terça-feira, 24 de agosto de 2010

Congresso absolve MST

Por Frei Betto

05-Ago-2010
O MST jamais desviou dinheiro público para realizar ocupações de terra – eis a conclusão da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito), integrada por deputados federais e senadores, instaurada para apurar se havia fundamento nas acusações, orquestradas pelos senhores do latifúndio, de que os movimentos comprometidos com a reforma agrária se apoderaram de recursos oficiais.

Em oito meses, foram convocadas treze audiências públicas. As contas de dezenas de cooperativas de agricultores e associações de apoio à reforma agrária foram exaustivamente vasculhadas. Nada foi apurado. Segundo o relator, o deputado federal Jilmar Tatto (PT/SP), "foi uma CPMI desnecessária".

Não tão desnecessária assim, pois provou, oficialmente, que as denúncias da bancada ruralista no Congresso são infundadas. E constatou-se que entidades e movimentos voltados à reforma fundiária desenvolvem sério trabalho de aperfeiçoamento da agricultura familiar e qualificação técnica dos agricultores.

O que os denunciantes buscavam era reaquecer a velha política – descartada pelo governo Lula – de criminalizar os movimentos sociais brasileiros. Esse tipo de terrorismo tupiniquim a história de nosso país conhece bem: Monteiro Lobato foi preso por propagar que havia petróleo no Brasil (o que prejudicou os interesses usamericanos); foram chamados de comunistas os que defendiam a criação da Petrobras; e, de terroristas, os que lutavam contra a ditadura e pela redemocratização do país.

A Comissão Parlamentar significou, para quem insistiu em instaurá-la, um tiro saído pela culatra. Ficou claro para deputados e senadores bem intencionados que é preciso votar, o quanto antes, o projeto de lei que prevê a desapropriação de propriedades rurais que utilizam trabalho escravo em suas terras. E resolver, o quanto antes, a questão dos índices de produtividade da terra.

A investigação trouxe à luz, não a suposta bandidagem do MST e congêneres, como acusavam os senhores do latifúndio, e sim a importância desses movimentos no atendimento à população sem-terra. Eles cuidam da organização de acampamentos e assentamentos e, assim, evitam a migração que reforça, nas cidades, o cinturão de favelas e o contingente de famílias e pessoas desamparadas, sujeitas ao trabalho informal, ao alcoolismo, às drogas, à criminalidade.

Segundo Jilmar Tatto, os inimigos da reforma agrária "fizeram toda uma carga, um discurso muito raivoso, colocaram dúvidas em relação ao desvio de recursos públicos e perceberam que a montanha tinha parido um rato. Porque não havia desvio nenhum. As entidades e o governo abriram todas as suas contas. Foram transparentes e, em nenhum momento, conseguiu-se identificar um centavo de desvio de recurso público. Foram desmoralizados (os denunciantes), e resolveram se ausentar dos trabalhos da CPMI. (...) Foi um trabalho produtivo, no sentido de deixar claro que não houve desvio de recurso público para fazer ocupação de terras no Brasil. O que houve foi a oposição fazendo uma carga muito grande contra o governo e o MST".

Os parlamentares sensíveis à questão social no Brasil se convenceram, graças ao trabalho da comissão, que é preciso aumentar os recursos para a agricultura familiar; garantir que a legislação trabalhista seja aplicada na zona rural; e incentivar sempre mais os plantios alternativos e os alimentos orgânicos, sobre cuja qualidade nutricional não paira a desconfiança que pesa sobre os transgênicos. E, sobretudo, intensificar a reforma agrária no país, desapropriando, como exige a Constituição, as terras improdutivas.

Dados recentes mostram que, no Brasil, se ocupam 3 milhões de ha (hectares) com a lavoura de arroz e 4,3 milhões com feijão. Segundo o geógrafo Ricardo Alvarez, se compararmos com os 851 milhões de ha que formam este colosso chamado Brasil, veremos que as cifras são raquíticas. Apenas 0,85% do território nacional está ocupado com o cereal e leguminosa. Um aumento de apenas 20% na área plantada significaria passar de 7,3 para 8,7 milhões de ha, com forte impacto na alimentação do povo brasileiro.

Para Alvarez, o aumento da produção levaria à queda de preços, ruim para o produtor, bom para os consumidores. Caberia, então, ao governo implantar uma política de ampliação da produção de alimentos, garantir preços mínimos, forçar a ocupação da terra, combater o latifúndio, gerar empregos no campo e atacar a fome. Ação muito mais eficiente, graças aos 20% de acréscimo na área plantada, do que o assistencialismo alimentar.

O latifúndio ocupa, hoje, mais de 20 milhões de ha com soja. No início dos anos 90, o número beirava os 11,5 milhões. A cana-de-açúcar foi de 4,2 para 6,5 milhões de ha no mesmo período. Arroz e feijão sofreram redução da área plantada. Hoje o brasileiro consome mais massas do que a tradicional combinação de arroz e feijão, de grande valor nutritivo.

Alvarez conclui: "Não faltam terras no Brasil, faltam políticas de distribuição delas. Não faltam empregos, falta vontade de enfrentar a terra improdutiva. Não falta comida, falta direcionar a produção para atender as necessidades básicas de nossa população".

Frei Betto é escritor, autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O papel crucial do MST na sociedade brasileira

17 de agosto de 2010


Por Isabel Loureiro
Presidente do Instituto Rosa Luxemburg,
mestre e doutora em Filosofia pela USP


Desde que foi fundado em 1984, o MST nunca teve a vida fácil. Logo, não é novidade a atual campanha difamatória dos meios de comunicação e do Judiciário, procurando desmoralizar o movimento. O público leigo, perdido num emaranhado de informações desencontradas, de simplificações grosseiras e preconceituosas, não consegue formar uma imagem minimamente coerente do MST. Mas para o estudioso do tema também não são pequenas as dificuldades, embora de origem diferente. Por um lado, dados frequentemente pouco confiáveis, por outro, o caráter dinâmico e flexível do MST, dificultam a análise objetiva do maior e mais importante movimento social da América Latina nos últimos 25 anos.

Por isso é digna de aplauso a iniciativa da Editora Unesp de publicar esta coletânea organizada por Miguel Carter*, reunindo estudos produzidos para uma conferência internacional no Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford, em 2003, e revistos até 2007, com a finalidade de investigar a desigualdade no campo, suas origens, consequências e reações atuais a essa situação. O maior mérito da obra, além de outros que comentaremos a seguir, consiste não só em sistematizar a vasta literatura existente sobre o tema, mas também, a partir de um levantamento empírico meticuloso, organizar com extremo rigor dados esparsos, provenientes de diversas fontes, sobretudo oficiais, a respeito da questão agrária e do MST no Brasil.

O livro divide-se em quatro partes, além de uma Introdução e uma Conclusão do organizador em que procura organizar as contribuições dos vários autores (Brasil, Inglaterra, Estados Unidos, México, Argentina e Paraguai), especialistas em questão agrária e movimentos sociais, a partir da tese, amplamente demonstrada nos 18 artigos, de que o MST, contrariamente ao que afirmam seus detratores, contribui para o fortalecimento da democracia no Brasil. A primeira parte da coletânea trata dos antecedentes históricos do MST, a segunda da luta pela terra (acampamentos), a terceira da luta na terra (assentamentos), a quarta das relações entre o MST, a política e a sociedade no Brasil.

O tema da desigualdade é introduzido, de maneira muito pertinente, a partir da comparação entre dois eventos contrastantes ocorridos no primeiro semestre de 2005: a Marcha do MST, em que durante 16 dias, 12 mil trabalhadores rurais percorreram mais de 200 quilômetros de cerrado até chegar a Brasília, e a inauguração da Daslu, “a maior loja de departamentos de produtos de luxo do planeta” (p.35), com a presença do governador e do prefeito de São Paulo.

A Marcha, cujo objetivo era pressionar o governo Lula a favor da reforma agrária, apoiada numa logística sofisticada e em recursos provenientes de várias fontes (assentamentos, organizações religiosas, governos estaduais e municipais, simpatizantes dentro e fora do Brasil) transcorreu num clima de harmonia e tranquilidade. Contudo, a mídia que dela pouco falou, e só para denegri-la, tratou de maneira benevolente a dona da Daslu, presa pela polícia federal em julho de 2005, acusada de sonegar impostos (24 milhões de reais em 10 meses). Carter considera essas duas cenas contrastantes emblemáticas do Brasil do começo do século XXI, assim como o tratamento dado a cada uma delas pela grande imprensa. Enquanto os principais noticiários televisivos julgavam como um ato de corrupção política o gasto da Marcha de 300 mil reais com água e alimentação, os 24 milhões sonegados pela Daslu eram perdoados.

E conclui com os dados chocantes – e bem conhecidos – sobre a desigualdade no Brasil. Segundo um relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 2005, os 10% mais ricos da população detêm 46% da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres apenas 13%. Somente alguns países africanos muito pobres têm desigualdade maior que o Brasil. No campo a situação é ainda pior. 1% dos proprietários rurais controla 45% das terras cultiváveis, enquanto 37% possuem apenas 1% da mesma área. “Sem dúvida, o Brasil é uma das nações com a maior concentração de terra do mundo. A atual estrutura agrária tem raízes profundas na história do país. Ela foi forjada durante o período colonial, com a concessão de extensas sesmarias a famílias portuguesas privilegiadas e a instituição de um regime de trabalho baseado na escravidão. A acentuada assimetria fundiária foi mantida posteriormente sob diferentes sistemas políticos: império, república oligárquica, governo militar e democracia política.” (p.36)

Carter tem razão quando afirma existir um vínculo profundo entre os dois mundos – a pobreza iníqua é o reverso da riqueza obscena. É essa situação tão absurdamente injusta que faz que o MST não seja apenas um movimento restrito à reforma agrária, mas que “desafia as desigualdades seculares do Brasil.” (p.37)

Num apanhado rápido dos vários tipos de reforma agrária no mundo no século XX, e pior, numa comparação entre o Brasil e a América Latina, o Brasil fica em último lugar nesse quesito. Carter mostra, com grande riqueza de dados, que os países em desenvolvimento que fizeram reforma agrária têm menos desigualdade social. Já no Brasil a também desigual distribuição do poder – uma super-representação dos interesses dos grandes proprietários rurais e uma subrepresentação dos sem-terra – impede a reforma agrária e outras políticas de redistribuição de renda.

Em resumo, a luta pela terra e na terra precisa ser compreendida nesse contexto em que prevalecem, desde a colônia, relações de extrema desigualdade que impedem uma reforma agrária progressista. É isso que explica em grande parte a força, a fraqueza e os limites do MST.

A luta pela terra

A luta por reforma agrária no Brasil aparece sob dois aspectos: primeiro, pela ocupação de terras, ainda a principal forma de acesso à terra. Há unanimidade entre os autores a respeito da relação estreita entre ocupação e desapropriação de terras no Brasil (85% dos assentamentos foram resultado de ocupações). E segundo, pela atuação dos movimentos camponeses (de 2000 a 2006 foram contabilizados 86 movimentos camponeses) para pressionar o Estado a adotar políticas de crédito, educação, moradia, saúde, etc. A resposta do Estado a essas reivindicações tem sido, de 1985 até hoje, a adoção de uma “reforma agrária conservadora” (p.290): repartição de terras sob pressão social; tempo muito longo (em média 4 anos) para a desapropriação do imóvel ocupado; violação dos direitos humanos: os assassinatos no campo ficam impunes na grande maioria [1]; distribuição residual de terras; pequeno apoio aos assentamentos (p.291-2).

Aliás, Plínio de Arruda Sampaio considera que a questão agrária só entrou de fato na agenda política em 1995, no governo FHC, depois dos massacres de Corumbiara (Rondônia) e Eldorado de Carajás (p.401). Foi quando o MST conseguiu amplo apoio para a causa da reforma agrária, que desde então continua, sem avanços significativos, na agenda política.

Vários artigos, ao recuperarem o contexto no qual nasceu o MST, mostram como o atual modelo de desenvolvimento agrário do Brasil, fundado no agronegócio e na proteção da grande propriedade fundiária, foi desenvolvido e financiado pelo regime militar, mantendo-se assim desde então, apesar da democratização do regime político, das leis a favor da reforma agrária e da demanda popular por terra (p.514).

Entre os vários artigos que refazem a história do MST, o de Bernardo Mançano Fernandes é particularmente elucidativo. Numa excelente síntese do processo de formação, consolidação e institucionalização do MST, o autor mostra como o movimento foi se estruturando de maneira realista e pragmática em resposta às políticas mais, ou menos, repressivas, mais, ou menos, simpáticas à causa da reforma agrária, por parte do governo federal.

Com a eleição de Lula, o MST tinha a esperança de que seu aliado histórico finalmente realizasse uma reforma agrária digna do nome. Apesar de o governo Lula ter superado o de FHC em número de famílias assentadas por ano (p.191), Mançano lembra que grande parte da área incorporada à reforma agrária “são terras de florestas nacionais e reservas extrativistas localizadas na Amazônia” (p.191); além disso, uma parte das famílias foi assentada em assentamentos já existentes ou implantados em terras públicas (p.192).

Os dados são inquestionáveis mostrando que não só não houve vontade política para diminuir a concentração da propriedade da terra, como foi explícita a opção pelo agronegócio. Tanto que o plano de reforma agrária encomendado a Plínio de Arruda Sampaio em 2003, concebido como uma política de transformação profunda da estrutura fundiária do país, foi adotado numa versão diluída, sob a alegação de não ser realista. (p.190)

Todos os autores enfatizam que a partir do começo dos anos 1990 mudou o eixo da questão agrária no Brasil, tendo o agronegócio passado a ser o principal obstáculo à reforma agrária e à agricultura camponesa, e não mais o latifúndio improdutivo. O agronegócio, num jogo de cartas marcadas – basta lembrar a não atualização dos índices de produtividade para efeito de desapropriação de terras – continua sendo fortemente subsidiado: durante o governo Lula, obteve sete vezes mais recursos que a agricultura familiar, responsável por 87% dos empregos no campo.

Tudo leva a pensar que é o poder do agronegócio e das transnacionais que está por trás da campanha difamatória contra o MST e seus métodos de democratização da propriedade rural (ocupações de terra, de prédios públicos, ações contra a Monsanto e a Aracruz Celulose, devido aos transgênicos e às plantações de eucaliptos) por parte da grande mídia, do Judiciário e de intelectuais conservadores, que veem a solução do problema agrário na modernização tecnológica, sem distribuição de terras. O movimento é classificado por eles como anacrônico e retrógrado, a reforma agrária como obsoleta, os assentamentos descritos como favelas rurais.

Contra as caricaturas do movimento como “fundamentalista”, “terrorista”, “ameaça perigosa”, “irracional”, Carter mostra que o MST, como associação de pessoas pobres, é um movimento que adota uma prática racional de enfrentamento da questão agrária e contribui, por várias razões, para o fortalecimento da democracia no Brasil: combate as enormes disparidades sociais; organiza e incorpora setores marginalizados da população; desenvolve o exercício da cidadania entre os pobres nas três dimensões contemporâneas dessa ideia: direitos civis, políticos e sociais; exerce o “ativismo público”, isto é, utiliza a pressão popular para negociar com o governo; defende ideais utópicos, em aberto, que fazem avançar a democracia.

Na situação de extrema desigualdade que caracteriza o Brasil, em que a paralisia patrimonialista e oligárquica contamina todas as forças, até mesmo as progressistas, só com pressão social um movimento de pessoas pobres pode chamar a atenção da sociedade e ter acesso aos fundos públicos, já que não tem representação no Congresso, nem influência na grande mídia. Segundo Carter, o que explica a força e a originalidade do MST – não por acaso ele é o movimento social mais longevo da América Latina – é sua “capacidade de sustentar e equilibrar a firmeza de seus ideais com a busca de soluções práticas para atender seus problemas quotidianos.” (p.231)

A luta na terra

A parte do livro que trata dos assentamentos é a mais interessante. Artigos baseados em minuciosas pesquisas de campo expõem com franqueza os problemas enfrentados pelos trabalhadores rurais após terem tido acesso à terra. O primeiro refere-se à heterogeneidade dos assentamentos, que variam em tamanho, lugar, origem cultural dos assentados, qualidade da terra. Outro problema é o baixo nível de instrução dos assentados, em sua grande maioria provenientes do meio rural: 1/3 não foi à escola; 87% só chegaram à quarta série. E, por fim, um obstáculo cultural muito poderoso: o mandonismo, clientelismo, machismo e racismo característicos do meio rural contaminam os assentamentos. Quem acompanha a vida do MST sabe desse problema e como ele é tenazmente combatido nos cursos de formação política.

O livro deixa claro que os casos concretos de fracasso nos assentamentos devem levar em conta o contexto. Ou seja, não podemos esquecer as dificuldades na obtenção de crédito, a localização dos assentamentos em regiões inacessíveis, longe dos mercados e serviços públicos. No entanto, apesar de toda a precariedade, os dados mostram também que, graças aos assentamentos, entre 1985-2006, mais de 5 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza conseguiram moradia, renda e alimentação; que o êxodo rural diminuiu; que o aumento do poder aquisitivo dos assentados contribuiu para fortalecer o comércio local; que a mobilização pela terra criou novas demandas: educação, saúde, cultura; que as novas lideranças assim criadas introduziram mudanças políticas nos municípios; e, por fim, um argumento pragmático: a criação de um posto de trabalho gerado pela reforma agrária é muito mais barata que na indústria, comércio ou serviços (p.302).

Os desafios colocados pela vida nos assentamentos levaram à ampliação dos horizontes do MST, que passou a incluir novos temas na sua agenda a fim de complementar a análise de classe: gênero, ecologia, direitos humanos, saúde, diversidade cultural, soberania alimentar, soberania nacional, solidariedade internacional (p.308). Essa flexibilidade do movimento, que se formou e se constrói na luta, é sem dúvida uma das razões do seu sucesso. Mas o que distingue o MST de outros movimentos camponeses passados e presentes é o enorme investimento na educação, qualificação e formação política de seus integrantes. Um número apenas: de 1988 a 2002 o setor de formação ministrou cursos e oficinas para mais de 100 mil militantes. (p.320)

Todos os autores, mesmo reconhecendo que o MST não é uma “sociedade de anjos”, concordam que ele é um fator civilizador na sociedade brasileira. Por exemplo, na medida em que recorre à justiça (que no caso brasileiro é profundamente injusta, burocrática e permeada por preconceitos de classe), ele contribui para democratizá-la. Como mostra George Meszaros, foi o que ocorreu em 1996, quando o Superior Tribunal de Justiça determinou que as ocupações de terra com o fim de acelerar a reforma agrária são “substancialmente distintas” de atos criminosos contra a propriedade. Com isso, contribui para o debate sobre a interpretação das leis existentes.

Mas sobretudo, a esperança – e é preciso reconhecer que ela tem sólidos fundamentos – que desponta em alguns dos artigos é que a crescente preocupação com os problemas ecológicos do planeta talvez possa fazer com que em breve o agronegócio, baseado num modelo produtivo industrial de alto custo ambiental (uso de transgênicos e agrotóxicos), se torne uma prática arcaica.

Nessa perspectiva, o MST exerce um papel crucial na sociedade brasileira porque, além de manter a reforma agrária na ordem do dia, contribui para difundir valores não-capitalistas no meio rural, sobretudo com uma concepção de produção camponesa em que a terra é usada para viver, e não para negociar. Com isso, ajuda a reconstituir a identidade cultural de populações tradicionais, cujos modos de vida foram destruídos pela modernização capitalista, que acarretou dificuldades quase insuperáveis para a agricultura camponesa, obrigando os pequenos camponeses a virarem trabalhadores assalariados.

E o mais fundamental, o MST insere a luta camponesa num projeto amplo de transformação econômica, social e política do país e numa disputa a respeito do modelo de civilização: ou a continuação do sistema de produção e consumo capitalista, baseado na lógica do progresso e do crescimento sem limites, levando ao esgotamento dos recursos do planeta, ou um sistema socialista, assentado em relações fraternas, justiça social e na ideia de uma vida harmoniosamente minimalista, em equilíbrio com a natureza.

Notas:

[*] Miguel Carter (org.), São Paulo: Editora Unesp, Centre for Brazilian Studies, Universidade de Oxford, NEAD, MDA, 2010, 563 p.

[1] Segundo dados recentes do próprio MST, dos 1.600 assassinatos de trabalhadores e lideranças no campo de 1985 até hoje, apenas 80 têm processos judiciais, 16 responsáveis foram condenados e apenas 8 estão presos. Cf. MST informa, no 182, 23/04/2010.

Eu apóio o MST

sábado, 14 de agosto de 2010

"Reforma Agrária Popular depende de novo modelo de desenvolvimento"

Entrevista com João Pedro Stédile

Por Nilton Viana
Do Brasil de Fato

A candidatura de José Serra (PSDB) representa o núcleo central dos interesses da burguesia e a volta do neoliberalismo. Esta é a avaliação João Pedro Stedile. Em sua primeira entrevista ao Brasil de Fato, o dirigente nacional do MST e da Via Campesina constata que, no atual cenário eleitoral, as candidaturas não estão debatendo programas, projetos para a sociedade.

Mas, segundo ele, elas representam claramente interesses diversos de forças sociais organizadas. Nesse sentido, Stedile afirma que Serra representa os interesses da burguesia internacional, da burguesia financeira, dos industriais de São Paulo, do latifúndio atrasado, com Katia Abreu de coordenadora de finanças e setores do agronegócio do etanol. E, frente a esse cenário, defende que, “como militantes sociais, e como movimentos sociais, temos a obrigação política de derrotar a candidatura Serra”.

Com a implementação do modelo neoliberal, os bancos e o capital financeiro aumentaram seus lucros e passaram a dirigir a economia do Brasil, que se sustenta na política de juros altos, meta de inflação, arrocho fiscal e política de exportações. Quais as consequências desse modelo?

Estamos vivendo a etapa do capitalismo que se internacionalizou, dominou toda a economia mundial sob a hegemonia do capital financeiro e das grandes corporações que atuam em nível internacional. O mundo é dominado por 500 grandes empresas internacionalizadas, que controlam 52% do PIB mundial e dão emprego para apenas 8% da classe trabalhadora. As consequências em nível mundial são um desastre, pois toda população e os governos nacionais precisam estar subordinados a esses interesses. E eles não respeitam mais nada, para poder aumentar e manter suas taxas de lucro. Seus métodos vão desde a apropriação das riquezas naturais, deflagração de conflitos bélicos para manter as fontes de energias e controle do Estado, para se apropriarem da mais-valia social ou poupança coletiva através dos juros que os estados pagam aos bancos. No Brasil, a lógica é a mesma. Com um agravante, sendo uma economia muito grande e dependente do capital estrangeiro, aqui o processo de concentração de capital e de riqueza é ainda maior. Esta é a razão estrutural do porquê – apesar de sermos a oitava economia mundial em volume de riquezas – estamos em 72º lugar nas condições médias de vida da população e somos a quarta pior sociedade do mundo em desigualdade social. Portanto, essa fase do capitalismo, em vez de desempenhar um papel progressista no desenvolvimento das forças produtivas e sociais, como foi a etapa do capitalismo industrial; agora, os níveis de concentração e desigualdade só agravam os problemas sociais.

Mesmo com a eleição de governos mais progressistas, o Estado brasileiro mantém seu caráter antipopular, sem a realização de mudanças mais profundas que resolvam os problemas estruturais do país. Como você avalia a democracia e o Estado no Brasil?

Primeiro, há uma lógica natural do funcionamento da acumulação e da exploração do capital que sobrepõe os governos e as leis. Segundo, no período neoliberal, o que o capital fez foi justamente isso, privatizar o Estado. Ou seja, a burguesia transformou o Estado em seu refém, para que ele funcione apenas em função dos interesses econômicos. E sucateou o Estado nas áreas de políticas públicas de serviços que servem a toda população, como educação, saúde, transporte público, moradia etc. Por exemplo, temos 16 milhões de analfabetos. Para alfabetizá-los, custaria, no máximo, uns R$ 10 bilhões. Parece muito – o Estado, com todo seu aparato jurídico impede de aplicar esse dinheiro –, mas isso representa duas semanas do pagamento de juros que o Estado faz aos bancos. Construímos viadutos e estradas em semanas, mas para resolver o deficit de moradias populares é impossível? Temos ainda 10 milhões de moradias faltando para o povo.

Por último, a sociedade brasileira não é democrática. Nós nos iludimos com as liberdades democráticas de manifestação, que conquistamos contra a ditadura, que foram importantes. Mas a verdadeira democracia é garantir a cada e a todos cidadãos direitos e oportunidades iguais, de trabalho, renda, terra, educação, moradia e cultura. Por isso, mesmo quando elegemos governos com propostas progressistas, eles não têm força sufi ciente para alterar as leis do mercado e a natureza do Estado burguês.

Na política internacional, o governo Lula investiu na relação com países do hemisfério Sul, com o fortalecimento do Mercosul e da Unasul, por exemplo. Qual a sua avaliação dessa política e quais os seus limites?

O governo Lula fez uma política externa progressista no âmbito das relações políticas de Estado. E uma política dos interesses das empresas brasileiras, nos seus aspectos econômicos. Comparado às políticas neoliberais de FHC, que eram totalmente subservientes aos interesses do imperialismo, isso é um avanço enorme, pois tivemos uma política soberana, decidida por nós.

Na política, se fortaleceram os laços com governos latinos e daí nasceu a Unasul para a América do Sul, e a Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) para todo o continente, excluindo-se os Estados Unidos e o Canadá. Esses dois organismo representam o fim da OEA. Aliás, já tarde. Na economia se fortaleceram laços econômicos com países do Sul. Mas ainda precisamos avançar mais na construção de uma integração continental que seja de interesse dos povos, e não apenas das empresas brasileiras, ou mexicanas e argentinas.

Uma integração popular latino-americana no âmbito da economia será o fortalecimento do Banco do Sul, para substituir o FMI. O banco da Alba, para substituir o Banco Mundial. E a construção de uma moeda única latino-americana, como é proposto pela Alba, através do sucre, para sair da dependência do dólar. Se queremos independência e soberania econômica nas relações internacionais e latino-americanas, é fundamental colocarmos energias para derrotar o dólar.

O dólar foi fruto da vitória estadunidense na segunda guerra mundial e tem sido, nessas décadas todas, o principal mecanismo de espoliação de todos os povos do mundo. Num aspecto mais amplo, o presidente Lula tem razão: as Nações Unidas não representam os interesses dos povos, e por isso é besteira o Brasil sonhar em ter a presidência. Precisamos é construir novos e mais representativos organismos internacionais. Mas isso não depende de propostas ou vontade política. Depende de uma nova correlação de forças mundial, em que governos progressistas sejam maioria. E hoje não são.

O sistema de televisão e rádio é extremamente concentrado no Brasil, em comparação até com os outros países da América Latina. Quais as consequências disso para a luta política?

Durante o século 20, hegemonizado pela democracia republicana e pelo capitalismo industrial que produziu uma sociedade de classes bem definida, a reprodução ideológica da burguesia se dava pelos partidos políticos, pelas igrejas e pelos sindicatos e associações de classe. Agora, na fase do capitalismo internacionalizado e financeiro, a reprodução da ideologia dominante se dá pelos meios de comunicação, em especial redes de televisão e as agências internacionais de noticias.

A burguesia descartou os outros instrumentos e prioriza estes, os quais tem controle total. Por isso, no Brasil, na América Latina e em todo o mundo, os meios de comunicação estão sob controle absoluto das burguesias. E eles usam como reprodução ideológica, como fonte de ganhar dinheiro e como manipulação política. E como seus patrões estão internacionalizados, suas pautas e agendas estão também centralizadas.

Por isso, a construção de um regime político mais democrático, mesmo nos marcos do capitalismo, depende fundamentalmente da democratização dos meios de comunicação. Isso é fundamental para garantir o direito ao acesso à informação honesta e impedir a manipulação das massas. E os governos deveriam começar eliminando a publicidade estatal, em qualquer nível, em qualquer meio de comunicação. É uma vergonha o que se gasta em publicidade oficial. No Paraná, para se ter uma ideia, em oito anos de governo Lerner [1995-2002], o Estado pagou mais de R$ 1 bilhão em publicidade para dois ou três grupos de comunicação.

As grandes cidades brasileiras enfrentam problemas como falta de habitação, saneamento básico, escolas, hospitais, além de trânsito e violência. Como você analisa a questão urbana?

A maior parte da população se concentra nas grandes cidades, e aí estão concentrados também os pobres e os maiores problemas resultantes desse modelo capitalista, e de um Estado que atua somente em favor dos ricos. Os pobres das grandes cidades se amontoam nas periferias, não têm direito a moradia, escola, transporte público decente, trabalho, renda. Nem a lazer. Sobram os programas de baixaria da televisão como lazer. Nesse contexto é evidente que o sistema gera um ambiente propício para o narcotráfico, para a violência social.

E o Estado, o que tem feito através dos mais diferentes governos?

A única resposta tem sido a repressão. Mais polícia, mais violência oficial, mas cadeia. As cadeias estão cheias de pobres, jovens, mulatos ou negros. Há uma situação insustentável de tragédia social. Todos os dias assistimos os absurdos da desigualdade social, do descaso do Estado e da truculência do capital.

As estatísticas são aterrorizantes: 40 mil assassinatos por ano nas grandes cidades, a maioria pela polícia. Por isso os movimentos sociais apoiaram a campanha pelo desarmamento. Mas a força das empresas bélicas financiou deputados, campanhas etc., e o povo caiu na ilusão de que o problema da violência urbana se resolveria tendo o direito de ter arma.

Acredito que a pobreza e a desigualdade nas grandes cidades brasileiras é o problema social mais grave que temos. Infelizmente nenhum candidato está debatendo o tema, nem quando o debate é para prometer segurança! Segurança para quem? As famílias precisam de segurança de trabalho, renda, escola para os filhos.

Nas eleições presidenciais, o quadro apresenta duas candidaturas que polarizam a disputa, enquanto as outras não demonstram força para mudar essa situação. Nessa conjuntura, quem abre melhores perspetivas para a classe trabalhadora e para a reforma agrária?

As candidaturas não estão debatendo programas, projetos para a sociedade. Mas as candidaturas representam claramente interesses diversos de forças sociais organizadas. Serra representa os interesses da burguesia internacional, da burguesia financeira, dos industriais de São Paulo, do latifúndio atrasado, com sua Katia Abreu de coordenadora de finanças, e setores do agronegócio do etanol.

Dilma representa setores da burguesia brasileira que resolveram se aliar com Lula, setores mais arejados do agronegócio, a classe média mais consciente, e praticamente todas as forças da classe trabalhadora organizada. Vejam, apesar de toda popularidade do Lula, nessa campanha, a Dilma reuniu mais forças da classe trabalhadora do que na eleição de 2006.

A candidatura da Marina representa apenas setores ambientalistas e da classe média dos grandes centros, e por isso seu potencial eleitoral não decola. E temos três candidaturas de partidos de esquerda, com companheiros de biografia respeitada de compromisso com o povo, mas que não conseguiram aglutinar forças sociais ao seu redor, e por isso, o peso eleitoral será pequeno.

Nesse cenário, nós achamos que a vitória da Dilma permitirá um cenário e correlação de forças mais favoráveis a avançarmos em conquistas sociais, inclusive em mudanças na política agrícola e agrária. E evidentemente que nesse cenário incluímos a possibilidade de um ambiente propício para maior mobilização social da classe trabalhadora como um todo, para a obtenção de conquistas. Como militantes sociais, e como movimentos sociais, temos a obrigação política de derrotar a candidatura Serra, que representa o núcleo central dos interesses da burguesia e a volta do neoliberalismo.

O MST apresentou uma avaliação de que a luta eleitoral não é sufi ciente para a realização das mudanças sociais. Por outro lado, analisa que é um momento importante no debate político. Como o MST vai se envolver nessas eleições?

A esquerda brasileira, os movimentos sociais e políticos ainda estão aturdidos com a derrota político-ideológica-eleitoral que sofremos em 1989. Isso levou a muitas confusões, e também a alguns desvios de setores da classe. Vivemos um período da história da luta de classes de nosso país – e poderíamos dizer em nível internacional, na maioria dos países – em que a estratégia para conseguir acumular forças para mudanças sociais é a combinação da luta institucional com a luta social.

Na luta institucional, compreendemos a visão gramsciana na qual os interesses da classe trabalhadora precisam disputar e ter hegemonia na disputa de governos nos três níveis: municipal, estadual e federal. Nos espaços do conhecimento, universidade, meios de comunicação. Nos sindicatos, igrejas e outras instituições da sociedade de classes. E a luta social são todas as formas de mobilização de massa, que possibilitam o desenvolvimento da consciência de classe e a conquista de melhores condições de vida – sabendo que elas dependem de derrotar os interesses do capital.

Pois bem, o que aconteceu no último período? Parte da esquerda e da classe trabalhadora priorizou a luta institucional da disputa apenas de governos e menosprezou, desdenhou a luta social. E parte dos movimentos sociais, desencantado com a crise ideológica, desdenhou a luta institucional, como se a luta direta, de massas, fosse sufi ciente. Luta social apenas, sem disputar projeto político na sociedade e sem disputar os rumos institucionais do Estado, não consegue acumular para a classe. Podem até eventualmente resolver problemas pontuais da classe, mas não mudam a natureza estrutural da sociedade.

O MST compreende que devemos aglutinar, combinar, estimular as duas formas de luta, de forma permanente. Para que com isso possamos acumular forças, organizadas, de massa, de forma orgânica, que construa um projeto político da classe e ao mesmo tempo crie condições para o reascenso do movimento de massas, pois este é o período histórico em que a classe tem condições de ir para a ofensiva, de tomar inciativa política, de pautar seus temas para todo o povo. Por isso, claro que todo militante do MST, como cidadão consciente, deve arregaçar as mangas e ajudar a eleger os candidatos mais progressistas em todos os níveis. Isso é uma obrigação de nosso compromisso com a classe.

Desde os tempos do governo FHC, José Serra fez declarações contra a reforma agrária e o MST. No entanto, nas últimas semanas, vem intensificando os ataques. Na sua visão, por que ele vem agindo dessa forma?

Por dois motivos. Primeiro, porque as forças sociais que ele representa agora, como porta-voz maior, são as forças da classe dominante do campo e da cidade, que são contra os interesses dos camponeses, da classe trabalhadora em geral e do povo brasileiro. Portanto, ele é contra a reforma agrária não porque não goste do MST, mas por uma questão de interesse de classe. Segundo, na minha avaliação, é que a coordenação tucana acha que a única chance do Serra crescer eleitoralmente é adotar um discurso de direita, para polarizar e, então, se mostrar mais de confiança do que a Dilma.

Por isso adotou todos os ícones da esquerda para bater. Bate em nós, em Fidel, em Cuba, Chávez, Evo Morales, até no bispo Lugo ele bateu. Achou uma conexão das Farc com o PT absurda. Ele sabe que o partido está mais próximo da social-democracia. Não é por ignorância, é por tática eleitoral. Acho que ele errou também na tática. E vai ficar refém de seu discurso de direita sem ampliar os votos. Eu acho ótimo que ele se revele como direitista mesmo. Ajuda a clarear os interesses de classe das candidaturas. E por isso mesmo vai perder de maior diferença do que o Alckmin perdeu do Lula em 2006.

Atualmente, o movimento sindical vem fazendo a luta pela redução da jornada, mas está fragmentado em uma série de centrais sindicais. Quais os problemas e desafios da luta sindical atualmente?

Não tenho a pretensão de dar lições a ninguém. Há valorosos companheiros que atuam na luta sindical que têm muitos elementos para analisar a situação da organização de classe. Os problemas e desafios da organização sindical são evidentes. Mas não estão no número de sindicatos ou de centrais. Isto, ao contrário, até poderia ser visto como vitalidade, já que as correntes sindicais sempre existiram, são importantes e aglutinam por vertentes ideológicas.

Os desafios da unidade da classe nos sindicatos passam pela necessidade de recuperarmos o trabalho de base, a organização, de toda a classe, lá no local de trabalho e no de moradia. Ninguém mais quer fazer reunião na porta de fábrica, na fábrica (mesmo que de forma clandestina, como era nos tempos do Lula). Precisamos recuperar o sentido da luta de massas como a única expressão da força da classe. Precisamos recuperar o debate de temas políticos, relacionados com um programa para a sociedade que extrapole as demandas salariais e corporativas.

Precisamos recuperar a importância de o movimento sindical ter seus próprios meios de comunicação de massa. Saúdo a chegada da televisão dos trabalhadores no ABC. Mas precisaríamos ter antes, e em todas regiões metropolitanas. Precisamos recuperar a formação de militantes da classe trabalhadora, em todos os níveis. Sem conhecimento, sem teoria, não haverá mudanças. E, com essas iniciativas, certamente poderemos construir um processo de maior unidade, já que os interesses da classe como um todo serão o denominador comum, e de construção do reascenso do movimento de massas.

Um grupo de dirigentes e estudiosos avalia que a sociedade brasileira passou por uma transformação, e sindicatos e partidos políticos não são suficientes para organizar o povo brasileiro, especialmente com o aumento da informalidade. Com isso, seria necessário construir novos instrumentos para a luta política. Como você avalia os desafios organizativos da classe trabalhadora?

As formas de organização da classe em partidos, sindicatos e associações de bairro foram desenvolvidas pela classe, como respostas ao desenvolvimento da exploração pelo capitalismo industrial, desde os tempos de Marx até os dias atuais. Acho que o problema não é ficar analisando se serve ou não, jogar tudo fora e pensar novos instrumentos. Cada tempo histórico tem suas formas de organização, suas formas de luta de massa e produz suas próprias lideranças.

Estamos vivendo um período de derrota político-ideológica que gerou crise ideológica e organizativa na classe. Um período de refluxo do movimento de massas. Mas isso faz parte de um período, de uma onda. Logo ingressaremos em novos períodos.

Acho que o principal não é discutir a forma, mas tratar de organizar de todas as maneiras possíveis todos os setores da classe trabalhadora. E evidentemente que a forma sindical ou partidária não está conseguindo chegar na juventude pobre, da classe trabalhadora das periferias. E precisamos descobrir novos métodos e novas formas.

As formas podem ter outros rótulos, outros apelidos, mas o principal é que a classe precisa se organizar do ponto de vista econômico, corporativo, para resolver suas necessidades e problemas imediatos; e precisa ter organização política, para disputar projetos para a sociedade. E só vamos resolver os problemas de organização organizando. A prática é a melhor conselheira, do que grandes teses, nesse caso.

Dentro de um modelo que tem hegemonia de bancos e do capital financeiro, com o enfraquecimento da indústria, baseado no consumo de massa, quais as perspectivas de futuro para a juventude?

A juventude pobre, da classe trabalhadora urbana, não tem espaço nesse modelo de dominação do capital financeiro e internacionalizado. Nem nos países chamados ricos, como na Europa, onde o desemprego atinge até 40% da juventude. O futuro da juventude está justamente em desenvolver uma consciência como classe trabalhadora. Se apenas ficar se olhando como jovem e sem oportunidades, não vai encontrar as respostas, vai ficar velho sem as respostas.

Precisamos desenvolver consciência de classe, e motivá-los para que se mobilizem, lutem. E como estão fora das fábricas, da escola, temos que desenvolver novas formas de trabalho político com a juventude, que a ajude a debater, a se aglutinar, para que descubra que o futuro é agora. Tenho esperanças, há uma massa enorme da juventude trabalhadora urbana que está em silêncio. Ou ainda alienada, iludida. Alguns tentando entrar no mercado consumidor, como se fosse a felicidade geral. Logo perceberão que precisam ter uma atitude, uma participação ativa na sociedade.

O MST vem fazendo a avaliação de que a reforma agrária não avançou durante o governo Lula. Por quê?

É preciso ter claro os conceitos e o significado da reforma agrária. Reforma agrária é uma política pública, desenvolvida pelo Estado, para democratizar a propriedade da terra e garantir o acesso a todos os camponeses que queiram trabalhar na terra.

Do ponto de vista histórico, ela surgiu numa aliança da burguesia industrial no poder com os camponeses que precisavam terra, para sair da exploração dos latifundiários. E, assim, a maioria das sociedades modernas fez reforma agrária a partir do século 19 e ao longo do século 20. Depois tivemos as reformas agrárias populares e socialistas, que foram feitas por governos populares ou revolucionários, no bojo de outras mudanças sociais.

Aqui no Brasil nunca tivemos reforma agrária. A burguesia brasileira nunca quis democratizar a propriedade da terra. Ela preferiu manter aliança com os latifundiários para que continuassem exportando matérias-primas (e aí ela usaria os dólares da exportação para bancar a importação de máquinas) e sobretudo preferiu expulsar os camponeses para a cidade, para criar um amplo exército industrial de reserva, que manteve ao longo do século 20 os salários industriais mais baixos de todas as economias industriais do mundo. E os camponeses brasileiros nunca tiveram forças, sozinhos nem em aliança com os trabalhadores da cidade, para impor uma reforma agrária aos latifundiários.

Chegamos mais perto disso em 1964. E tivemos um baita programa de reforma agrária, em aliança com o governo Goulart. A resposta da burguesia foi se aliar com Império e impor a ditadura militar de classe. As políticas dos governos no Brasil e do governo Lula são de assentamentos rurais. Ou seja, aqui e acolá, pela força da pressão camponesa, desapropria algumas fazendas para aliviar os problemas sociais. Mas isso não é reforma agrária.

Tanto que o censo do IBGE de 2006 revelou que agora a concentração da propriedade da terra é maior do que no censo de 1920, quando recém saímos da escravidão. E no governo Lula não tivemos espaço para debater um processo de reforma agrária verdadeiro, e nem tivemos força de massas para pressionar o governo e a sociedade. Por isso, a atual política de assentamentos é insuficiente por um lado, mas reflete a correlação de forças políticas que há na sociedade. Lamentamos apenas que algumas forças dentro do governo se iludam a si mesmas, fazendo propaganda ou achando que essa política de assentamentos – insuficiente – fosse reforma agrária.

Alguns estudiosos e setores sociais, até mesmo na esquerda, avaliam que passou o tempo da reforma agrária no Brasil. Qual o papel da reforma agrária dentro do atual estágio de desenvolvimento?

É verdade, nós também dizemos isso. Não há mais espaço para uma reforma agrária clássica, que visava apenas distribuir terra aos camponeses e eles produziriam com suas próprias forças e família para o mercado interno. Esse modelo era viável no auge e para o desenvolvimento nacional e do capitalismo industrial. Mas ele é inviável não porque o MST desdenha, e sim porque as forças políticas e sociais que poderiam ter interesse não têm mais.

Se houvesse uma reviravolta nas classes que dominam o Brasil, e um novo projeto de desenvolvimento nacional e industrial entrasse na pauta política, aí a reforma agrária clássica teria lugar. Mas não é isso que se desenha. Então, qual a alternativa agora? É lutar por um novo tipo de reforma agrária. Uma reforma agrária que nós chamamos de popular. Que o movimento de pequenos agricultores chama de Plano Camponês, que a própria Contag e Fetraf chamam de agricultura familiar. São rótulos diferentes para um conteúdo semelhante.

Ou seja, nós precisamos reorganizar o modelo de produção agrícola do país. Nós queremos usar nossa natureza para uma agricultura diversificada, fixando as pessoas no meio rural com melhoria das condições de vida, eliminando o latifúndio (não precisa ser muitos, apenas os acima de 1.500 hectares), adotando técnicas de produção de agroecologia, respeitosas ao meio ambiente e, sobretudo, produzindo alimentos sadios para o mercado interno. Nossa proposta de reforma agrária popular, no entanto, depende de um novo modelo de desenvolvimento, que tenha distribuição de renda, soberania nacional, rompimento com o domínio do capital estrangeiro sobre a agricultura e a natureza.

Como a reforma agrária pode beneficiar o conjunto da sociedade, especialmente a população das cidades?

A reforma agrária e a fixação do homem no campo são fundamentais para reduzir o desemprego na cidade e elevar os patamares do salário mínimo e a média salarial. A burguesia só paga baixos salários e aumenta o número de empregados domésticos porque todos os dias chegam milhares de novos trabalhadores se oferecendo para serem explorados. A reforma agrária é a única que pode produzir sem venenos.

A grande propriedade do agronegócio só consegue produzir com veneno, porque não quer mão de obra, e esse veneno vai para o estômago de todos nós. Na última safra foram um bilhão de litros de venenos, 6 litros por pessoa, 150 litros por hectares. Uma vergonha. Um atentado. A reforma agrária ajuda a resolver o problema de moradia e do inchaço das cidades. Também vai reequilibrar o meio ambiente e com isso teremos menos mudanças climáticas que estão afetando agora, com mais força, as cidades. Vejam o que aconteceu no Nordeste.

Num dia, 13 cidades foram varridas do mapa pelas chuvas torrenciais. Não foi a chuva a culpada, e sim o monocultivo da cana que alterou o equilíbrio e empurrou o povo para a beira do rio. Mas isso só o general Nelson Jobim viu e teve coragem de dizer. A Globo ficou quietinha procurando acobertar. Nenhuma área de reforma agrária de Pernambuco e Alagoas foi atingida, por que será? E nossos assentamentos foram os primeiros, antes do governo, a dar guarida aos desabrigados.

Por que a Via Campesina e o MST vêm realizando protestos contra as grandes empresas do agronegócio? As ocupações de terras não são sufi cientes ou não servem mais para a luta pela reforma agrária?

Agora a disputa não é mais apenas entre os pobres sem-terra e os latifundiários. Agora é uma disputa de modelo para produção e uso dos bens da natureza. De um lado temos o agronegócio, que é a aliança entre os grandes proprietários, o capital financeiro, que os financia – veja que, de uma produção de R$ 112 bilhões, os bancos adiantam R$ 100 bi para eles poderem produzir –, as empresas transnacionais que controlam a produção de insumos, sementes, o mercado nacional e internacional e as empresas de mídia. E, de outro lado, os sem-terra, os camponeses com pouca terra e a agricultura familiar em geral. E nesse marco de disputa, nosso inimigo principal são os bancos e as empresas transnacionais.

Então, fazemos a luta de classes contra nossos inimigos principais e ao mesmo tempo devemos seguir lutando para melhorar as condições de vida, com novos assentamentos, moradia rural, luz para todos, programa de compra de alimentos pela Conab, um novo crédito rural etc. Essas medidas, embora setoriais, também ajudam a acumular força como classe.

Nos próximos dias, o MST vai realizar atividades pela reforma agrária. Como serão essas mobilizações e quais seus objetivos? Elas têm alguma relação com o período eleitoral?

A coordenação nacional do MST escolheu há tempos essa semana de meados de agosto para realizar uma campanha nacional de debates em torno da reforma agrária. É uma forma concentrada de esforços para desenvolver diferentes maneiras de agitação e propaganda; para levar nossas ideias à classe trabalhadora urbana; para denunciar os problemas e malefícios que o agronegócio, com seus venenos e sua sanha concentradora, causa para toda a sociedade; e, ao mesmo tempo, mostrar justamente os benefícios de uma reforma agrária popular. Esperamos que nossa militância se engaje em todo país, para essa jornada de conscientização de massas.

--

Maria Mello

Setor de Comunicação

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

www.mst.org.br

(11) 2131 0840

(11) 9690 3614



TODAS AS MULHERES SÃO TRABALHADORAS

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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O Brasil, muito além do futebol...

Por JoãoPedro Stédile

A sociedade brasileira é uma das de maior desigualdade social entre todos os 186 países do mundo! Isso choca ainda mais, por termos recursos naturais, fontes de energia, minérios, matérias-primas...

Entre 1930-1980, crescemos 7,6% ao ano em media, a cada dez anos dobramos a riqueza produzida.Somos a oitave economia mundial em volume de riquezas.

O Brasil é o maior exportador de soja, açúcar, carne de boi, mas, se não fosse a bolsa família, 11 milhões de famílias, ou seja, 44 milhões de brasileiros, continuariam passando fome.

Temos 16 milhões de brasileiros adultos que produzem riquezas, mas que não tiveram o direito de conhecer as letras!

Apenas 10% da juventude freqüentam uma universidade.E pior, a ampla maioria deles paga faculdades particulares, enquanto os filhos da burguesia se acomodam nas universidades públicas.E tem gente que reclama das quotas aos jovens pobres e de origem afrodescendente.

Sabemos os volumes de recursos que as filiais de transnacionais enviam para as matrizes, para manter os elevados padrões de consumo de seus acionistas com o suor brasileiro.

Temos uma reserva enorme de dólares, do governo, depositados em bancos norte-americanos recebendo taxas de 2% ao ano, enquanto o próprio governo paga por uma mal explicada divida interna, 10,25% ao ano aos bancos daqui.

E nem a universidade, nem os intelectuais e muito menos a imprensa e os políticos se preocupam em analisar por que então seguimos sendo uma sociedade tão desigual?

O máximo que chegam é às nossas raízes históricas de quatro séculos de escravidão, que estão na base da formação sócio econômica brasileira. O que é verdadeiro , mas insuficiente.

As causas de nossas mazelas estão claramente identificadas na situação estrutural da economia:

-Apenas 1% dos proprietários controla a metade das terras do país;
-A concentração da propriedade das fábricas, comércio, nas cidades.
-A concentração da riqueza ao longo de décadas, produzida pelo trabalho de milhões de brasileiros, mas apropriada por uma minoria de 10%. O capital ficou com ao redor de 60% de todos os bens, enquanto quem trabalha fica com 40%.
-A concentração do direito à escola.
-A concentração da indústria, seja em algumas empresas, seja em termos geográficos;
-Não mais de dez bancos controlam toda a movimentação financeira do país;
-Jornais, revistas, rádios e televisões de poucos donos se tornaram mecanismos de ganância e reprodução do pensamento da classe dominante.
-A nossos melhores hospitais e atendimento médico só tem acesso os ricos, e a classe média se resigna em pagar pesadas mensalidades de planos de saúde particulares;

-A cidade de São Paulo tem 420 imóveis vazios, enquanto milhares de famílias vivem em barracos e condições desumanas.

Esperamos que agora na campanha eleitoral os candidatos e os partidos criem vergonha na cara e tenham coragem de debater os verdadeiros problemas da sociedade com o povo brasileiro.

JOAO PEDRO STÉDILE É MEMBRO DA COORDENAÇÃO NACIONAL DO MST E DA VIA CAMPESINA BRASIL.
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