terça-feira, 20 de outubro de 2015

Comunicado conjunto # 62

Com o objetivo de aliviar o sofrimento das famílias das pessoas dadas por desaparecidas e desta maneira contribuir com a satisfação de seus direitos, o Governo Nacional e as FARC-EP chegamos a dois tipos de acordos: em primeiro lugar, pôr em marcha algumas primeiras medidas imediatas humanitárias de busca, localização, identificação e entrega digna de restos de pessoas dadas por desaparecidas no contexto e em razão do conflito armado interno que se porão em marcha antes da firma do Acordo final; e, em segundo lugar, a criação de uma Unidade especial para a busca de pessoas dadas por desaparecidas no contexto e em razão do conflito armado.
I. MEDIDAS IMEDIATAS DE CONSTRUÇÃO DE CONFIANÇA QUE CONTRIBUAM PARA A BUSCA, LOCALIZAÇÃO, IDENTIFICAÇÃO E ENTREGA DIGNA DE RESTOS DE PESSOAS DADAS POR DESAPARECIDAS NO CONTEXTO EM RAZÃO DO CONFLITO ARMADO
O Governo Nacional e as FARC-EP, acordam:
  1. Medidas imediatas humanitárias de busca, localização, identificação e entrega digna de restos de pessoas dadas por desaparecidas no contexto e em razão do conflito armado interno, que se desenvolverão no marco do processo de construção de confiança.
No marco das medidas de construção de confiança, o Governo Nacional e as FARC-EP acordamos algumas primeiras ações para, de maneira imediata e com propósitos estritamente humanitários, localizar, identificar e entregar dignamente os restos das pessoas dadas por desaparecidas no contexto e em razão do conflito armado.
Para isso acordamos solicitar ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha seu apoio para a elaboração e posta em marcha de planos especiais humanitários para a busca, localização, identificação e entrega digna de restos a seus familiares.
O Governo Nacional e as FARC-EP se comprometem a fornecer ao CICV a informação de que disponham e a facilitar a execução dos planos especiais humanitários. Com base na informação entregue pelo Governo e pelas FARC-EP, ademais da informação proveniente das organizações de vítimas, no marco da Mesa de Conversações se definirá um plano de trabalho para que o CICV e o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses elaborem e ponham em marcha os planos especiais humanitários. Em todos os casos, se solicitará informação e apoio à Promotoria.
A Mesa, em coordenação com o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses e o CICV, poderá solicitar outros apoios de organizações ou instituições especializadas para adiantar o processo de busca, localização, identificação e entrega digna de restos.
Como uma primeira medida, as delegações do Governo Nacional e das FARC-EP acordaram:
Que o Governo Nacional acelerará por uma parte a identificação e entrega digna de restos de vítimas e dos que morreram em desenvolvimento de operações da Força Pública sepultados como N.N. em cemitérios situados nas zonas mais afetadas pelo conflito, de acordo com as recomendações que faça o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses; e, por outra parte, a entrega digna dos restos identificados que não tenham sido ainda entregues a seus familiares. Quando seja necessário, se solicitará o apoio do CICV para a entrega digna dos restos aos familiares dos membros das FARC-EP.
Que as FARC-EP entregarão a informação para a localização e identificação dos restos de vítimas de cuja localização tenham conhecimento, e contribuirão para a entrega digna dos mesmos.
Em todos os casos, a entrega digna se realizará atendendo a vontade dos familiares, que contarão com o acompanhamento psicossocial que se requeira.


  1. Plano de fortalecimento da busca, localização, identificação e entrega digna de restos de pessoas dadas por desaparecidas.
Com o objetivo de fortalecer as capacidades institucionais e a participação das vítimas na busca, localização, identificação e entrega digna de restos de pessoas dadas por desaparecidas, o Governo Nacional e as FARC-EP acordamos solicitar à Comissão de Busca de Pessoas Desaparecidas que construa dentro dos 4 [quatro] meses seguintes um plano com recomendações que permitam a consecução do mencionado propósito, para o qual convocará a participação de organizações de vítimas, especializadas e de direitos humanos.


II. UNIDADE ESPECIAL PARA A BUSCA DE PESSOAS DADAS POR DESAPARECIDAS NO CONTEXTO E EM RAZÃO DO CONFLITO ARMADO.
O Governo Nacional e as FARC-EP acordam que, com o objetivo de estabelecer o ocorrido às pessoas dadas por desaparecidas como resultado de ações de Agentes do Estado, de integrantes das FARC-EP ou de qualquer organização que tenha participado no conflito, e dessa maneira contribuir para satisfazer os direitos das vítimas à verdade e à reparação, o Governo Nacional porá em marcha no marco do fim do conflito e após a firma do Acordo Final uma unidade especial de alto nível com caráter excepcional e transitório, com forte participação das vítimas, para a busca de todas as pessoas desaparecidas no contexto e em razão do conflito armado [adiante a UBPD]. Esta unidade terá um caráter humanitário e fará parte do Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e Não Repetição. Gozará da necessária independência e da autonomia administrativa e financeira para garantir a continuidade no tempo do cumprimento de suas funções.
A UBPD dirigirá, coordenará e contribuirá para a implementação das ações humanitárias no marco do SIVJRNR encaminhadas à busca e localização de pessoas dadas por desaparecidas que se encontrem com vida, e nos casos de falecimento, quando seja possível, a identificação e entrega digna dos restos das pessoas dadas por desaparecidas no contexto e em razão do conflito armado.
Em todo caso, a UBPD entregará aos familiares um informe oficial da informação que tenha conseguido obter sobre o ocorrido à pessoa ou às pessoas dadas por desaparecidas.
A UBPD e os processos e procedimentos que adiante terão caráter humanitário e extrajudicial. Para a elaboração, posta em marcha e desenvolvimento de suas funções, se contará com a participação de organizações de vítimas, organizações defensoras de direitos humanos e com o apoio de instituições especializadas com o objetivo de incorporar as melhores práticas internacionais e a experiência na matéria acumulada pela Comissão de busca de pessoas desaparecidas.


A UBPD terá as seguintes funções:
  • Coletar toda a informação necessária para estabelecer o universo de pessoas dadas por desaparecidas no contexto e em razão do conflito armado.
  • Fortalecer e agilizar os processos para a identificação de restos em coordenação com o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses.
  • Coordenar e adiantar processos de busca, identificação, localização e entrega digna de restos, para o qual deverá:


  • Buscar ativamente, contrastar e analisar toda a informação disponível das distintas fontes, incluídas entrevistas confidenciais e voluntárias com aqueles que, tendo participado direta ou indiretamente nas hostilidades, puderam ter informação sobre o ocorrido com as pessoas dadas por desaparecidas por ocasião do conflito, assim como informação sobre a localização de fossas, cemitérios e lugares onde possivelmente se encontrem restos de pessoas dadas por desaparecidas.

  • Elaborar e pôr em marcha um plano nacional que estabeleça as prioridades para o cumprimento de suas funções e os planos regionais correspondentes, para o qual contará com o pessoal e os equipamentos necessários e coordenará e se articulará com as entidades competentes. Se garantirá a participação de organizações de vítimas e de direitos humanos na elaboração e posta em marcha dos planos.


  • A UBPD contará com as faculdades e capacidades necessárias para cumprir com estas funções em coordenação com as instituições do Estado, com a Comissão para o Esclarecimento da Verdade, a Convivência e a Não Repetição e com a ativa participação das organizações de vítimas e de direitos humanos.
  • A UBPD terá acesso às bases de dados oficiais e poderá subscrever convênios com organizações de vítimas e de direitos humanos para ter acesso à informação de que disponham. Em conformidade com as leis vigentes no momento de implementar o Acordo, o Governo Nacional se compromete a facilitar a consulta da informação que a UBPD requeira para o cumprimento de suas funções, e a UBPD, por sua parte, lhe dará o tratamento legal correspondente.
  • Promover a coordenação interinstitucional para a orientação de e a atenção psicossocial aos familiares das pessoas dadas por desaparecidas no contexto e em razão do conflito armado.
  • Promover alianças com organizações nacionais e internacionais especializadas para facilitar o cumprimento de suas funções.
  • Quando seja possível, garantir a entrega digna aos familiares dos restos das pessoas dadas por desaparecidas no contexto e em razão do conflito armado, sempre atendendo as diferentes tradições étnicas e culturais.
  • Garantir a participação dos familiares das pessoas dadas por desaparecidas no contexto e em razão do conflito armado nos processos de busca, identificação, localização e entrega digna de restos.
  • Entregar aos familiares um informe final detalhado da informação que tenha conseguido obter sobre o ocorrido à pessoa dada por desaparecida, ao término da execução do plano de busca correspondente. Os restos não identificados ou não reclamados por seus familiares deverão ser preservados e estarão à disposição das autoridades competentes para a satisfação dos direitos das vítimas.
  • Entregar uma cópia do informe descrito no parágrafo anterior à Comissão para o Esclarecimento da Verdade, da Convivência e da Não Repetição.
  • Informar periódica e publicamente, pelo menos a cada 6 meses, sobre as atividades de busca, identificação, localização e entrega digna de restos realizadas, respeitando sempre o direito à privacidade das vítimas.
  • Planificar, coordenar e dirigir a execução, junto com as entidades correspondentes e com a participação das organizações de vítimas e de direitos humanos, de um plano nacional e planos regionais para o rastreio, busca e identificação.
  • Elaborar e implementar um registro nacional de fossas, cemitérios ilegais e sepulturas.
  • Para o cumprimento de suas funções, a UBPD adotará procedimentos para contrastar e verificar a qualidade da informação que colete, incluindo sua confiabilidade, e para identificar a informação falsa.
O trabalho humanitário de busca, localização, identificação e entrega digna por parte da UBPD se desenvolverá no marco do SIVJRNR, como complemento e sem assumir as funções dos demais componentes do mesmo. Em particular, as atividades da UBPD não poderão nem substituir nem impedir as investigações de caráter judicial às quais tenha lugar em cumprimento das obrigações que o Estado tem.
A busca de restos por parte da UBPD não inabilitará a Jurisdição Especial para a Paz e demais órgãos competentes para adiantar as investigações que considere necessárias para esclarecer as circunstâncias e responsabilidades da vitimização do caso assumido pela UBPD.
Em todo caso, tanto os informes técnicos forenses como os elementos materiais associados ao cadáver que se possam encontrar no lugar das exumações poderão ser requeridos pela Jurisdição Especial para a Paz e outros órgãos que sejam competentes. Com o objetivo de garantir a efetividade do trabalho humanitário da UBPD para satisfazer ao máximo possível os direitos à verdade e à reparação das vítimas, e antes de tudo aliviar seu sofrimento, a informação que a UBPD receba ou produza não poderá ser utilizada com o fim de atribuir responsabilidades em processos judiciais ou para ter valor probatório, com exceção dos informes técnicos forenses e os elementos materiais associados ao cadáver.
A contribuição com informação à UBPD poderá ser levada em conta para receber qualquer tratamento especial em matéria de justiça.
Os funcionários da UBPD não estarão obrigados a declarar em processos judiciais e estarão isentos do dever de denúncia em relação ao trabalho que desempenhem na Unidade. De ser requerido pela Jurisdição Especial para a Paz, por outras autoridades competentes ou pela Comissão para o Esclarecimento da Verdade, da Convivência e da Não Repetição, aqueles que tenham realizado os informes técnicos forenses deverão ratificar e explicar o concernente a esses informes e os elementos materiais associados ao cadáver.
Durante o tempo de funcionamento da Comissão para o Esclarecimento da Verdade, da Convivência e da Não Repetição, a UBPD atenderá os requerimentos e lineamentos da Comissão. A UBPD e a Comissão estabelecerão um protocolo de cooperação e intercâmbio de informação que contribua para cumprir os objetivos de ambas. Coordenará suas atuações com a Comissão para o Esclarecimento da Verdade, da Convivência e da Não Repetição, a qual informará sobre suas atuações e resultados e fornecerá a informação que requeira.
No marco do fim do conflito, o Governo Nacional e as FARC-EP se comprometem a prover à UBPD toda a informação de que disponham para estabelecer o ocorrido às pessoas dadas por desaparecidas no contexto e em razão do conflito.
Para estruturar e pôr em marcha esta unidade especial se levará em conta as recomendações que a Comissão de Busca de Pessoas Desaparecidas faça, como resultado do trabalho que realize em desenvolvimento do acordo sobre “Medidas que contribuam para a busca, localização e identificação de pessoas dadas por desaparecidas no contexto e em razão do conflito armado”.


Conformação:
A UBPD fará parte e desenvolverá suas funções no marco do Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e Não Repetição.
A UBPD terá um/a diretor/a que deverá ser colombiano/a e será escolhido/a pelo Comitê de Escolha dos Comissários da Comissão para o Esclarecimento da Verdade, da Convivência e da Não Repetição, sobre a base de critérios de idoneidade e excelência que se elaborarão tendo em conta as sugestões do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e da Comissão Internacional sobre Pessoas Desaparecidas.
Para a estruturação da UBPD, o/a diretor/a receberá as recomendações e sugestões da Comissão Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, organizações de vítimas, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e a Comissão Internacional sobre Pessoas Desparecidas.
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Equipe ANNCOL - Brasil

Paz e "poder dual" na transição.

Por Horacio Duque Giraldo

Sem que seja fruto de um suposto maquiavelismo revolucionário, como o elucubra a ultra direita fascista do uribismo, na transição para a paz surge um poder dual embrionário no qual toma forma o poder das massas populares com sua potência transformadora. É um poder nascente que se desdobra em diversas esferas do campo político nacional.

1.  Considerações preliminares.
Os diálogos de paz entre o governo do Presidente Santos e as Farc; entre o Estado colombiano e a insurgência campesina revolucionária na Mesa de Havana, têm perfilado um momento fundacional da nação. Porque, queira-se ou não, as conversações para terminar a guerra e assentar as bases de uma paz estável e duradoura se convertem num divisor de águas histórico que traça uma fronteira no vir a ser da sociedade e da nação.
A potência desdobrada pelos sujeitos sociais e políticos, configurados no inexorável acontecer dos anos recentes, promoveu a configuração de novos horizontes sociais, culturais, institucionais e internacionais. A capacidade democratizadora da multidão, a força transformadora das massas populares demole as obsoletas estruturas oligárquicas de dominação e subordinação de milhões de seres humanos submetidos ao tratamento arbitrário, à exploração, à mentira, à manipulação e à humilhação.
Gradualmente, o velho estabelecimento se desmorona. Se derruba, e com ele os dispositivos de controle e prevalência das camarilhas organizadas [nacionais, internacionais, regionais, locais e setoriais] no monopólio da riqueza, das rendas, do trabalho e dos dispositivos da hegemonia dominante: aparelhos armados, meios de comunicação, sistemas de educação, regimes jurídicos, redes institucionais e infraestruturas políticas de diverso alcance.
Quem queira ler que leia. Quem tenha a lucidez para entender que entenda. Quem queira interpretar à sua maneira, que o faça, que proceda a conveniência, designando as coisas de acordo com seus interesses, egoístas ou comunais. A delirante ultra direita dirá que caminha um golpe de Estado comunista, Castro-chavista, em suas recentes palavras. Que acabarão com o Exército; que se eliminará a propriedade privada; que se fulminará a democracia liberal; que a liberdade de imprensa morrerá para implantar a verdade comunista; que a família se dissolverá etc. Enfim, qualquer quantidade de ocorrências como as que costuma repetir o caudilho de marras no plano de meter medo e não perder vigência com seu discurso de guerra e violência.
Porém, a realidade verdadeira cobra forma. Estamos numa transição do velho e esgotado domínio oligárquico para uma democracia ampliada, para uma sociedade em paz com justiça social[1]. Estamos num momento da democracia como autodeterminação das massas[2].
Estamos ante a possibilidade de construir um poder independente, paralelo, autônomo; isto é, uma dualidade de poder, encontrar um caso sui generis em que, através do próprio Estado e da conquista da estrutura constitucional superior do país, se pode consolidar e constituir um poder popular. A questão da dualidade de poderes deve ser abordada no teórico com a urgência que apresenta a proximidade no tempo ou no entrecruzamento entre o reformismo burguês santista e a mudança radical determinada pela insurgência revolucionária. Há que atuar prevendo guinadas surpreendentes, inesperadas, que, obviamente, é preciso estimular ou prevenir. Não se pode viver no vaivém dos acontecimentos e da rotina.
Colapsam os velhos poderes das rançosas elites patrimonialistas e emergem os novos poderes populares, os poderes dos movimentos sociais, os poderes da democracia avançada, ampliada, de autêntica participação, na gramática dos consensos alcançados nos diálogos de Havana.
Não se necessita de muita ciência para perceber que a oligarquia não cumprirá o pactuado em matéria agrária, política, de cultivos de uso ilícito e jurídico. Isso o temos por sabido os revolucionários. A elite irá atirando no cesto de lixo cada documento que se firme. Neles tudo isto é um simulacro; seu interesse essencial, na luta de classes substancial em curso, é subjugar, destruir o adversário. Massacrá-lo. Exterminá-lo. Impedir que avancem as conquistas populares. Seu objetivo principal é recauchutar o regime social de acumulação, reforçá-lo, oxigená-lo, relegitimá-lo. Não pouparão recursos. Nem manobra. Nem manipulação. Virão novos paramilitarismos noutras aparências e apresentações. Virão montagens judiciais e penitenciárias. Prosseguirá o jogo midiático. O Exército, como síntese exacerbada e razão última do Estado, se reorganizará para acoplá-lo às novas incumbências da geopolítica imperial: apropriação, saqueio e despojo dos recursos naturais, das matérias-primas, da riqueza amazônica, da água, do petróleo, do ouro, da força de trabalho, da riqueza social. A projetada reforma da doutrina da segurança do Exército corresponde mais a um contexto continental de reafirmação da hegemonia norte-americana, apropriação dos recursos naturais e desestabilização de governos não afins à Casa Branca, tais como Venezuela, Bolívia e Equador. Esta situação exige umas Forças Militares preparadas para combater com exércitos regulares e não com guerrilhas agrárias.
A mudança da doutrina militar que se anunciou há alguns dias pelo comandante do Exército não responde aos interesses da paz interna, e sim a uma lógica global pensada e impulsada pelos Estados Unidos.
Durante o pós-conflito os inimigos identificáveis da paz e do progresso não serão as guerrilhas comunistas mas sim os campesinos, indígenas, afrodescendentes e movimentos sociais que se mobilizarão pela defesa da terra ancestral, da água e do território, tal como passa agora no Cauca, em Cali, Sumpaz, Putumayo e La Guajira.
Para desqualificar a estes atores sociais, há que ligá-los com o discurso da ameaça “castro-chavista”, um discurso hoje mais comum que nunca devido ao conflito fronteiriço com Venezuela e a proximidade do acordo com as FARC. A suposta ideologia cubano-venezuelana serve para encontrar inimigos dentro e fora das fronteiras[3].
Avançar, aprofundar, consolidar o conquistado nos diálogos é um desafio permanente para as forças revolucionárias da mudança. Nisso não há trégua. Não se pode fazer pausa. Já quisera a elite dominante que se renunciasse, a partir de baixo, à luta pela mudança radical do sistema imperante.
Tudo se remete, enfim, às correlações de força. O que ocorreu até o momento encarna essa realidade política.
Por isso, há que determinar e construir a correlação de forças dentro da “dualidade de poderes” mediante a política de alianças entre as classes subalternas e intermediárias durante a fase de transição. Para isso é vital caracterizar: a) a quantidade de força; b) a Localização da quantidade de forças; c) o movimento da quantidade; d) a quantidade do poder efetivo que varia segundo a fase ou momento do processo de poder dual: não é uma construção acumulativa e unilinear, senão que tem retrocessos e avanços que dependem da tática e da autonomia do político.
Não exageramos se sugerimos identificar a construção de um poder dual na conjuntura. Não descobrimos nada novo sem querer insinuar que se trata de um vulgar decalque de outros processos.
Obviamente, há que entender que essa dualidade de poderes ocorre no seio de um Estado democrático burguês de alto desenvolvimento institucional num contexto econômico subdesenvolvido. Num país de desenvolvimento intermediário ou subdesenvolvimento intermediário, porém com uma grande capacidade de desenvolvimento institucional e de relações participativas em que uma burguesia emergente na década dos ’60 construiu uma grande aliança intradominante, superando conflitos internos mediante o consociacionalismo e, por conseguinte, capaz de criar estruturas de dominação muito estáveis num país que durante 60 anos não tem golpes de Estado porém, sim, uma cruenta guerra interior.
Isso para dizer que no enigma da psicologia das nações e no que se pode chamar o ‘temperamento’ dos Estados, há sempre uma causalidade decifrável, um ciclo de dados reconhecíveis e situáveis. Pois bem, para os que estudam o Estado na América Latina, aquela continuidade ou eixo autoridade-legalidade-democracia que tem se dado em Colômbia, ainda em meio a mais feroz guerra, foi sempre, pelo menos em sua aparência preliminar, uma espécie de ‘mistério dado’ da história regional.
Poder dual se apresentou na revolução inglesa do século XVII: existem ali fases de reprodução do poder dual: 1) Londres [burguesia presbiteriana v/s Oxford) [rei]; 2) Burguesia presbiteriana [fração no exército parlamentar] v/s Parlamento presbiteriano [burguesia acomodada e rica]; 3) Levellers v/s Cromwell.
Na revolução francesa de 1789. Na revolução americana do século XVIII. Na revolução europeia de 1848. Na Comuna proletária de Paris. Na revolução soviética de 1917.
Poder dual ocorreu na revolução mineira boliviana de 1952, na Assembleia popular de 1971, em La Paz. No Chile de Salvador Allende, em 1973. Se registra nos processos bolivariano e equatoriano.
O poder dual não está referido nem a um tempo determinado nem a um lugar histórico preciso definido. Se fala de “dualidade de poderes” em toda transição política, de um fenômeno peculiar de toda crise social e não próprio e exclusivo de alguma revolução passada.
A dualidade de poderes não existe necessariamente e em todos os casos; se produz somente lá onde, no momento da crise histórica, as classes básicas se veem obrigadas a aceitar uma fase de poder dual, porque não puderam impor ao ponto seu próprio poder global. É uma falácia falar por isso, em geral, do poder dual como algo que deveria existir necessariamente em certo momento; é uma falácia, além disso, falar de sua construção imprescindível, como prenúncio do poder global.
O poder dual é uma realidade política e sociológica nos processos de transformação revolucionária e mudança radical do Estado e da sociedade civil. Não obstante, há que evitar a dissolução do conceito de “dualidade de poderes”, en tanto que sobre generalización.
De todas as maneiras, todo poder dual é breve. A temporalidade ou precariedade é o caráter natural e inevitável deste fato anômalo porque a unidade é a vontade principal de todo Estado.
As perguntas que queremos formular-nos a propósito desta fenomenologia são as seguintes: Emerge, de maneira embrionária, um poder dual na atual conjuntura auspiciada com os diálogos de paz entre o Estado e a guerrilha das Farc? O campo de conflito delineado, ademais de incluir uns sujeitos em tumulto, promove a emergência e existência de novos poderes sociais, políticos e estratégicos? Se derruba e colapsa o anacrônico Estado oligárquico e sua velha maquinaria governamental?
Para responder a estas perguntas, para sugerir e propor algumas hipóteses de trabalho político recorro à reflexão e análise de René Zavaleta Mercado, o pensador marxista boliviano, que, desde sua experiência na revolução boliviana de 1952 e no governo de Salvador Allende, em inícios dos anos ’70, abordou este importante aspecto em sua obra El poder dual.[1979] Problemas de la teoría del Estado en América Latina. [4]
Como o que se pretende é a identificação de um poder dual na presente conjuntura e suas potenciais implicações, incorporo ademais a explicação de Boaventura de Sousa Santos sobre o poder e as características que apresenta nestes momentos. Sua construção teórica a respeito ocorre no debate com as teorias liberais clássicas do poder e seu enfoque institucional do mesmo e com as formulações de M. Foucault sobre o tema. De Sousa Santos nos explica este campo analítico na perspectiva da luta pela emancipação e a construção de um Estado democrático que coincide com o fim da guerra civil colombiana e a construção da paz.
Em tal sentido, há que considerar que o conhecimento da natureza e estrutura de poder é um passo muito grande para a aquisição de uma tática correta, de umas palavras de ordem adequadas ao momento.
Sugiro, adicionalmente, para tratar deste tema, recorrer a uma nova andaimaria teórica, a qual nos parece mais oportuna para abordar o contexto de transformações que se apresenta em Colômbia nos anos recentes; o que supõe ampliar, evidentemente, a visão do político e do poder a partir do conceito de “campo político” e também incorporar a noção de “campo de conflito” como o lugar em que se dirime a disputa pelo poder.
Dussel[5], a partir de uma análise teórica minuciosa dos momentos do político, suas dimensões e esferas, expõe uma aproximação ao concreto, conflitivo e crítico da realidade política e suas possibilidades de desconstrução e paralela construção de uma ordem política alternativa. Assume o conceito de campo político, próximo ao de P. Bourdieu[6], para delimitar o objeto da e do político e diferenciá-lo dos outros campos do mundo cotidiano. Daí que, para Dussel, “o campo político é o espaço de interações, cooperação, coincidências e conflitos, que remete à esfera das lutas hegemônicas pelo poder”. Acrescenta que: “Todo campo político é um âmbito atravessado por forças, por objetos singulares com vontade, e com certo poder. Essas vontades se estruturam em universos específicos [...] cada sujeito, como ator, é agente que se define em relação aos outros”.
O conceito de campo político desloca, ou melhor, amplia a análise para a sociedade civil e permite identificar a rede de relações de força ou nodos, em que cada cidadão, cada representante ou cada organização operam.
Resulta pertinente ampliar a noção de poder, que não se restringe aos espaços convencionais de gestão e ação política, senão que abarca todos os interstícios da vida social. Como sustenta Foucault[7], e aprofunda criticamente de Sousa Santos, o poder não se localiza numa instituição ou no Estado, não se possui, senão que se exerce, e se encontra disseminado nas distintas dimensões da vida social e política, em suas casas moleculares. Em todo lugar onde há poder, o poder se exerce. Ninguém é dono ou possuidor; no entanto, sabemos que se exerce em determinada direção; não sabemos quem o tem, porém sabemos, sim, quem não o tem.[8]
O certo é que a política e a luta pelo poder envolvem uma disputa sobre o conjunto de significações culturais, e o questionamento às práticas dominantes relacionadas tanto com os universos simbólicos como com a redistribuição dos recursos. Com efeito, remete à constituição de uma nova gramática social capaz de mudar as relações de gênero, de raça, de etnia e da apropriação privada dos recursos públicos, e implica uma nova forma de relação entre o Estado e a sociedade, sustenta de Sousa.
Em seu caráter potencial, o poder reside no povo [potentia]. De acordo com Dussel, através da rede de interações e nodos –recorrendo a um conceito de Manuel Castells-, é capaz de gerar um processo de tomada de consciência do poder em si e de constituir organizações para ter acesso ao controle do poder político institucional [potestas], isto é, orientar-se para a objetivação do poder. De acordo com o autor, o poder se tem ou não se tem, em nenhum caso se toma. Para uma aproximação mais perto do funcionamento da ordem política vigente, o autor recorre ao conceito de sistema, a partir do qual propõe caracterizar aos sistemas como liberais, socialistas ou de participação crescente.
Nesse marco, se situa o conceito de campo de conflito como operador metodológico[9]. Em primeiro lugar, para discernir entre os conflitos de caráter estrutural ou hegemônico que implicam situações de crise estatal e implicam a possibilidade de uma transformação das relações, daqueles corporativos ou meramente conjunturais cujo impacto e alcances são limitados, e não afetam a estrutura do poder. Em segundo lugar, o campo de conflito constitui sujeitos, em episódios de conflitividade os sujeitos se agregam, articulam, constroem discursos, podem mudar a qualidade e o alcance da ação coletiva, enquanto que, em situações históricas em que não existe conflitividade, ou esta se reduz a questões pontuais, os sujeitos coletivos tendem a inibir-se e inclusive a desaparecer. Isso permite abordar aos movimentos em sua multiplicidade e variabilidade, em seus deslocamentos entre os diversos âmbitos do sistema e do campo político; assim, sua identidade não é uma essência mas sim o resultado de “intercâmbios, negociações, decisões e conflitos entre diversos atores”, afirma Melucci.
Em todo caso, no poder dual nascente, existe a necessidade de deslocar-se do âmbito político-institucional e situar-se no espaço das relações, articulações e trânsitos entre Estado e sociedade civil.

  1. O poder dual.
Zavaleta define o “poder dual” como a ruptura da unidade de poder natural do Estado moderno, o qual se caracteriza por essa capacidade de geração de uma estrutura de dominação, não só institucional como também social e cultural; isto é, uma estrutura de poder completa. O poder dual, por conseguinte, é uma forma de romper essa unidade de poder a partir de formas de luta que vão conformando um contrapoder ao poder da burguesia. Zavaleta destaca a concepção leninista sobre a capacidade das forças revolucionárias para construir um governo suplementar e “paralelo” ao governo formal da burguesia, dando lugar a um segundo poder.
A dualidade de poderes consiste em que o que devia ocorrer sucessivamente ocorre, no entanto, de uma maneira paralela, de um modo anormal; é a contemporaneidade qualitativa do anterior e do posterior.

A dualidade de poderes:
  • Assinala um tipo de contradição estatal ou conjuntura estatal de transição;

  • Anomalia que se apresenta no seio do poder do Estado [e, às vezes, no seio do aparelho de Estado];

  • Se produz em circunstâncias determinadas devidamente circunscritas;

  • Falamos de uma metáfora, um signo trópico; usamos a designação como símbolo de situações que são mais complexas do que o que pode caber numa frase;

  • Não é um poder dual [um único poder com duas caras, uma espécie de Jano], e sim uma dualidade de poderes: dois tipos de Estado que se desenvolvem de um modo coetâneo no interior dos mesmos elementos essenciais anteriores; sua mera unidade é uma contradição ou incompatibilidade.
O duplo poder se manifesta na existência dos dois governos: um é o governo principal, o verdadeiro, o real governo da burguesia, que tem em suas mãos todos as molas do poder; o outro, que não tem em suas mãos nenhuma mola do poder, porém que descansa diretamente no apoio das massas populares, agrárias e operárias.
O poder dual se descreve como um fato de facto e não como um fato legal.
Não é um poder dividido, mas sim dos poderes contrapostos e enfrentados [cada polo está ocupado por uma classe social, já é o poder de uma classe organizada].
Existem seis formas de Poder dual, de dualidade de poderes:
  1. Na esfera da economia.
  2. Territorial ou geográfica.
  3. Intraclasse dominante.
  4. Semifantasmal ou falsa dualidade. Serve somente como aparência para esconder uma dualidade de poderes “verdadeira”, que não pôde se expressar ainda. Porém, é algo que só se pode conhecer a posteriori; de outro modo, a encontraríamos em cada contradição aparente, como o anúncio de um duplo poder todavia inédito.
  5. Nos órgãos políticos periféricos.
  6. Nos órgãos políticos superiores (dualidade estatal propriamente dita).
Características distintivas de toda situação de dualidade de poderes são, a saber: o fato de ser uma fase transitória por definição, que supõe a emergência, no marco de um processo revolucionário, de dois poderes com vocação estatal: um de caráter principal, o outro embrionário e surgido de baixo a partir da iniciativa das massas, ambos alternativos e incompatíveis entre si, onde o que devia se produzir sucessivamente em termos temporários –revolução democrático burguesa primeiro, revolução socialista tempos depois-, acontece de uma maneira paralela/simultânea, gerando, portanto, uma dinâmica de contemporaneidade qualitativa do anterior e do posterior.

  1. Poder dual, contra hegemonia e emancipação.
Avançando nesta indagação do poder dual na transição à paz, recorremos à reflexão teórica de Boaventura de Sousa Santos sobre o fenômeno do poder para entender seu complexo emaranhado. [10]
O autor constrói uma teoria política de caráter crítico-emancipatório que propõe uma ampliação dos limites e o alcance da noção de «poder», pondo em questão a natureza do poder político público tradicionalmente privilegiado pela teoria política dominante. Este enfoque lhe permite adiantar uma radiografia que identifica os múltiplos poderes políticos em circulação e descobre as opressões estruturais entrelaçadas que se produzem nas atuais sociedades neoliberais.
Desde há algum tempo, vem identificando em seus trabalhos as bases para a elaboração de uma nova teoria política capaz de fundar, na época da globalização neoliberal e sua ressaca social e econômica mundial, um novo contrato social global mais solidário e inclusivo que o hoje em crise contrato social da modernidade ocidental.
A teoria política desenvolvida por este constitui uma opção teórico-prática contra hegemônica por dois motivos fundamentais. O primeiro, porque parte da análise crítica da realidade mundial contestando a liderança da teoria política liberal dominante; o segundo, porque apresenta caminhos alternativos para a transformação pessoal e social a partir de posições que se inscrevem no horizonte de ação política e social de inspiração socialista, que tem como centro de gravidade a busca dos valores de justiça, igualdade e solidariedade, que ele complementa com o da diversidade. Seu objetivo principal é o de criar um «novo sentido comum político» baseado na potencialização da dimensão participativa da política e na repolitização global da vida social, contra as dinâmicas despolitizadoras estimuladas pela teoria política neoliberal hegemônica.
Da teoria política contra hegemônica de De Sousa Santos se pode afirmar, em geral, que é portadora de uma constituição «genética», que se pode qualificar de crítica, emancipadora e utópica. É crítica, em primeiro lugar, porque foge das posturas passivas e conformistas que assumem –e inclusive celebram- a realidade dada e suspeita daquelas atitudes dominadas pelo fatalismo histórica, a crença conservadora e resignada segundo a qual as coisas são como são e não se pode mudar. Em lugar disso, sua teoria política crítica assume uma posição de denúncia ao examinar as condições de vida e pôr em evidência as numerosas relações de poder incrustradas na crosta das sociedades neoliberais contemporâneas, busca alternativas viáveis de pensamento e ação, e contribui para a formação de sujeitos políticos rebeldes, solidários e participativos que exigem transformações sociais estruturais em sentido progressista.
É emancipadora, em segundo lugar, porque está radicalmente comprometida com os diferentes projetos de luta contra hegemônicos embandeirados pelos distintos movimentos sociais e políticos que ao redor do mundo impulsam a posta em marcha de múltiplos processos de libertação dos grupos subordinados. A finalidade principal destes processos é a de combater e erradicar o agravamento das injustiças econômicas, políticas e sociais existentes, fomentando o melhoramento global da condição humana, e não só o de uma minoria social privilegiada e o de um reduzido grupo de países. De fato, uma das principais aspirações que contém sua teoria política contra hegemônica é a de resgatar as vozes silenciadas que resistem ou, em palavras do sociólogo, «dar voz aos que não a têm e esclarecer teoricamente muitas das causas do sofrimento humano neste mundo globalizado e injusto em que vivemos ».[11].
A teoria política crítico-emancipatória de Boaventura de Sousa Santos pode ser considerada, em terceiro lugar, uma teoria política que desempenha uma função utópica, porque restitui o valor de conceitos tão insultados pelo realismo político como «esperança», «imaginação utópica», «mudança» ou «futuro aberto», entre outros, e está fundada em anseios de uma mudança de rumo que contêm uma dupla dimensão: a crítico-descritiva, ao desafiar a ordem de coisas existente e a propositivo-transgressora, que se concretiza na apresentação de alternativas críveis que funcionam como horizonte mobilizador da ação coletiva e individual. Para o filósofo alemão Ernst Bloch, o teórico contemporâneo mais importante da esperança, o fenômeno utópico é uma característica constitutiva do pensamento humano que remete, em todo tempo e condição, à construção de outro mundo possível mais justo e decente. No pensamento filosófico de Bloch, a utopia, em seu significado positivo, está relacionada com categorias como «o novo», o que «ainda não» é, «sonho diurno» e «consciência antecipadora», entre outras, que adquirem um papel relevante na sociologia crítica de Boaventura de Sousa Santos. Tal e como a define formalmente, por «utopia», o pensador português entende: a exploração, através da imaginação, de novas possibilidades humanas e novas formas de vontade, e a oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor pelo que vale a pena lutar e ao que a humanidade tem direito. Agora, bem, em rigor terminológico, a sua particular forma de entender a utopia, Santos a chama de heteretopia, noção cunhada originalmente pelo filósofo francês Michel Foucault. Com este conceito, que etimologicamente significa «outro lugar», Santos se refere à descentralização, dentro de um mesmo lugar, dos projetos e das práticas emancipadoras.
A originalidade do conceito está no rechaço da ideia de um lugar único considerado a sede por excelência da emancipação social, senão que põe o acento numa concepção múltipla e plural da utopia. Segundo esta visão, no presente existem experiências concretas –algumas plenamente disponíveis, outras tão somente em estado latente- que têm possibilidades reais de se desenvolver na direção de uma sociedade melhor. Porém, estas experiências se encontram socialmente descentradas, localizadas no centro, ainda que também nas margens da sociedade. Convém matizar, a fim de evitar erros de interpretação, que a teoria política contra hegemônica de Santos não defende, na linguagem de Bloch, uma «utopia abstrata», a qual está carregada de tons idealistas e se entrega a uma ilusão atemporal e ilusória situada mais além do porvir histórico. Pelo contrário, de Sousa Santos advoga pelo que Bloch chama utopia concreta, a qual não se refere a um sonho impossível nem irrealizável, senão que está relacionada com o provável ou, melhor dizendo, com a busca «do real-possível». A utopia concreta de Santos se refere, pois, a direções, caminhos e tendências alternativas que são empiricamente realizáveis, porém que ainda estão amadurecendo, de modo que remetem a um futuro aberto pelo qual vale a pena lutar.
Os eixos sobre os quais se articula a teoria política contra hegemônica de Boaventura de Sousa Santos podem se dividir em cinco, que se sintetizam do seguinte modo. O primeiro é a elaboração de um marco analítico amplo que examina de maneira crítica as diferentes e entrecruzadas relações de poder que se dão nas sociedades do centro, da periferia e da semiperiferia do sistema mundial capitalista.
O segundo é a proposta de reconfigurar a capacidade reguladora do Estado no contexto da globalização neoliberal. Esta ideia implica o restabelecimento do debilitado poder regulador do Estado em matéria econômica e social mediante diferentes linhas de ação, como a recuperação da função redistributiva da riqueza e dos recursos públicos, assim como a transformação teórico-prática do Estado num «novíssimo movimento social», explicação segundo a qual o Estado é concebido como uma organização política híbrida formada por um conjunto heterogêneo de fluxos, redes, movimentos e organizações em que interacionam atores e interesses estatais e não estatais, tanto em escala local como global, dos quais o Estado é o elemento coordenador.
O terceiro eixo temático é o desenvolvimento de uma concepção substantiva e contra hegemônica da democracia. Esta adquire a forma de uma democracia radical ou de alta intensidade como complemento enriquecedor –e democratizador- da democracia representativa liberal, pela qual toma opção a teoria política hegemônica. O objetivo principal da democracia radical apresentada por Santos é o de converter as relações de poder em relações de autoridade compartilhada.
O quarto eixo de análise aponta para a crítica das concepções etnocêntricas dos direitos humanos e sua reconstrução num projeto intercultural e cosmopolita subalterno através do diálogo horizontal de culturas.
Em quinto e último lugar, a transformação da universidade numa instituição acadêmica e social de caráter intercultural e inclusiva, regida pelo conhecimento como fator de emancipação e promotora ativa da democracia epistêmica e da justiça cognitiva. Todos estes eixos da teoria política de Santos desembocam, por sua vez, num objetivo comum: a reinvenção no século XXI do danificado valor da emancipação social.

  1. A teoria liberal clássica do poder e o enfoque de Foucault.
Para elaborar sua análise do poder, Boaventura de Sousa Santos entra em diálogo e discussão com duas grandes concepções sobre o poder e a política provenientes de orientações epistêmicas e ideológicas diferentes: a teoria política liberal clássica e o pensamento político de Foucault.
Uma cartografia crítica do poder.
As considerações de Boaventura de Sousa Santos sobre a mecânica e as formas de poder existentes nas sociedades capitalistas contemporâneas lhe levam a construir uma teoria política contra hegemônica que inclui uma nova cartografia do poder político e de seus modos de produção. Esta análise estrutural do poder tem um duplo objetivo: o primeiro, na linha de Foucault, consiste em revelar e criticar as ocultações que produzem os discursos políticos [neo]liberais dominantes sobre o político; o segundo é o de amplificar os conceitos de «poder político» e «direito» mais além dos reduzidos limites que a teoria política liberal clássica estabelece. A análise cartográfica dos poderes políticos que circulam nas sociedades capitalistas contemporâneas permite a Santos identificar distintos sistemas de opressão e elaborar, como proposta alternativa, um mapa da emancipação social fundado em processos de democratização radical.
Mais que do poder, em abstrato, como se fosse uma substância externa, transcendente e autônoma, Santos fala habitualmente, adotando uma perspectiva contextual e relacional, de relações intersubjetivas e intergrupais de poder.
A partir de uma perspectiva geral, Santos define o conceito de «poder» como «qualquer relação social regulada por um intercâmbio desigual». Estes intercâmbios desiguais englobam de maneira virtual todas aquelas condições –bens materiais, recursos, oportunidades, símbolos, valores, entre outras- que afetam, e inclusive determinam, nossa vida pessoal e social. As relações de poder, segundo a definição anterior, constituem processos de intercâmbio desigual entre indivíduos ou grupos sociais; são, em outros termos, conjuntos de relações sociais entre sujeitos iguais na teoria porém desiguais na prática.
Sob a influência do pensamento de Foucault, Santos distingue duas dimensões distintas do poder. Por um lado, o exercício do poder cósmico, aquele centrado no Estado, hierarquicamente organizado e que tem uns limites formais estabelecidos por relações burocráticas e institucionalizadas. Em termos comparativos, se corresponde com o poder estatal teorizado por Foucault. Pelo outro, e em contraposição, está o poder caósmico, o poder descentralizado e informal que não tem uma localização específica, emerge de intercâmbios sociais desiguais, se exerce desde vários microcentros de poder de maneira caótica e não tem uns limites predefinidos. É outra maneira de se referir ao poder disciplinar foucaultiano.
A cartografia estrutural que Santos desenvolve tem como foco prioritário de atenção analisar as formas de desigualdade social que produzem as relações de poder. A ideia chave sobre a qual se sustenta a análise é que as relações de poder não existem nem ocorrem de maneira isolada, senão que se produzem em sequência ou cadeias, de maneira que o poder atua através de complexas redes políticas e sociais. É o que Santos chama constelações de poder, definidas como «conjuntos de relações entre pessoas e entre grupos sociais». Tendo em conta a definição anterior do poder oferecida por Santos, convém advertir-se de que as constelações de poder não se baseiam na solidariedade, na cooperação ou no reconhecimento mútuo entre as pessoas, senão que constituem relações sociais assimétricas nas quais uma das partes tem a capacidade para tratar as necessidades e interesses da outra de maneira desigual. Em seu funcionamento, as constelações de poderes combinam componentes cósmicos com uma pluralidade de componentes caósmicos.
Santos tenta encontrar uma via de análise que não reproduza as deficiências da teoria liberal do poder nem as da concepção foucaultiana. A respeito da primeira, critica o que denomina a «ortodoxia conceitual» da teoria política liberal: a ideia segundo a qual o Estado, em comparação com a vida espontânea e pré- política própria do estado de natureza, guiada pela conservação dos direitos naturais individuais e a satisfação dos interesses privados, é uma construção artificial. É, com efeito, a explicação que legitima a dicotomia entre o público e o privado, núcleo duro da ortodoxia conceitual liberal. Dela formam parte outras importantes dicotomias e ideias, como a cisão entre o coletivo e o individual, a tensão entre o direito natural e o direito positivo, a que se estabelece entre a lei e o contrato, a despolitização da sociedade civil, o confinamento da democracia ao âmbito público, a redução dos poderes políticos ao poder político liberal e a do direito ao direito legal estatal.
Com relação à análise foucaltiana do poder, Santos apresenta duas críticas. A primeira se refere à visão extremamente fragmentária e homogeneizante que Foucault tem do poder disciplinar. Para Santos, o poder caósmico-disciplinar não é tão disperso nem carente de centro como acreditava Foucault. Se, como afirmava o filósofo, o poder impregna todos os lados, na realidade não está em nenhuma parte, daí a necessidade de estabelecer um princípio de estruturação e hierarquização que sirva como instrumento de diferenciação interna do poder disciplinar, porque nem todos os poderes sociais são iguais, nem são idênticas suas lógicas de ação: o poder caósmico não se exerce da mesma maneira na fábrica, na família ou na escola. A conceituação de Foucault não distingue, portanto, as condições específicas de cada um dos poderes sociais em circulação. A segunda crítica está relacionada com a concepção monolítica e pura que Foucault tinha do poder jurídico. O erro de Foucault, na opinião de Santos, está em identificar equivocadamente o jurídico com o estatal, já que em multidão de sociedades se pode encontrar corpos normativos não reconhecidos formalmente pelo Estado, como a legalidade indígena ou a lei gitana, ordens jurídicas em competição com a lei oficial estatal. Para Santos, o poder jurídico não é um corpo isolado e impermeável, mas sim flexível e heterogêneo que estende vínculos estáveis com outros tipos de poder social. Sustenta, de fato, que uma das características fundamentais da modernidade ocidental é o chamado isoformismo estrutural entre o direito e a ciência: a ideia segundo a qual a ordem social tem que ser o reflexo da ordem científica, premissa que levou o direito a converter-se numa espécie de alter ego da ciência moderna. Se trata de fazer ver a inter-relação que há entre o poder jurídico e o poder disciplinar, aspecto que a análise de Foucault tinha descuidado. Critica, ademais, que na teoria foucaultiana do poder é possível encontrar uma certa desvalorização do poder jurídico estatal, reduzido a uma forma mais de poder entre a multiplicidade de poderes sociais, quando, segundo Santos, o Estado continua tendo uma posição central na configuração das relações de poder.
O marco analítico que Boaventura de Sousa Santos constitui trata de cartografar aquelas relações sociais estruturais de poder que geram injustiça e desigualdade. Este mapa, cuja lente de enfoque abarca as sociedades capitalistas que formam parte do sistema mundial, não adotar uma perspectiva nortecêntrica de análise, no sentido de prestar atenção às dinâmicas globais que afetam não só aos países do centro do sistema capitalista mundial como também, e especialmente, as margens do sistema mundial, nos quais se encontram os países periféricos e semiperiféricos.

5. Seis espaços/tempo do poder.
Fazendo uso de uma metáfora espaço-temporal, Santos distingue seis espaços-tempo estruturais. Internamente, cada um dos espaços-tempo estruturais está constituído por seis elementos que determinam seu sentido e alcance: o primeiro é uma unidade de prática ou agência social, a dimensão ativa do espaço-tempo que organiza a ação coletiva e individual a partir de um critério principal de identidade; o segundo se refere a uma forma institucional privilegiada, que se encarrega de criar pautas, estruturas, modelos e procedimentos de normalização, assim como de organizar as relações sociais em sequências rotineiras até conseguir que os modelos estabelecidos se naturalizem e formem parte do sentido comum; o terceiro, o forma uma dinâmica de desenvolvimento, que é o princípio de racionalidade que imprime a orientação da ação social e define o pertencimento das relações sociais a um ou outro espaço estrutural; o quarto elemento concerne a um mecanismo de poder, relativo a formas de intercâmbio desigual entre indivíduos ou grupos. As diferentes formas de intercâmbio desigual originam diferentes formas de poder e, ainda que cada uma delas possua um lugar de ação privilegiado, podem estar presentes em todos os espaços-tempo. O quinto elemento é uma forma de direito, referente aos marcos legais e normativos que contribuem para a prevenção e solução de conflitos; a sexta e última dimensão dos espaços-tempo das sociedades neoliberais é uma forma de conhecimento que inclui estilos específicos de lógicas e aspectos retóricos e argumentativos.
Cada um dos ditos espaços constitui uma constelação de relações de poder que [re]produzem intercâmbios desiguais. Estes espaços-tempo estruturais integram as formas de sociabilidade e hábitos relacionais hegemônicos na vida cotidiana, daí seu caráter estrutural, pois desempenham o papel de núcleos configuradores da ordem social e política imperante nas atuais sociedades capitalistas do sistema mundial, condicionando o tipo de relações de família, trabalho, consumo e vizinhança, entre outras. Ainda que entre os espaços-tempo se estabelecem articulações mútuas, cada um deles tem uma lógica própria e apresenta um funcionamento autônomo. Assim, para Santos, as sociedades neoliberais podem ser definidas como séries de constelações políticas formadas por seis modos específicos de produção de poder. Além disso, as sociedades neoliberais também são conjuntos de constelações jurídicas e de constelações epistemológicas.
Vejamos o exame das constelações políticas e dos seis modos básicos de produção de poder, ficando pendente o estudo dos modos de produção de direito e dos modos de produção de conhecimento.
O primeiro dos espaços-tempo estruturais que conformam o modelo de análise da organização das sociedades neoliberais proposto por Santos é o espaço doméstico, que se pode definir como o conjunto de relações sociais que se dão entre os membros da família: entre os cônjuges, entre estes e seus filhos e entre os próprios filhos, principalmente. O objetivo destas relações é o produzir e recriar o âmbito do doméstico e do parentesco: a divisão sexual do trabalho, a gestão dos bens e das responsabilidades familiares, entre outros aspectos. Neste espaço-tempo, as relações entre sujeitos se organizam em torno do patriarcado, a forma de poder dominante. É o sistema de controle e dominação dos machos sobre a reprodução social, as mulheres enquanto sujeitos individuais e coletivos. A dominação patriarcal, no entanto, baseada na autoridade masculina, não se circunscreve ao espaço doméstico, senão que se estende e invade o resto de espaços por meio de instituições econômicas, políticas, midiáticas, legais, culturais, religiosas e militares que desqualificam, discriminam ou excluem as diferentes maneiras de significar, conhecer e sentir das mulheres. A unidade de prática social característica deste espaço é a diferença sexual e geracional.
As instituições privilegiadas são o matrimônio e a família —entenda-se a família nuclear, formada por cônjuges de sexo diferente com filhos legítimos—. O princípio de racionalidade operativo é a maximização da afetividade. A forma de conhecimento própria é o familismo ou cultura familiar. Por último, a forma hegemônica de direito é o direito doméstico.
Em segundo lugar, se encontra o espaço da produção, no qual se desenvolvem relações sociais em torno de valores econômicos de mudança derivados de processos produtivos. As relações que se dão neste espaço-tempo são de dois tipos: relações de produção —relações capital-trabalho— e relações na produção —relações trabalho-trabalho—. O modo de poder próprio é a exploração, entendida no sentido que lhe atribuía Marx, isto é, como o intercâmbio desigual de trabalho humano por um salário que está abaixo de seu valor real. À exploração humana há que acrescentar a exploração da natureza, concebida pelo capitalismo como res extensa cartesiana: matéria passiva, inerte, quantitativa, desprovida de dignidade alguma, que pode ser manipulada e explorada ao bel-prazer [do depredador].
A unidade de prática social, formam-na a classe social e a natureza. A dimensão institucional se materializa na fábrica e na empresa. A dinâmica de desenvolvimento atuante é a otimização do lucro e a maximização da degradação da natureza. O corpo normativo que rege estas relações é o direito de produção e a forma epistemológica que desponta no produtivismo ou, de maneira mais geral, na cultura empresarial.
O terceiro lugar é ocupado pelo espaço de mercado, constituído por relações sociais que têm como base a distribuição e o consumo de valores de câmbio no livre mercado. A modalidade de poder, adotando uma perspectiva marxista, é o fetichismo das mercadorias, que guarda relação direta com a exploração. Com este conceito, Marx fazia referência à coisificação dos seres humanos e à personificação dos objetos que se produz na sociedade capitalista. Nos intercâmbios mercantis, as mercadorias aparecem dotadas de um caráter autônomo, isto é, não evidenciam as forças produtivas e as relações sociais de produção necessárias para fabricá-las. Como resultado disso, o trabalhador percebe o objeto produzido como algo estranho à sua atividade: é a sensação de alienação que lhe provoca o fato de ser um mero instrumento alugado para a elaboração de um objeto que não lhe pertence e que no mercado se relaciona como se fosse uma pessoa, enquanto as pessoas, na esfera produtiva, o fazem como se fossem objetos. O fetichismo das mercadorias alude também à falta de liberdade da qual, segundo Marx, o consumidor padece, já que as possibilidades de quem compra estão condicionadas pela posição que ocupa na organização social. Neste espaço-tempo, a unidade de prática social é o cliente ou consumidor. A instituição social central é o mercado. O princípio de racionalidade se traduz na maximização da utilidade e na mercantilização total das necessidades. A forma jurídica é o direito do intercâmbio e a forma epistemológica relevante é o consumismo ou cultura de massas.
O quarto espaço-tempo estrutural é o espaço da comunidade, definido como a série de relações sociais desenvolvidas em torno da produção de territórios físicos e universos simbólicos que favorecem a identificação coletiva. O dispositivo de poder ativo é a diferenciação desigual, mediante a qual se identifica diferença com inferioridade: o sujeito ou grupo percebido socialmente como diferente com relação aos códigos socioculturais imperantes de regulação é, em virtude de sua diferença empírica —de gênero, etnia, orientação sexual, biológica, entre outras—, classificado como inferior. Os processos de diferenciação desigual funcionam criando mecanismos de identidade —ou inclusão— e diferença —ou exclusão— utilizados para discriminar entre membros externos e internos à comunidade. Nesta constelação política, jurídica e epistemológica, a unidade de prática social é a etnicidade, a raça, a nação, o povo ou a religião. As instituições de normalização adotam a forma da comunidade, do bairro, da região, das organizações populares de base e das igrejas. A racionalidade que guia a ação é a maximização da identidade. O corpo de leis que regula estas relações é o direito da comunidade e as formas dominantes de saber são a cultura local e o conhecimento da tradição.
O espaço da cidadania, em quinto lugar, é aquele no qual predominam as relações de obrigação política vertical, entre o Estado e os cidadãos. O mecanismo específico de poder é a dominação. Enquanto está centrada no Estado e é exercida por ele, a dominação é a modalidade de poder mais fortemente institucionalizada, daí que seja a única forma de poder que a teoria política liberal clássica considere como poder político. Na teoria política crítica de Boaventura de Sousa, por outro lado, o espaço cidadão é uma das várias formas de poder social. Sua unidade de prática social é a cidadania. O aparelho institucional é o Estado. O modo de racionalidade a maximização da lealdade. O marco legal, o proporciona o direito territorial e as formas de conhecimento são o nacionalismo educacional e cultural e a cultura cívica.
Em sexto e último lugar, se encontra o espaço mundial, definido como o conjunto de relações sociais que a divisão internacional do trabalho produz nas sociedades nacionais.
A forma própria de poder é o intercâmbio desigual, no sentido mais estrito do termo, e se refere às relações de intercâmbios econômicos desiguais realizados entre o centro, a periferia e a semiperiferia do sistema mundial. É uma forma de poder muito estudada pelos teóricos do sistema mundial, do imperialismo comercial e das teorias da dependência. O Estado-nação é a unidade de prática social. O emaranhado institucional é formado pelo sistema interestatal, pelos organismos internacionais e as organizações supra estatais. O princípio de racionalidade é a maximização da eficácia. O padrão normativo que regulamenta os intercâmbios no sistema mundial é o direito sistêmico e a forma epistemológica que sobressai é a ciência.

6. Mapa dos lugares da produção e reprodução do poder.
A partir de suas reflexões sobre a natureza do poder político e sua dinâmica de funcionamento nas atuais sociedades capitalistas, Boaventura de Sousa Santos elabora um complexo mapa em que identifica os lugares estruturais que produzem e reproduzem relações políticas de poder. É um marco analítico proposto como alternativa teórica que resulta, por um lado, de uma crítica à teoria liberal do poder que intenta desativar a dicotomia entre Estado e sociedade civil e seus corolários —ancoragem do direito e da política no nicho do Estado, profissionalização da política, distinção entre o público e o privado et cetera— e, por outro, da adesão crítica à concepção foucaultiana do poder. Num esforço por superar, entre outras deficiências, o caráter fragmentário e disperso da teoria política de Foucault, Santos localiza e distribui, de maneira mais específica e detalhada que aquele, o poder social em seis espaços-tempo estruturais: o doméstico, o produtivo, o mercantil, o comunitário, o cidadão e o mundial. Isso lhe permite mostrar que «a natureza política do poder não é o atributo exclusivo de uma determinada forma de poder, porém, sim, o efeito global de uma combinação de diferentes formas de poder e de seus respectivos modos de produção».
Uma das contribuições mais interessantes da análise do poder que explica a teoria política contra hegemônica de Boaventura de Sousa Santos é a ideia segundo a qual as sociedades capitalistas não devem ser consideradas formações sociais articuladas em torno a um direito único, o direito estatal, nem a uma política única, a expressada na relação entre o Estado e a sociedade civil por via da representação política democrática. Ao contrário, são concebidas como uma pluralidade de constelações jurídicas, políticas e epistemológicas relacionadas entre si. Este jogo de poderes políticos, jurídicos e epistemológicos em relação recíproca permite a Santos adotar uma perspectiva relacional que dilui a dicotomia jurídico-política liberal entre o público-político e o privado-pessoal, evitando assim cair tanto na «hiperpolitização do Estado» como em seu reverso, a «despolitização da sociedade civil» causada pela teoria política liberal.
Ao assumir como natural a divisão entre o público e o privado, a teoria política liberal menosprezou a ideia de uma pluralidade de poderes políticos em circulação social e investiu suas energias em levar a cabo uma certa democratização do poder estatal enquanto única forma reconhecida de poder político-público. No entanto, e como contrapartida, não reconhecer que o poder, mais além do exercido pelo Estado sobre a cidadania, atua em múltiplos espaços e se reproduz de muitas maneiras —mediante discursos e práticas que abarcam desde a violência física até mecanismos simbólicos e institucionais mais sutis, tais como as leis vigentes, os costumes herdados e a mentalidade em voga—, conduziu a uma teoria política cega e conservadora que deixava numa situação de vulnerabilidade aqueles que no âmbito considerado privado padeciam de atos discriminatórios. A teoria política liberal não é, neste sentido, crítica nem emancipatória, pois não denuncia as injustiças de formações sociais que atormentam aos coletivos mais frágeis, invisibiliza e legitima as discriminações sexistas, econômicas, étnicas e culturais e não apresenta elementos para enfrentar as várias formas de opressão —discriminação, abusos, exploração, exclusão, falta de oportunidades, entre outras— que condicionam a vida cotidiana de milhões de pessoas em todo o mundo. Não é, definitivamente, uma teoria política solidária com os que sofrem relações políticas de sujeição. Por esta razão, uns dos méritos mais notáveis da teoria política crítica de Santos é o de ampliar os limites do poder político e da opressão.
Quando uma determinada construção social ou relação de poder é despolitizada, isto é, privatizada e não sujeita a responsabilidade política, até o ponto de se converter numa realidade naturalizada, se está evitando que quem a sofre possa emancipar-se de uma situação injusta.
Desterrar do âmbito do poder político estatal fenômenos socioculturais hoje dominantes, como o patriarcado heterossexista ou a produção e o consumo capitalistas, só contribui para aumentar as desigualdades entre pessoas, naturalizar relações de subordinação e desarticular o privado como espaço político para a reivindicação cidadã. Pode-se dizer que Santos, neste aspecto, apresenta um conceito de liberdade que conecta com a tradição política republicana, para a qual a liberdade não é a liberdade liberal como ausência de interferência, mas sim a emancipação das relações de dominação despótica ou, como a entende o filósofo Philip Pettit[12], a ausência de dominação arbitrária. Chama a atenção, a este respeito, como o Estado de direito democrático-liberal é capaz de conviver comodamente com formas despóticas de poder isentas de qualquer controle democrático. É o que de Sousa Santos conceitua como fascismos sociais.
São relações sociais que, ainda que estão formalmente incluídas no marco do Estado e do contrato social, se regem pela arbitrariedade e pelo autoritarismo do forte sobre o fraco: «A vulnerabilidade do indivíduo no fascismo social não resulta [...] da imposição de um poder estatal tirânico frente ao indivíduo, e senão que, pelo contrário, do abandono total do indivíduo —muitas vezes propiciado pelo próprio Estado— de tal maneira que qualquer poder, de qualquer tipo, pode aspirar a regular o comportamento individual e a usar os bens públicos a seu bel- prazer». Desde logo, uma teoria política que convive tranquilamente com uma abundância de despotismos e escravidões sociais cotidianas é dificilmente transformadora e deficitariamente democrática.

À maneira de conclusão.
Digamos, para concluir, que o debate sobre o poder dual na transformação sociopolítica alavancada pelos diálogos de paz deve incluir estas considerações de ordem analítica abordadas ao longo do presente trabalho. Não é possível avançar na construção de um pacto final de paz em março de 2016 se não se identificam claramente os elementos da referida realidade que, evidentemente, a delegação santista tenta conduzir nos termos de uma mudança política monitorada em função dos interesses da elite dominante no Estado.

Notas.
 
[1] La transición que actualmente ocurre en el campo político a raíz del proceso de paz bien puede interpretarse a la luz de las elaboraciones teóricas de Leonardo Morlino, reunidas en el texto “Cómo cambian los regímenes políticos?” (1985), donde plantea un modelo de reformas políticas promovidas desde las elites dominantes en el Estado, las que advertidas de una crisis estructural en el funcionamiento del Estado implementan procesos de reformas y ajustes institucionales para no perder el control de la sociedad y las instituciones. Ver en el siguiente enlace electrónico dicho texto http://bit.ly/1K4Gplm Este enfoque no es el que se comparte este trabajo pero hay que abordarlo para entender cómo y en qué piensa la clase directiva colombiana a propósito del proceso de paz.
[2] El concepto de la democracia como autodeterminación de las masas elaborado por René Zavaleta Mercado es ampliado por Luis Tapias en su texto “Cuatro conceptos de la democracia” al que se puede acceder en el siguiente enlace electrónico http://bit.ly/1OxB6kT
[3] Ver al respecto el siguiente texto con comentarios a la obra de Atilio Boron sobre Geopolítica e imperialismo en America Latina http://bit.ly/1LK4t4F
[4] Sobre la obra de René Zavaleta Mercado ver el siguiente enlace electrónico http://bit.ly/1G1U1Dj
[5] Ver texto de Dussel en el siguiente enlace electrónicohttp://www.ceapedi.com.ar/imagenes/biblioteca/libros/282.pdf
[6] Ver texto de Bourdie en el siguiente enlace electrónico http://bit.ly/1LFxf00
[7] Ver al respecto el siguiente enlace electrónico http://bit.ly/1Pb5YZW
[8] Ver el siguiente enlace electrónico http://bit.ly/1N9i6HQ
[9] Ver en el siguiente enlace electrónico el planteamiento de Melucci al respecto http://bit.ly/1QlSE2l
[10] El análisis del pensamiento de Boaventura de Souza Santos que recogemos en este trabajo lo recogemos desde la aproximación hecha por Antoni Jesús Aguilo Bonet  en su trabajo El concepto de poder en la teoría política contra hegemónica de Boaventura de Souza Santos: una aproximación analítico-critica ver en el siguiente enlace electrónico http://bit.ly/1GECFqI
[11] Sobre la obra de Boaventura de Souza Santos citada por Antoni Jesús Aguilo Bonet en  el texto referido en la anterior nota,  ver la siguiente relación de textos
- «O Estado e os modos de produção do poder social», Oficina do Centro de Estudos Sociais, núm. 7, Universidad de Coimbra, 1-32.
«La transición postmoderna: derecho y política», Doxa: cuadernos de filosofía del derecho, 6, 223-264.
Estado, derecho y luchas sociales, Instituto Latinoamericano de Servicios Legales y Alternativos (ILSA), Bogotá.
Toward a new common sense. Law, science and politics in the paradigmatic transition, Routledge, Nueva York.
De la mano de Alicia: lo social y lo político en la postmodernidad, Siglo del Hombre Editores/Facultad de Derecho Universidad de los Andes, Bogotá.
y GARCÍA VILLEGAS, M. (eds.), El caleidoscopio de las justicias en Colombia, tomo I, Siglo del Hombre Editores, Colciencias, Universidad de los Andes, Universidad de Coimbra-CES, Universidad Nacional de Colombia, ICANH, Bogotá.
(Toward a new legal common sense: law, globalization, and emancipation, Butterworths LexisNexis, Londres.
Crítica de la razón indolente. Contra el desperdicio de la experiencia, Desclée de Brouwer, Bilbao.
El milenio huérfano. Ensayos para una nueva cultura política, Trotta/ ILSA, Madrid.
[12] Ver el siguiente enlace electrónico http://bit.ly/1MnE6fe
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