi informado de que 12 dos 25 navios soviéticos que traziam os mísseis haviam mudado de rota para evitar a proximidade do bloqueio. No dia seguinte, os navios - exceto um - deram meia volta e iniciaram a viagem de retorno à União Soviética. O último era o petroleiro Bucharest, que transporta­va apenas combustível; parado e vistoriado, recebeu autorização para seguir viagem até Havana.

A crise só foi superada definitivamente no final de outubro, quando Kruschev aceitou formalmente a exigência de interromper a construção da base. Em troca, Kennedy comprometeu-se a abandonar qualquer outro plano de invadir Cuba. Paradoxalmente, é provável que o conflito tenha contribuído para uma subseqüente aproximação entre Estados Unidos e União Soviética: talvez assustados com as proporções que a crise dos mísseis havia assumido, Kennedy e Kruschev criaram em 1963 o chamado telefone vermelho, uma linha de comunicação direta entre Washington e o Kremlin, a ser usada imediatamente em caso de perigo de guerra nuclear. E no mesmo ano firmaram um tratado pioneiro que, se não promovia um processo geral de desarmamento nuclear, pelo menos fixava regras para a realização de testes atômicos. Os signatários do acordo (Estados Unidos, União Soviética e Grã-bretanha; a França se recusou a assiná-lo) comprometiam-se a não mais realizar experimentos nucleares a céu aberto, como vinham fazendo até então. A partir dali, todos os testes seriam subterrâneos, diminuindo o risco de contaminação. Certamente não era a solução capaz de afastar de vez a ameaça do apocalipse nuclear. Mas, para a opinião pública mundial, que acreditava ter chegado muito próximo dele no ano anterior, tratava-se de um avanço histórico.


A sombra do Dr. Fantástico

Às vezes, uma produção cinematográfica ou uma obra literária registram o momento em que foram realizadas melhor que qualquer outro documento histórico. Frutos de sua época, refletem seus conflitos, medos, esperanças, contradições - e absurdos.

Em 1964 foi realizado um filme assim: Dr. Fantástico (Dr. Strangelove), dirigido por Stanley Kubrick. Seu enredo é simples: subitamente, um general norte-americano perde de vez a pouca sanidade de que ainda dispunha e envia a alguns aviões da Força Aérea dos Estados Unidos mensagem em código, ordenando a realização de um imediato ataque nuclear à União Soviética. Em seguida, tomado de verdadeiro furor patriótico, comete suicídio. Leva consigo o segredo dos códigos de comunicação com os aviões, sem os quais eles não podem ser chamados de volta.

Segue-se um verdadeiro pandemônio. Aturdido e à beira de uma crise nervosa, o presidente dos Estados Unidos não consegue achar uma forma de fazer retornar os aviões, que dentro de algumas horas desencadeariam o ataque fatal. E mais: ouve do premier soviético a ameaça de que, caso o bombardeio ocorra, um contra-ataque automático será realizado, reduzindo o mundo a cinzas. Cada vez mais desesperado, o presidente convoca seu assessor científico, o sombrio Dr. Fantástico, que se limita cinicamente a dizer que nada há a fazer: o holocausto nuclear é inevitável.

Tratava-se, evidentemente, de uma comédia de humor negro. Para as platéias dos anos 60, contudo, significava mais do que isso. Rindo nervosamente, o público parecia estar assistindo na tela à concretização de seu pior pesadelo: o de que a loucura, a irresponsabilidade e o absurdo da guerra fria acabassem levando ao desastre final.



O poder na terceira idade

Entre os motivos para a permanência de tal clima de medo estava o fato de que, apesar do acordo nuclear pioneiro de 1963, Estados Unidos e União Soviética não haviam diminuído o ritmo de produção de novas armas nucleares. Ao contrário, os governos de Kennedy e de Kruschev tornaram-se conhecidos pela obsessão em criar novos mísseis e bombas para arsenais já abarrotados deles. Além disso, passara a fazer parte do conhecimento popular a imagem do "homem da pasta preta" - o funcionário que, tanto nos Estados Unidos quanto na União Soviética, acompanhava discretamente o chefe de Estado em todas as ocasiões, trazendo na famosa pastinha os códigos secretos para a determinação de um ataque nuclear global.

As possibilidades de diálogo entre norte-americanos e soviéticos pareciam cada vez mais distantes. A inesperada morte de Kennedy, em novembro de 1963, foi seguida quase exatamente um ano depois pela queda de Kruschev. Nos Estados Unidos, assumiu a Presidência o circunspeto Lyndon B. Johnson, então com 55 anos figura que contrastava fortemente com a imagem jovem e dinâmica de Kennedy.

Mas seria na União Soviética que se inauguraria uma fase na qual o poder passou às mãos de líderes particularmente idosos, dirigentes com uma carreira longa e pacientemente construída dentro do Partido Comunista. Kruschev foi sucedido por um triunvirato formado por Alexei Kossigin, Andrei Kirilenko e Leonid Brejnev, numa fórmula que evoluiu gradualmente para a predominância do último como o novo número um do regime. Brejnev estava próximo de completar 58 anos de idade quando chegou ao poder e o exerceria pelos 18 anos seguintes, até sua morte, em 1982. Seus sucessores imediatos - Yuri Andropov e Konstantin Chernenko tinham, respectivamente, 68 e 72 anos de idade quando chegaram ao poder.

Não é surpreendente, portanto, que o período que se iniciou com Brejnev tenha se tornado conhecido como a era da gerontocracia na União Soviética (gerontocracia significa "governo de anciãos"). Não se tratava tanto da idade cronológica de tais dirigentes - o próprio Kruschev já tinha mais de 6O anos quando iniciou sua política de desestalinização, em 1956 , mas do fato de que sua ascensão refletia um crescente processo de burocratização do Partido Comunista e, portanto, do governo soviético. Imobilizada pela inflexibilidade da estrutura partidária, a administração de Brejnev fez retroceder a tendência liberalizante de Kruschev em termos de política interna, reforçou o já rígido controle sobre os países do Leste europeu e ignorou a necessidade de reformas na economia, que se tornaria cada vez mais estagnada daí em diante. Mais que os dirigentes, era a política soviética que se tornava mais e mais arcaica.

Em um ponto, contudo, a nova administração da União Soviética manteria a continuidade em relação às administrações anteriores: no progressivo aumento dos gastos militares e na procura da superação dos Estados Unidos em outras áreas consideradas estratégicas, como na chamada corrida espacial.



Johnson e a política externa



Não eram apenas os soviéticos que se haviam tornado mais inflexíveis com a troca de governo. Nos Estados Unidos, a administração de Lyndon Johnson lançou uma nova ofensiva visando reforçar o controle sobre o que encarava como sua área de influência internacional.

Por trás dessa mobilização estava o fantasma de Fidel Castro. A derrota na baía dos Porcos representara, mais que a perda do controle de Cuba para a União Soviética, uma humilhação que perseguiria permanentemente o serviço secreto norte-americano daí em diante. A CIA mostrou-se verdadeiramente obcecada pela idéia de assassinar Castro: alguns dos delirantes planos desenvolvidos para tanto incluíam projetos de enviar charutos envenenados ao líder cubano ou pulverizar com substâncias tóxicas o estúdio de TV onde ele fazia seus discursos.

Aos olhos do governo norte-americano, mais importante era impedir que a experiência da revolução socialista cubana se repetisse em outros pontos da América Latina. Foi assim que, com o apoio dos Estados Unidos, uma nova leva de regimes ditatoriais passou a se espalhar pelos países latino-americanos a partir dos anos 60. Sua base era um pensamento que mesclava o tradicional conservadorismo das forças militares destes países com a política anticomunista irradiada de Washington - a chamada doutrina de segurança nacional. A idéia de que era preciso combater a qualquer custo a subversão e o avanço do movimento comunista internacional foi cuidadosamente transplantada para os novos governos que se formavam, dando origem a uma fase de autoritarismo que duraria cerca de duas décadas.

Foi nesse contexto que, em abril de 1964, ocorreu no Brasil o golpe que derrubou o governo civil de João Goulart. Sintomaticamente, o governo militar que chegou ao poder proclamava que a intervenção se devera à necessidade de salvar o país da subversão, discurso que seria ininterruptamente repetido ao longo dos vinte anos que se seguiram. O governo militar brasileiro, naturalmente, foi logo reconhecido e apoiado pelos Estados Unidos.

Daí em diante, os golpes de Estado se multiplicariam, com a formação de governos militares na Bolívia (1971), no Uruguai e no Chile (1973), na Argentina (1976) e em quase todos os demais países latino-americanos. Tais Estados policiais encarregaram-se de sufocar todo traço de oposição, elevando a violência e a repressão internas a níveis nunca antes conhecidos. Estima-se que, na Argentina, o número de "desaparecidos" - eufemismo oficial para designar os opositores assassinados secretamente pelo regime - tenha chegado a trinta mil pessoas.

A Guerra do Vietnã

Mas foi no Sudeste Asiático que o governo Johnson iniciou seu envolvimento mais conhecido - e desastroso. Desde os primeiros anos do pós-guerra, o Vietnã, colônia francesa, tinha sido palco de uma acirrada luta entre o governo francês e as forças locais em luta pela independência. Em 1954, a exemplo da Coréia, o país havia sido dividido em dois: o Vietnã do Sul, governado pelo anticomunista Ngo Dinh Diem, e o Vietnã do Norte, controlado pelas forças do Viet Minh, movimento revolucionário de esquerda liderado pelo carismático Ho Chi Minh.

Desde o início dos anos 50, os Estados Unidos vinham apoiando militarmente a França em sua luta pela manutenção da colônia. Quando os franceses finalmente desistiram, em 1954, a ajuda foi transferida ao Vietnã do Sul de Dinh Diem, em permanente conflito com o Vietnã do Norte e com as forças locais de resistência ao regime. Kennedy elevou a nada menos que 15 mil o número de conselheiros militares norte-americanos presentes no Vietnã do Sul.

Quando Ngo Dinh Diem foi assassinado, em 1963, após anos de violenta guerra civil, Johnson concluiu que era necessário transformar o apoio em intervenção militar direta. Sob o comando do general William Westmoreland, as forças norte-americanas passaram a atacar maciçamente o Vietnã do Norte. Daí em diante, o envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã seria cada vez maior: em 1964 havia 148 mil soldados americanos na região; esse número saltaria para 389 mil em 1966, para 436 mil em 1967 e para 541 mil em 1969. Além disso, novas armas - entre as quais as terríveis bombas incendiárias de napalm, que espalhavam fósforo branco, queimando indiscriminadamente vegetação, animais e pessoas - passaram a ser usadas, em ataques tanto aos guerrilheiros norte-vietnamitas quanto à população civil.

Dentro do governo norte-americano, no entanto, a perplexidade era cada vez maior: quanto mais recorria a seu formidável aparato militar no Vietnã, mais a situação parecia escapar ao controle. Era como se os combatentes vietnamitas possuíssem uma inesgotável capacidade de resistência e de reação, ressurgindo das matas mesmo depois dos mais violentos ataques. Além disso, a própria opinião pública dos Estados Unidos, que antes aprovava a intervenção - em 1964, 85% dos norte-americanos estavam a favor dela -, passava cada vez mais a encarar a participação naquela guerra como um enorme equívoco. Episódios como o massacre de My Lai, em 1968, só fizeram engrossar uma campanha que logo tomou todo o país, a favor da retirada norte-americana do Vietnã.

O desencanto dos norte-americanos com a guerra se tornaria mais intenso quando, em janeiro de 1968, após quase quatro anos de seguidos e crescentes ataques, os norte-vietnamitas encontraram forças para desencadear a Ofensiva do Tet (ano novo lunar vietnamita), tomando de assalto nada menos que 36 das 44 capitais provinciais do Vietnã do Sul. O que começara como mais uma intervenção em nome da luta contra o comunismo tinha se transformado num interminável e sangrento conflito. Os poderosos norte-americanos viam-se absolutamente incapazes de dobrar os pobres mas determinados vietnamitas.

Atônito, Johnson parecia não compreender o que acontecia, afundando cada vez mais na impopularidade e na insistência em manter a mobilização numa guerra da qual os Estados Unidos pareciam não ter nenhuma possibilidade de sair vitoriosos. Era como se, no Sudeste Asiático, os norte-americanos estivessem aprendendo a dura lição de que já não podiam mais intervir no cenário externo a seu bel-prazer, como estavam habituados.

O inverno cai sobre Praga

Nos anos 60 não eram apenas os norte-americanos que enfrentavam dificuldades em manter sua liderança externa. Também a União Soviética de Brejnev viu surgirem crises naquela que considerava sua área de influência. A maior delas resultou, em 1968, em uma nova intervenção armada desta vez, na Tchecoslováquia.

Desde janeiro daquele ano, Alexander Dubcek era o novo secretário-geral do Partido Comunista tcheco, sucedendo no cargo a Antonin Novotny. Logo que chegou ao poder, Dubcek lançou um amplo programa de reformas visando revitalizar a economia do país e, sobretudo, instaurar um regime mais democrático. Tal programa - que anunciava a chegada de uma nova era para a Tchecoslováquia, conhecida como a Primavera de Praga incluía medidas absolutamente inéditas dentro do bloco comunista: a garantia de total liberdade de expressão e de culto religioso, a promoção de eleições gerais onde poderiam concorrer candidatos e partidos não comunistas e mesmo a instauração no país de uma incipiente economia de mercado.

Depois da frustrada experiência húngara, doze anos antes, outro país do Leste europeu anunciava a disposição de formular um caminho próprio em direção ao socialismo, ganhando autonomia em relação à União Soviética. E mais uma vez o governo soviético reagia, iniciando um jogo de pressões que visava conter o que encarava como um desafio à sua autoridade. No final de julho, foi promovido um encontro entre dirigentes soviéticos e tchecos para discutir diretamente a questão, ao mesmo tempo que tropas da União Soviética realizavam manobras militares perto da fronteira com a Tchecoslováquia - numa evidente tentativa de intimidar Dubcek. No encontro, Brejnev desde logo apresentou a exigência de que o governo tcheco suspendesse suas medidas liberalizantes, restabelecendo a censura e abolindo todas as organizações políticas não comunistas.

Apesar das pressões, Dubcek e o presidente tcheco, Ludvig Svoboda, argumentaram firmemente em defesa de seu programa e do direito à autodeterminação de seu povo. Quando, ao final de três dias de encontro, os soviéticos finalmente interromperam suas críticas, parecia a vitória. Dubcek e Svoboda retornaram a Praga certos de que haviam afastado o último obstáculo a seu projeto de construir no país o que consideravam um socialismo com face humana.

Estavam enganados. Na madrugada de 21 de agosto, duzentos mil soldados do Pacto de Varsóvia cruzaram a fronteira tcheca para ocupar Praga e outros pontos estratégicos. Pegos de surpresa e reconhecendo sua impotência para deter a invasão, os líderes tchecos apelaram ao povo para que -não resistisse ao avanço; mesmo assim, muitos manifestantes saíram às ruas, vaiando os soldados e improvisando barreiras para tentar deter o avanço dos tanques. Em 22 de agosto, vinte mil pessoas reuniram-se na praça Venceslau, no centro de Praga, pedindo a retirada das tropas. Mas era inútil: Dubcek e outros líderes tchecos já haviam sido detidos e convencidos a abrir mão de seu programa de reformas. Por determinação da União Soviética, as tropas do Pacto de Varsóvia tinham sufocado a Primavera de Praga.

Em abril do ano seguinte, finalmente, Alexander Dubcek foi substituído por Gustav Husak, que logo promoveu o expurgo de quatrocentos mil filiados ao Partido Comunista tcheco e impôs um rígido regime de censura ao país. Governando com o apoio das topas soviéticas que, meses antes, haviam anunciado sua disposição de permanecer por tempo indeterminado em território tcheco, Husak se manteria no poder até 1989.



Novos passos na dança



Ao final dos anos 60, portanto, com as intervenções no Vietnã e na Tchecoslováquia, norte-americanos e soviéticos estavam particularmente distanciados uns dos outros. Mas, no início dos anos 70, uma fase inédita de aproximação se estabeleceria. Não deixa de ser irônico que isso tenha acontecido justamente durante a administração de Richard Nixon nos Estados Unidos.

Nixon era um político de longa trajetória conservadora. Na década de 50 havia participado ativamente da "caça aos comunistas", como membro do Comitê de Atividades Anti-Americanas. Mas ao tornar-se presidente, em 1969, ele iniciaria uma política externa caracterizada pela procura de novos canais de entendimento com o mundo comunista.

Em fevereiro de 1972 Nixon tornou-se o primeiro presidente norte-americano a visitar a República Popular da China, em esforço diplomático que incluiu o restabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países. E mesmo que tal iniciativa fizesse parte de uma estratégia que também visava aprofundar a ruptura política entre a China e a União Soviética, Nixon não deixou de, ao mesmo tempo, procurar o diálogo com os soviéticos. Poucos meses depois, em Moscou, ele e Brejnev assinariam um acordo inédito de limitação de seus arsenais nucleares, o Salt 1, estabelecendo restrições para a construção de novas bases de lançamento de mísseis. Além disso, foi na administração Nixon que os Estados Unidos finalmente iniciaram sua retirada do Vietnã - em janeiro de 1973, após a realização de novos e pesados bombardeios sobre o Vietnã do Norte.

Outra ironia: apesar de seus êxitos na área de política externa, Nixon caiu em desgraça por causa de um episódio de política interna: o escândalo de Watergate. Cercado e politicamente esgotado, o presidente foi obrigado a renunciar em agosto de 1974, no segundo ano de seu segundo mandato.

Nixon foi sucedido por seu vice-presidente, Gerald Ford. Apagado e pouco carismático, além de sofrer com o descrédito de seu Partido Republicano por conta do escândalo de Watergate, Ford insistiu em concorrer às eleições de 1976: foi derrotado pelo democrata Jimmy Carter. Carter formulou uma nova política externa baseada na campanha pelo respeito aos direitos humanos, reduzindo o apoio político e econômico a países nos quais tais direitos eram ostensivamente violados, como a Guatemala, El Salvador e a África do Sul. Além disso, a CIA foi orientada a reduzir ao mínimo as operações clandestinas; o presidente declarou publicamente seu compromisso de fazer o possível "para que cada ato do serviço secreto, agora e no futuro, seja legal e correto".

Mas o programa de renovação política de Carter seria atropelado pelos acontecimentos. Em janeiro de 1979, após meses de seguidas agitações, o xá Mohammed Reza Pahlevi, tradicional aliado político dos Estados Unidos, foi derrubado no Irã. Subitamente, décadas de ressentimento contra a influência norte-americana vieram à tona, na forma de uma dura campanha coordenada pelo novo governante iraniano, o líder fundamentalista islâmico aiatolá Ruhollah Khomeini. A embaixada dos Estados Unidos no país foi tomada, e dezenas de cidadãos norte-americanos foram mantidos como reféns por mais de um ano. Uma desastrada tentativa feita pelo governo norte-americano de resgatar os reféns, em abril de 1980, resultaria na queda de dois helicópteros em pleno deserto iraniano, acentuando a crise.

Tornava-se claro que o ensaio de Carter de formular uma política externa mais democrática esbarrava na formidável teia de relações, apoios e interesses norte-americanos no exterior. Enfrentando dificuldades crescentes, Carter foi derrotado em sua tentativa de obter a reeleição em 1980, perdendo a disputa para o republicano Ronald Reagan.



O Afeganistão



As tentativas de avanço no diálogo com a União Soviética sofreriam um duro abalo quando, em dezembro de 1979, o governo soviético se envolveu em uma nova intervenção militar no exterior, desta vez invadindo o Afeganistão.

Desde os anos 50 a União Soviética vinha mantendo relações relativamente próximas com o governo afegão. Mesmo não pertencendo formalmente à esfera de influência soviética, o Afeganistão vinha

recebendo uma considerável quantidade de auxílio técnico e econômico por parte de Moscou, pelo fato de possuir uma vasta fronteira, estrategicamente localizada, com a União Soviética. Essas relações se tornariam ainda mais estreitas quando, em 1978, o presidente Sardar Mohammed Daud foi derrubado pelo líder do Partido Democrático Popular Comunista do Afeganistão, Nur Mohammed Taraki.

O governo de Taraki, contudo, logo passou a enfrentar uma insurreição armada por parte de grupos islâmicos locais os mujahidin inconformados com a imposição de um regime não religioso no país. Taraki seria deposto por Hafizullah Amin, que por sua vez seria derrubado pouco tempo depois, em dezembro de 1979, por Barbrak Karmal, líder afegão mais alinhado com os soviéticos. Mas já durante a curta passagem de Amin pelo governo, a União Soviética havia enviado cem mil soldados ao Afeganistão, com o objetivo de combater a guerrilha mujahidin reunida na União Islâmica Combatente.

Era como se os soviéticos tivessem encontrado sua própria versão da Guerra do Vietnã. Durante quase dez anos, a União Soviética se envolveria cada vez mais num duro combate contra a guerrilha, tentando sustentar um governo que em tudo dependia dela. O pobre e mal treinado exército afegão não só não conseguia fazer frente ao inimigo, como sofria com seguidas deserções de soldados que, da noite para o dia, corriam para se juntar às forças da União Islâmica. Calcula-se que os contingentes militares afegãos chegaram a ser reduzidos pela metade, por força dessas deserções.

A desastrosa decisão de sustentar a intervenção no Afeganistão foi mantida pelos sucessores imediatos de Brejnev, Yuri Andropov e Konstantin Chernenko. Tais dirigentes pareciam não compreender que aquela mobilização não só não conduziria a vitória alguma, como trazia um custo cada vez mais elevado para a já combalida economia soviética.

A sombra do Dr. Fantástico

A invasão do Afeganistão e a eleição de Reagan representaram o fim do período de aproximação entre Estados Unidos e União Soviética iniciado nos primeiros anos da década de 7O. Pouco a pouco, criou-se novamente aquele tão conhecido clima de hostilidade e desconfiança mútuas, recheado de ameaças veladas e renovados investimentos no desenvolvimento de novas armas. Era como se, em plenos anos 8O, a sombra do Dr. Fantástico voltasse a se fazer presente.

Espionagem: olhos atentos por todo lado

Em épocas de intensa competição política, militar e tecnológica, as grandes potências procuram guardar cuidadosamente seus planos de ação e seus segredos de Estado - e descobrir os de seus adversários. Os anos da guerra fria foram também os anos de ouro da espionagem em escala internacional, com a CIA e a KGB espalhando agentes por todo o mundo e recorrendo aos mais elaborados esquemas para a obtenção de informações estratégicas.

Tão intensa era essa movimentação que chegou a inspirar várias obras que marcam a cultura do período: os filmes da série James Bond (o primeiro deles, O satânico doutor No, é de 1962), os livros de John Le Carré (seu título mais famoso é O espião que saiu do frio, de 1962), seriados de TV como Missão impossível (produzido nos Estados Unidos entre 1966 e 1973) e mesmo Agente 86 (uma versão cômica dos anteriores, produzida entre 1965 e 1969).

Na vida real, o cotidiano dos espiões profissionais era muito menos glamoroso que o dos agentes secretos do cinema e da TV, mas não deixava de revelar alguns lances surpreendentes e até espetaculares, como demonstra o chamado caso Philby.

Kim Philby era um dos mais respeitados agentes do M16, o serviço secreto britânico. Desde 1944 ele chefiava o setor encarregado de investigar os soviéticos. Quando a CIA foi criada, em 1947, Philby foi designado pelo governo britânico para montar sua estrutura. Na realidade, ele se tornaria o elo de ligação entre os serviços secretos britânico e norte-americano. Competente, hábil e dotado de grande magnetismo pessoal, Kim Philby parecia ser o homem em quem os governos da Inglaterra e dos Estados Unidos poderiam depositar toda a sua confiança. Tudo estaria muito bem não fosse o fato, descoberto mais tarde, de ele ser um convicto partidário dos ideais comunistas. Já em 1933 Philby se tornara espião soviético na Inglaterra, passando depois a trabalhar como agente duplo: todas as informações que obrinha no M16 ou na CIA - e não eram poucas - eram repassadas à KGB.

Em janeiro de 1963, Philby desertou abertamente, desembarcando em Moscou, onde passaria a residir. Quando morreu, em 1988, seu enterro teve todas as pompas oficiais reservadas aos heróis soviéticos. Kim Philby foi, senão o maior, um dos maiores e mais bem sucedidos agentes duplos de toda a História.

A nova ofensiva anti-soviética promovida pela administração Reagan incluiu, entre outras medidas, o apoio secreto à guerrilha mujahidin no Afeganistão: só em 1985, o governo norte-americano gastou cerca de trezentos milhões de dólares financiando os rebeldes afegãos. O aumento nos gastos militares, de fato, parecia ser o grande trunfo do governo Reagan em termos de política externa. O orçamento militar dos Estados Unidos saltou de 126 bilhões de dólares, em 1979, para 312 bilhões de dólares em 1988 - um aumento de quase 15O%. Esses recursos foram gastos no aumento dos contingentes militares norte-americanos espalhados pelo mundo e no desenvolvimento de novas armas, como o polêmico projeto conhecido como Guerra nas Estrelas, que visava nada menos que desenvolver sistemas de defesa a partir de satélites, militarizando até mesmo o espaço sideral.

Com Reagan, o serviço secreto norte-americano voltaria aos seus dias de intensa atividade. O presidente, não recorreu apenas à CIA, agora sob vigilância mais atenta da opinião pública e do Congresso, desenvolvendo uma estrutura própria para agir com mais liberdade. Com a ajuda do diretor da CIA, William Casey, e de um militar de sua confiança, o tenente-coronel Oliver North, Reagan criou uma agência paralela para intervir no exterior, conhecida sigilosamente como "a empresa". Totalmente ilegal, essa agência envolveu-se num obscuro caso de venda de armas ao Irã. Era uma forma de obter recursos para financiar a atividade de grupos de guerrilha na Nicarágua (que desde 1979, com a queda do ditador Anastácio Somoza, vinha sendo dirigida pelo governo de esquerda da Frente Sandinista de Libertação Nacional).

Além desse episódio, conhecido como caso Irã-Contras, o serviço secreto voltaria a formular planos de assassinar líderes estrangeiros (no Líbano) e de intervir em processos eleitorais (como 37 anos antes, na Itália, e mais uma vez contra o Partido Comunista Italiano, nas eleições de maio de 1985).

Este cenário feito de intervenções militares, operações encobertas e crescente inflexibilidade por parte de norte-americanos e soviéticos indicava uma fase de recrudescimento da guerra fria, que parecia ter-se instalado novamente e por tempo indeterminado. Até que, em 1985, um acontecimento crucial deu início a um surpreendente processo que levaria não apenas ao declínio da guerra fria, mas mesmo à sua superação definitiva. Em março daquele ano, Mikhail Sergueievitch Gorbatchev chegou ao poder na União Soviética.

A derrota do bloco comunista

Submetida desde os anos 60 a um longo período de estagnação política e econômica que se explica, em grande medida, devido à necessidade de se desviar largos recursos da produção (de implementos, alimentos, etc.) para a indústria bélica a fim de fazer frente ao belicismo estadunidense, a União Soviética conheceria um rápido processo de transformação a partir da posse de Gorbatchev como novo secretário-geral do Partido Comunista, em substituição a Konstantin Chernenko. Relativamente jovem em comparação com seus antecessores tinha 54 anos de idade quando chegou ao poder -, o novo líder lançaria um amplo programa de reformas, visando a renovação política e econômica do país e do bloco comunista. Uma vertiginosa sucessão de acontecimentos, contudo, levaria as mudanças para muito além do que pretendia o próprio Gorbatchev Nos anos que se seguiram, o mundo assistiria com surpresa à progressiva desintegração tanto da União Soviética quanto do bloco comunista.

O fato é que Gorbatchev recebera uma pesada herança em termos políticos e administrativos. Seu programa de liberalização apenas tornou mais visíveis problemas que há muito vinham se acumulando: a ineficiência da economia soviética, engessada por um planejamento excessivamente centralizado; o peso dos crescentes gastos militares sobre essa economia já debilitada; a inflexibilidade de uma burocracia estatal de proporções monstruosas, que procurava controlar e regulamentar cada atividade produtiva. Para Gorbatchev, não havia futuro para o socialismo, a menos que tal estrutura fosse inteiramente reformulada.

Foi nesse contexto que ele lançou, em fevereiro de 1986, o programa conhecido como glasnost ("transparência"), visando combater a corrupção e a ineficiência administrativa dentro do Estado soviético, como parte de um projeto maior de abertura política. E, pouco depois, um segundo programa - a Perestroika ("reestruturação") seria formulado para aumentar a produtividade da economia do país. Além disso, Gorbatchev passaria a reduzir gradualmente a ajuda econômica aos países do Leste europeu e a retirar de lá várias das tropas soviéticas.

Mudanças rápidas

A política externa soviética também passou por transformações significativas. Procurando estabelecer um novo padrão de entendimento com os países capitalistas, Gorbatchev reuniu-se com Reagan em cinco ocasiões diferentes nunca antes dois dirigentes dos Estados Unidos e da União Soviética haviam mantido tantos contactos diretos. Já no primeiro desses encontros, em novembro de 1985, ambos anunciariam a disposição de reduzir seus arsenais nucleares pela metade, em acordo a ser formalizado futuramente. E embora Reagan que continuava a encarar a União Soviética como "o império do mal" depois recuasse nesse compromisso, as propostas de desarmamento de Gorbatchev lhe valeram uma popularidade que nenhum outro líder soviético havia antes obtido no mundo ocidental. Em sua visita aos Estados Unidos, em dezembro de 1987, ele foi entusiasticamente recebido pelo público norte-americano.

Na ocasião, foi assinado um tratado inédito de eliminação de mísseis Cruise e Pershing II norte-americanos, em troca da eliminação de SS-20 soviéticos: tratava-se do primeiro acordo de desativação de toda uma classe de armas nucleares. Um ano depois, em pronunciamento realizado na ONU, Gorbatchev anunciaria a decisão de reduzir os contingentes militares soviéticos em 20% - o equivalente a quinhentos mil homens até o final de 1991.

As reformas de Gorbatchev incluíram também a realização de eleições livres para o Congresso, em março de 1989. Era a primeira vez que os soviéticos iam às umas escolher seus representantes. Mas todo esse esforço, que visava dar novos rumos ao socialismo, passou a enfrentar problemas inesperados: dentro da onda liberalizante, grupos nacionalistas, étnicos e religiosos sufocados por décadas - volitaram a se mobilizar, reclamando a independência de regiões como a Letônia, a Lituânia e a Estônia. Também nos países do Leste europeu ressurgiram movimentos a favor da completa autonomia nacional.

A unidade da União Soviética e do bloco comunista sempre fora garantida por um rígido esquema de centralização política: nas ocasiões em que movimentos colocaram em xeque tal esquema como na Hungria, em 1956, ou na Tchecoslováquia, em 1968 - os soldados do Exército Vermelho e do Pacto de Varsóvia haviam sido convocados para esmagá-los. Agora, porém, isso não parecia mais possível. Um a um, os países do Leste europeu foram ganhando cada vez mais autonomia em relação à União Soviética, praticamente desmontando a ordem construída por Stalin ao final da Segunda Guerra Mundial.

Um exemplo é o da Polônia. Já no final dos anos 70 emergira um movimento contestador de base sindical, o Solidariedade, liderado por Lech Walesa – primeiro operário traidor de seu próprio povo, exemplo para o nosso Lula da Silva... Em 1982 o governo polonês havia respondido com a dureza de sempre, implantando uma lei marcial. Com o clima de abertura da glasnost, entretanto, uma série de reformas políticas levaram à criação do cargo de presidente da República e de um parlamento bicameral, em abril de 1989. Nas eleições realizadas em junho do mesmo ano, o Solidariedade - agora transformado em partido político - obteve uma vitória significativa, fazendo de Tadeusz Mazowiecki o primeiro-ministro. No ano seguinte, Lech Walesa chegaria ao cargo de presidente da República. Numa virada inédita, os dissidentes do regime assumiam o governo.

Outro exemplo é o da Tchecoslováquia. Ali, Gustav Husak, que havia assumido o governo logo após a repressão à Primavera de Praga, foi forçado a renunciar como resultado de novas e amplas manifestações populares. Em seu lugar, assumiu como presidente, em dezembro de 1989, o escritor Vaclav Havel, em processo que também levou à reabilitação política de Alexander Dubcek eleito deputado e, em seguida, presidente da Câmara dos Deputados. A transição política tcheca, radical mas pacífica, tornou-se conhecida como Revolução de Veludo.

Movimentos dessa natureza passaram a se reproduzir em cada país do Leste europeu, mesmo naqueles onde o peso da tradição stalinista e da centralização política era maior. Nem todas as transições foram pacíficas, contudo. Em dezembro de 1989, o ditador da Romênia, Nicolae Ceausescu que governava desde os anos 6O e resistia às mudanças - acabou sendo preso e executado, ao lado de sua mulher, Elena. A maré de violência incluiu a caça e o linchamento de muitos membros da Securitate, a polícia política romena. A onda de transformação parecia tão irrefreável que até na Albânia, considerada o maior reduto do stalinismo na Europa, seriam realizadas eleições livres em março de 1992. A vitória - impensável em outros tempos - foi do Partido Democrático de Sali Berisha, que na ocasião declararia que os albaneses estavam "dizendo um adeus definitivo ao comunismo".

A queda do muro de Berlim



Nenhum outro acontecimento marcaria tão emblemática e simbolicamente a virtual desintegração do antigo bloco comunista, ou teria tanta influência sobre os movimentos no Leste europeu, quanto o processo que levou à queda do muro de Berlim, em 1989. Construído em 1961 para separar os setores oriental e ocidental da cidade para isolar, na realidade, o setor comunista do setor não comunista -, o famoso muro havia se tornado o maior símbolo do controle soviético sobre os países do Leste europeu. Como que enclaustrados no setor comunista da cidade, centenas de pessoas tentaram, ao longo de quase três décadas, achar uma maneira de fugir para o setor ocidental. Os fugitivos procuravam superar as muitas barreiras constituídas pelo muro - que contava, entre outras coisas, com cercas eletrificadas, valetas antitanque e policiamento permanente. A maior parte deles acabou eletrocutada ou fuzilada.

Em setembro de 1989, entretanto, a Hungria abriu suas fronteiras com a Áustria, criando um novo roteiro de fuga da Alemanha Oriental. Milhares de alemães orientais passaram a sair de seu país em direção à Alemanha Ocidental, atravessando nesse caminho a Hungria e a Áustria. Além disso, como em outros países do Leste europeu, também na Alemanha Oriental uma onda crescente de protestos populares passou a ocorrer. Esgotado pelas manifestações e pela repercussão da emigração em massa, o governo do país finalmente determinou a derrubada do muro, em novembro de 1989. Verdadeiras multidões afluíram a Berlim e fizeram do acontecimento uma enorme festa, transmitida pela TV para todo o mundo. A queda da barreira preparava terreno para uma medida ainda mais radical, que viria pouco tempo depois - a reunificação alemã, sob a liderança da Alemanha Ocidental.

O fim da União Soviética

A abertura política patrocinada por Gorbatchev permitiu a imergência de forças que imprimiram seus próprios ritmos e direções às mudanças que o líder soviético imaginara poder manter sob controle. Essa torrente de transformações, porém, não se fez sem resistências. A mais significativa delas resultou em nada menos que uma tentativa de golpe contra o próprio Gorbatchev.

Em agosto de 1991, um autodenominado Comitê Estatal de Emergência surpreendeu o mundo com o anúncio de que Mikhail Gorbatchev havia sido afastado do poder "por problemas de saúde"

velho eufemismo soviético, tradicionalmente usado para anunciar a retirada de um líder caído em desgraça. Uma junta, formada por oito dirigentes da chamada linha dura do Partido Comunista, assumiu o governo e proclamou sua intenção de restaurar a "lei e a ordem", além da "integridade territorial e da honra nacional".

O golpe, que apontava para a retomada da linha de centralização política na União Soviética, porém, fracassou espetacularmente. Milhares de manifestantes saíram às ruas de Moscou, enfrentando os soldados e os tanques, ao mesmo tempo que a opinião púbica mundial exigia a volta de Gorbatchev. Em poucos dias, por absoluta falta de apoio, os golpistas foram presos, e Gorbatchev reconduzido ao poder. Em vez de deter, o golpe frustrado acabou acelerando ainda mais as mudanças: pouco depois o Partido Comunista soviético foi extinto e as repúblicas da Letônia, Estônia e Lituânia declararam definitivamente sua independência. O exemplo foi seguido por Moldávia, Ucrânia, Bielo-Rússia, Geórgia, Azerbaijão, Quirguizistão, Uzbequistão, Tajiquistão e Armênia. O antigo império soviético se esfacelava.

Mais do que isso, a resistência ao golpe reforçou a popularidade do presidente da Rússia, Bóris Yeltsin, líder populista que a partir daí manobrou habilmente para marginalizar Gorbatchev. Yeltsin articulou junto aos líderes das novas repúblicas a formação de uma Comunidade de Estados Independentes, união que praticamente decretava a falência do que sobrava do antigo Estado soviético. Esgotado, Gorbatchev não viu outra alternativa a não ser formalizar sua renúncia, anunciada no dia 25 de dezembro de 1991. Em seguida, passou às mãos de Yeltsin a tchemodântchik, a famosa "pastinha" preta com os códigos de disparo dos mísseis nucleares, até então sob seu controle.

Era o desenlace de uma sucessão de acontecimentos que nenhum analista político, mesmo no início dos anos 8O, teria sido capaz de prever. O bloco comunista havia desmoronado, não por força de um formidável cataclismo nuclear - como se acreditava antes -, mas como resultado de um surpreendente processo de implosão política. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas não existia mais; 74 anos depois, a revolução bolchevique encontrava um melancólico final.

Pá de cal: uma nova ordem

A desarticulação do bloco comunista e a dissolução da União Soviética colocaram um ponto final à guerra fria. Há uma certa divergência, entre diferentes autores, quanto ao marco a partir do qual ela estaria irreversivelmente sepultada. Alguns apontam o mês de novembro de 1989, com a queda do muro de Berlim, como a data crucial. Para outros, contudo, o acontecimento-chave seria o desmantelamento do Pacto de Varsóvia, em julho de 1991. Outros ainda afirmam que a chamada pá de cal só viria mesmo em dezembro de 1991, com a renúncia de Gorbatchev e a dissolução da União Soviética.

Mais importante que eleger um episódio isolado como o mais significativo, no entanto, é compreender que a partir do processo de desintegração do mundo comunista, iniciado nos anos 8O, a política de enfrentamento entre norte-americanos e soviéticos foi declinando até se extinguir por completo, com o colapso final da União Soviética. A experiência socialista parece hoje confinada à pequena ilha de Cuba e à Coréia do Norte. Mesmo a República Popular da China, apesar de manter a linha de centralização política, vem empreendendo reformas econômicas que a aproximam mais e mais da economia de mercado capitalista.

O fim da guerra fria, assim, marca o encerramento de todo um período da história contemporânea. Por mais de quatro décadas, o cenário internacional foi dominado pelas idas e vindas nas relações entre Estados Unidos e União Soviética. Tais relações eram pontuadas por ameaças mútuas, envolvimento em guerras locais, invasões e intervenções, bem como pela perspectiva de que tudo isso acabasse derivando para a pior das conclusões possíveis, a guerra nuclear global. É difícil saber o quanto o mundo esteve próximo do holocausto atômico final; mas é certo que o permanente temor quanto à sua eventual ocorrência deixou marcas profundas. A opinião pública dos anos 5O e 6O acreditava que a humanidade se equilibrava sobre o fio da navalha, mantendo a respiração suspensa quando surgiam episódios como a crise dos mísseis de 1962. Mesmo nos anos 8O, filmes como O dia seguinte, que contava a tragédia dos sobreviventes de um bombardeio atômico, vinham relembrar que o pesadelo nuclear não estava, em absoluto, superado.

Esse clima de sobressalto era intenso o suficiente para contaminar mesmo as camadas mais intelectualizadas. Pensadores ilustres, como o filósofo inglês Bertrand Russell, faziam previsões pessimistas sobre o futuro de um mundo marcado pela hostilidade política e pelo acúmulo de armas nucleares. Em seu artigo "Ciência e guerra", publicado no Brasil em 1955, no livro A ciência e a sociedade, Russell advertia que o planeta se encontrava então numa verdadeira encruzilhada, tendo que optar entre a Razão e a Morte. E concluía sombriamente: "Receio que a humanidade escolha a Morte. Espero estar enganado".



A volta do nacionalismo



O apocalipse nuclear não veio, como sabemos hoje, mas isso não significou a vitória da Razão, como esperava Bertrand Russell. O fim do chamado equilíbrio do terror não foi seguido por uma situação de ampla estabilidade internacional. Se por um lado a possibilidade de uma conflagração nuclear de proporções globais parece quase totalmente afastada, por outro surgiu uma série de novos e sangrentos conflitos locais, vários deles nos países do antigo bloco comunista. Além disso, não seria demais lembrar que o antigo arsenal nuclear soviético, antes unificado, está atualmente fragmentado entre algumas das repúblicas que surgiram com a desintegração política da União Soviética.

Quase tão surpreendente quanto a velocidade com que o velho bloco comunista se desintegrou é a constatação da força com que antigas disputas, religiosas e étnicas, voltaram a se manifestar com o seu desaparecimento. A Iugoslávia, por exemplo, fragmentou-se em nada menos que cinco nações independentes, em processo acompanhado de acirradas lutas pelo estabelecimento de novas fronteiras entre elas. Numa dessas nações, a Bósnia-Herzegovina, os choques entre nacionalistas sérvios e muçulmanos fez da capital, Sarajevo, um sangrento campo de batalha. E a própria Rússia de Bóris Yeltsin viu-se às voltas com a emergência de um movimento separatista na região da Chechênia, duramente reprimido por Moscou.

Movimentos dessa natureza surgem no contexto de um difícil quadro de crise econômica, decorrente dos tortuosos caminhos pelos quais os países do antigo bloco comunista vêm procurando converter suas economias ao capitalismo. As dificuldades dessa transição têm provocado outro fenômeno, a imigração de grandes contingentes populacionais em busca de melhores condições de vida nos países da Europa ocidental. De acordo com os cálculos da ONU, cerca de 1,3 milhão de pessoas deixaram o Leste europeu entre 1990 e 1991. Tal fluxo migratório, somado a outros que já vinham ocorrendo de habitantes das antigas colônias européias da África, por exemplo -, acabou levando à eclosão de uma nova onda de hostilidade contra os estrangeiros no oeste europeu.

Partidos e grupos de direita, assim, tiveram uma relativa expansão em países como a França e a Alemanha, ao defender publicamente a expulsão de estrangeiros. Na Europa pós-guerra fria, cada vez mais a antiga divisão entre países comunistas e não comunistas vem dando lugar à separação entre países ricos e países pobres, com os primeiros procurando isolar suas fronteiras da invasão de imigrantes dos segundos.



Uma nova ordem internacional



Paradoxalmente, essa nova onda de nacionalismo e separatismo amplia-se ao mesmo tempo em que se desenvolve outra tendência no cenário mundial do pós-guerra fria: a integração econômica internacional. Novos blocos e acordos econômicos, como o NAFTA (entre Estados Unidos, Canadá e México), o Tratado de Maastricht (entre 12 países europeus), que constituiu a União Européia, e mesmo o Mercosul (entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai), sugerem uma substituição da antiga competição militar pela competição comercial.

Dentro desse novo contexto, alguns autores chegaram a comentar ironicamente que os verdadeiros vencedores da guerra fria não teriam sido os Estados Unidos, mas a Alemanha e o Japão - exatamente duas das potências derrotadas na Segunda Guerra Mundial. Protegidas por sua aliança política com Washington no pós-guerra, puderam dedicar-se ao preparo de um processo interno de arranque econômico que lhes valeu a conquista de crescentes parcelas do mercado internacional. De fato, a Alemanha, mesmo arcando com os custos da reunificação, permanece como a economia mais forte dentro da União Européia, ao mesmo tempo que o Japão se transformou em modelo internacional de competitividade industrial.

Seja como for, dentro do novo cenário internacional os Estados Unidos continuam a ser a grande força política. Ao contrário da Alemanha e do Japão, fortes em termos econômicos, mas fracos em termos militares, ou da Rússia que, apesar da crise econômica, mantém grande parte da potência militar do antigo Exército Vermelho -, os Estados Unidos aparecem como o único país que é simultaneamente uma potência econômica e militar.

Não há dúvida de que a guerra fria, como capítulo da história contemporânea, foi definitivamente superada, dando origem a uma nova ordem internacional. É cedo demais, contudo, para tirar conclusões definitivas quanto às características dessa nova ordem. A proliferação de conflitos e crises regionais parece desmentir as previsões róseas de um futuro em que o militarismo daria lugar ao amplo intercâmbio comercial entre as nações e a uma situação de ampla prosperidade coletiva. Principalmente porque, àqueles que procuram antecipá-la, a História costuma apresentar um inesgotável arsenal de surpresas.

Cronologia



1943

Dezembro: encontro de Roosevelt, Churchill e Stalin na Conferência

de Teerã.



1945

Fevereiro: novo encontro de Roosevelt, Churchill e Stalin na Conferência de Ialta.



Maio: a Alemanha nazista rende-se aos Aliados.



Junho: assembléia de fundação da ONU.



Julho: encontro de Truman, Churchill e Stalin na Conferência

de Potsdam.



Agosto: os Estados Unidos realizam ataque nuclear às cidades

japonesas de Hiroshima e Nagasaki.



1946

Março: Churchill discursa em Fulton, nos Estados Unidos, atacando a União Soviética.



1947

Junho: lançamento do Plano Marshall.



Setembro: criação do Kominform; criação da CIA.

1948

Junho: bloqueio de Berlim.

1949

Março: formação da OTAN.

Agosto: a União Soviética explode a primeira bomba atômica.

Outubro: proclamada a República Popular da China; divisão da Alemanha em República Federal da Alemanha e República Democrática Alemã.



1950

Junho: início da Guerra da Coréia.



1952

Outubro: a Inglaterra explode sua primeira bomba atômica.

Novembro: os Estados Unidos explodem a primeira bomba H.

1953

Março: morte de Stalin.

Julho: armistício na Coréia.

Agosto: a União Soviética explode sua primeira bomba H; golpe no Irã.



1954

Junho: golpe na Guatemala.



1955

Maio: assinatura do Pacto de Varsóvia.

1956

Fevereiro: Kruschev anuncia a política de desestalinização no

XX Congresso do PCUS.

Novembro: intervenção soviética na Hungria.



1957

Outubro: a União Soviética lança o Sputnik 1.



1958

Dezembro: Fidel Castro derruba o governo de Fulgêncio Batista em Cuba.



1959

Setembro: Kruschev visita os Estados Unidos.



1960

A França realiza seu primeiro teste nuclear.

Maio: avião U-2 dos Estados Unidos cai na União Soviética, durante missão de espionagem.



1961

Janeiro: John Kennedy toma posse como presidente dos Estados Unidos.

Abril: incidente da baía dos Porcos, em Cuba.

Agosto: início da construção do muro de Berlim.



1962

Setembro-novembro: crise dos mísseis.



1963

Início da intervenção militar dos Estados Unidos no Vietnã.

Junho: criação do telefone vermelho.

Agosto: Tratado de Moscou limita os testes nucleares a céu aberto. Outubro: queda de Kruschev. Novembro: Kennedy é assassinado; Lyndon Johnson assume a Presidência dos Estados Unidos.



1965

Abril: intervenção norte-americana em São Domingos, capital da República Dominicana.



1968

Agosto: intervenção soviética na Tchecoslováquia.



1969

Janeiro: Richard Nixon assume a Presidência dos Estados Unidos. Julho: a nave Apoio 11 leva astronautas norte-americanos à Lua.



1972

Fevereiro: Nixon visita a República Popular da China.



1973

Janeiro: assinatura de tratado de paz no Vietnã.



1974

Agosto: o escândalo de Watergate leva à renúncia de Nixon, nos Estados Unidos. Gerald Ford assume a Presidência.



1977

Janeiro: Jimmy Carter é o novo presidente dos Estados Unidos.



1979

Janeiro: o xá Mohammed Reza Pahlevi é derrubado no Irã.

Fevereiro: o aiatolá Khomeini anuncia a formação de uma República Islâmica. Julho: a Frente Sandinista de Libertação Nacional derruba o governo de Somoza e assume o poder na Nicarágua. Agosto: o movimento sindical polonês Solidariedade desencadeia uma greve no Estaleiro Lênin, em Gdansk.

Dezembro: a União Soviética invade o Afeganistão.



1981

Janeiro: Ronald Reagan toma posse como presidente dos Estados Unidos.



1982

Novembro: após a morte de Leonid Brejnev, Yuri Andropov assume o cargo de secretário-geral do PCUS.



1984

Fevereiro: Konstantin Chernenko assume o cargo de secretário-geral do PCUS após a morte de Yuri Andropov.



1985

Março: com a morte de Konstantin Chernenko, Mikhail Gorbatchev assume o cargo de secretário-geral do PCUS.



1986

Fevereiro: Gorbatchev anuncia seu programa de reformas políticas (glasnost) e econômicas (Perestroika).

Novembro: o jornal Washington Post denuncia o escândalo Irã-Contras.



1987

Dezembro: Visita de Gorbatchev aos Estados Unidos; assinado o primeiro acordo de desativação de toda uma classe de armas

nucleares.

1989

Março: eleições gerais para a escolha do Congresso do Povo, na União Soviética.

Novembro: queda do muro de Berlim.

Dezembro: Nicolae Ceausescu é executado na Romênia.



1990

Outubro: reunificação da Alemanha.



1991

Agosto: tentativa frustrada de golpe contra Gorbatchev. Dezembro: Gorbatchev renuncia; a União Soviética é formalmente dissolvida. Dispondo de vastos recursos expropriados dos países do Terceiro Mundo, como o Brasil, os EUA levaram a Corrida Armamentista ao paroxismo e, além de "quebrar" financeiramente a URSS então preocupada com temas mais relevantes do que armamentos (saúde do povo, moradias, distribuição de produtos, etc) acaba sucumbindo à corrupção estatal e à avassaladora superioridade econômica do Império Ianque.



2010



Muitos russos, hoje se vendo em face a problemas inexistentes no período da economia planificada (conhecido como "socialismo"), tais como: prostituição, miséria, tráfico humano e de entorpecentes, supermercados abarrotados e ninguém com dinheiro para comprar... Muitos refletem se não estavam pelo menos um pouco melhor antes: poucas liberdades civis, mas equânime distribuição de riquezas... Com a palavra, os russos do Futuro.




http://www.culturabrasil.org/guerrafria.htm
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...