Raul Carrion *
O Brasil possui um dos sistemas de transporte de cargas e de passageiros mais irracional, antieconômico e poluente do mundo. Ao contrário dos países mais desenvolvidos, que privilegiam o transporte ferroviário e hidroviário, o Brasil adotou um modelo “rodoviarista”, com um altíssimo custo de manutenção e utilização, causador de um elevado índice de acidentes e danoso ao meio ambiente.
Ainda que os números sejam imprecisos, se estima que atualmente o transporte de cargas no Brasil ocorra 60% por rodovias (em São Paulo mais de 90% e no Rio Grande do Sul em torno de 85%), 23% por ferrovias, 13% por hidrovias, 3,6% por dutos e 0,4% por via aérea. Para se ter uma comparação, as ferrovias norte-americanas respondem hoje por 43% dos transportes do país e ali as hidrovias também jogam um importante papel. Em todos os países do mundo que, como o Brasil, possuem dimensões continentais – EUA, Rússia, China, Índia, Canadá, Austrália e, mesmo, a Comunidade Européia – as ferrovias cumprem um papel fundamental no transporte de cargas e pessoas.
A conseqüência dessa matriz de transportes estapafúrdia tem sido o alto custo da logística brasileira – diminuindo a competitividade internacional dos nossos produtos –, a permanente deterioração das nossas rodovias, devido à sua utilização por caminhões cada vez mais pesados (verdadeiros “trens sobre rodas”), mais de 40 mil mortes ao ano (sem contar mais de 100 mil deficientes permanentes), causadas pelos veículos automotores, e degradação ambiental.
Essa situação precisa ser enfrentada com urgência, com grandes investimentos em ferrovias (e também em hidrovias), rompendo com o “rodoviarismo” irracional que nos foi imposto. Para isso é necessário enfrentar grandes interesses econômicos enraizados em nossa sociedade e romper com a incompreensão dos que – com um raciocínio não dialético – argumentam que como não temos recursos para manter a atual malha rodoviária, altamente deteriorada, não há como privilegiar investimentos em ferrovias. Ora, nunca haverá recursos suficientes para a manutenção de nossas rodovias enquanto não existir um sistema ferroviário que retire as cargas pesadas e perigosas das nossas estradas.
Para expor o nosso entendimento sobre essa questão – que consideramos estratégica para o desenvolvimento nacional – dividiremos este trabalho em três partes. Na primeira parte, examinaremos o surgimento das ferrovias no mundo e no Brasil, o papel que elas jogaram no desenvolvimento nacional e a progressiva imposição do “rodoviarismo” ao nosso país. Na segunda parte, estudaremos o caráter predatório da privatização neoliberal de nossas ferrovias, o seu progressivo desmantelamento e a situação extremamente precária em que se encontra hoje a malha ferroviária nacional. Na terceira parte, apresentaremos propostas para retomar o modal ferroviário no Brasil, fundamental para um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento.
O surgimento das ferrovias no mundo
Não é segredo para ninguém que a invenção da máquina a vapor moderna, no final do século XVIII e o seu aperfeiçoamento no decorrer do século XIX, foram decisivos para o desenvolvimento da Revolução Industrial e para a progressiva substituição da manufatura pela produção fabril. Coube a Thomas Newcomen e a James Watt aperfeiçoarem a máquina a vapor durante o século XVII, tornando economicamente viável sua utilização em larga escala.
Mas, ela não modificou somente a produção de bens. Ao mesmo tempo, alterou a locomoção de matérias-primas, bens e pessoas, revolucionando todo o sistema de transportes da época. Assim, em 1784, James Watt patenteou uma carruagem com tração a vapor e em 1769, Nicholas Cugnot construiu o primeiro vagão movido a vapor. Ainda no final daquele século, foram construídos os primeiros navios movidos a vapor, que progressivamente substituíram os barcos a vela. E, em 1804, o engenheiro inglês Richard Trevithick construiu a primeira locomotiva de um só cilindro, com êmbolo e caldeira, para o transporte de cargas nas minas de carvão.
Fruto desses avanços, em 1825 foi inaugurada a primeira ferrovia pública a vapor do mundo, entre Stockton e Darlington, na Inglaterra, com cerca de 40 km. No final do século XIX, as ferrovias na Inglaterra já alcançavam 35.000 km e nos Estados Unidos – então donos do maior sistema ferroviário do mundo – ultrapassavam os 320 mil km. Em 1869, os EEUU já haviam completado a ligação entre o Atlântico e o Pacífico através de uma ferrovia transcontinental. Em sua expansão máxima, a malha ferroviária norte-americana chegou a ter quase 410 mil km. Atualmente, ainda é a mais extensa do mundo, com quase 230 mil km.
Na Rússia – que construiu sua primeira ferrovia em 1837 – a ligação ferroviária entre São Petersburgo e Moscou, com 650 km, foi inaugurada em 1851. Já a estrada de ferro Transiberiana, ligando Moscou a Vladivostok, no litoral do Pacífico, a maior ferrovia do mundo, foi iniciada em 1891 e concluída em 1916. No período soviético, a malha ferroviária da URSS alcançou quase 150 mil km. Hoje, beira os 100 mil km e transporta 1,3 bilhões de passageiros/ano e 1,3 bilhões de toneladas de carga/ano.
Na China, as ferrovias atingem 90 mil km, transportam 2 bilhões de passageiros/ano e 4 bilhões de toneladas/ano, destacando-se pela grande quantidade de trens de alta velocidade.
Na Índia, a primeira ferrovia construída entrou em funcionamento em 1853, percorrendo 34 km entre o cais de Bombaim e a cidade de Thane. Hoje, a rede indiana de ferrovias alcança 64 mil km, transporta 5 bilhões de passageiros/ano e 1,3 bilhões de toneladas de carga/ano, integrando os 28 Estados e 3 Territórios da Índia.
Na Europa, os 25 países da OCDE possuem uma rede de estradas de ferro que totaliza 198 mil km (em uma área que é menos da metade do Brasil)
Em todos esses países, as ferrovias foram essenciais para a integração nacional, fomentaram o desenvolvimento de regiões até então à margem da economia nacional e incentivaram a ocupação do interior e o surgimento de inúmeras cidades.
Os primórdios das ferrovias no Brasil
No Brasil, em 1835, o regente Diogo Antônio Feijó editou o Decreto 100, que regrou as concessões de ferrovias. Em 1840, o inglês Thomas Cochrane, solicitou a concessão para a construção de uma ferrovia pela diretriz do chamado “Caminho Novo”, que terminava às margens do rio Iguaçu, e que serviria para o escoamento da safra do café. Mas, como Cochrane não possuía recursos próprios para tocar a obra, nem conseguiu reunir capitais para realizá-la, nada aconteceu.
Em 1852, O governo imperial editou o Decreto 641, que garantia o pagamento pelo governo de juros de 5% a 7% ao ano a todo capital nacional ou estrangeiro que viesse a ser investido em ferrovias, no Brasil.
Coube então ao sul-riograndense Irineu Evangelista de Souza, futuro Visconde de Mauá, pleitear, em 1852, a construção da primeira ferrovia brasileira, também seguindo a diretriz do “Caminho Novo”, só que – tendo em vista a concessão já dada a Cochrane – pelo atalho das tropas, passando pela cidade de Petrópolis e concluindo no porto da Estrela, praia de Mauá, na foz do rio Inhomirim. Para viabilizá-la, Irineu – que já era um próspero empreendedor que em pleno escravismo lutava pelo desenvolvimento industrial do país – formou a empresa “Estrada de Ferro Petrópolis”, com um capital inicial de 1.300 contos de réis, tendo a garantia governamental de 5% de juros ao ano sobre o capital empregado.
A inauguração do primeiro trecho da estrada de ferro Petrópolis – a 3ª da América Latina e a 21ª do mundo, com 14,5 km de extensão – ocorreu em abril de 1854, com a presença do próprio Imperador D. Pedro II. Em 1856, a linha chegou à raiz da serra, totalizando 16,1 km. Faltava enfrentar a subida da Serra da Estrela.
A rodovia “União e Indústria” deveria alimentar e tornar rentável a “Estrada de Ferro Petrópolis”, trazendo-lhe as cargas da província de Minas Gerais. Forçado a abrir mão dessas cargas para a estrada de ferro D. Pedro II (inaugurada em 1858), Mauá lastimou: “a estrada de ferro de Petrópolis (...) era entregue ao extermínio! Minha opinião (...) foi que se levantassem os trilhos e se vendesse em hasta pública o material da empresa”. (MAUÁ. Autobiografia..., p. 127-128).
A Ferrovia de Mauá só chegou a Petrópolis em 1883, quando ele caminhava para falência e a ferrovia não mais lhe pertencia.
A partir da ferrovia construída por Mauá, multiplicaram-se as ferrovias privadas, tanto pela expansão da produção do café, quanto pela garantia governamental de juros de 5% a 7% em relação ao capital empregado (o risco ficava por conta do Estado, o lucro cabia ao capital). A quase totalidade foi construída no sentido Oeste-Leste, do interior para o litoral – onde se encontravam os portos de exportação, sem qualquer preocupação de interligação com as outras regiões e com a integração nacional. Estavam voltadas à exportação de produtos primários, eram desarticuladas entre si, atendiam a interesse privados localizados, não seguiam parâmetros técnicos comuns - do que a diferença de bitolas é a expressão mais óbvia – o que dificultava a integração física entre as diferentes malhas e aumentava os custos de operação, devido à necessidade de sucessivos transbordos de cargas.
Enquanto as ferrovias não tiveram que enfrentar a concorrência das rodovias, essas graves deficiências não impediram o crescimento, ainda que lento, da malha ferroviária – que em 1907 atingia 17.280 km, transportava 35 milhões de passageiros e 7,5 milhões de toneladas de carga – sendo operada por 56 diferentes empresas, onde 73% tinham menos de 250 km, o que as tornava pouco competitivas.
Como diz Tony Belviso (BELVISO. Guinadas..., p. 60-61):
"As ferrovias brasileiras tiveram o apogeu de expansão quilométrica até os anos 20 (...) culminando com a queda da Bolsa de Valores de Nova York. (...) Antes mesmo desse período, a maioria das empresas ferroviárias já havia sido encampada ou estatizada, sob a mesma alegação: prejuízos e déficits financeiros. Para não ver os trilhos serem abandonados, piorando ainda mais a já frágil ligação com as áreas por ele servidas, o Estado assumia o papel de empreendedor, encampando e mantendo a operação (...) e cobrindo os prejuízos à custa de impostos. Assim, muitas companhias foram criadas apenas com o intuito de serem repassadas ao governo e terem seu capital de volta com lucro (pago com tributos de todos), ficando o poder público com a operação e o déficit. Na década de 20 existiam 48 empresas ferroviárias. Desse total, apenas 18 ainda permaneciam na iniciativa privada. Nos anos 50, apenas uma empresa era particular, a Companhia Paulista de Estradas de Ferro.”
Ou seja: em um primeiro momento, o Estado sustentou a construção das ferrovias com a garantia de juros ao capital privado que viesse a ser investido nelas, portanto, sem risco para os empresários. Após, lhes garantiu polpudos lucros, assumindo o ônus da manutenção e operação das ferrovias por eles construídas...
A implementação do “rodoviarismo” no Brasil
Em 1950, a malha ferroviária brasileira totalizava 36.745 km – dos quais 75% nas regiões Sul e Sudeste – sendo operada por 46 estradas de ferro, onde apenas 6% possuíam bitola larga. A maioria das locomotivas ainda era a vapor, recém tendo sido iniciada a eletrificação das linhas (1.199 km, em 1950), logo abandonada devido a opção pelas locomotivas diesel-elétricas, que começaram a ser adquiridas a partir de 1956, dentro do modelo norte-americano.
Em 1957, – diante do elevado grau de obsolescência das ferrovias federais – o governo Juscelino Kubitscheck criou a Rede Ferroviária Federal S/A, reunindo 18 empresas – que totalizavam 37 mil km de linhas férreas, cujo controle, direta ou indiretamente, já era do governo federal, que subsidiava a sua operação e manutenção. Nessa ocasião, as ferrovias brasileiras transportavam 55 milhões de passageiros e transportavam 26 milhões de toneladas de cargas.
Vivíamos tempos do “Plano de Metas” do Governo JK, que propunha “Fazer 50 anos em 5”. As ferrovias não estavam contempladas nessas metas e a RFFSA nunca mereceu uma maior atenção de JK. Ao contrário, este estava preocupado na implantação de fábricas de automóveis no Brasil e na construção de uma ampla rede de estradas em todo o país, numa opção claramente “rodoviarista”. Diversos ramais deficitários – avaliados com uma lente puramente microeconômica e imediatista – foram desativados.
Os governos Jânio Quadros e João Goulart, que se seguiram, não alteraram essa situação. Apesar de todas essas dificuldades, em 1964 o transporte de passageiros pela RFFSA chegou a 63,9 milhões (17% mais que em 1957) e o de cargas a 27,2 milhões de toneladas (5% a mais).
Com o regime militar, veio a criação, em outubro de 1965, do GEIPOT (Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes), conforme a proposta do “Acordo de Assistência Técnica” firmado entre o governo brasileiro e o BIRD (Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento).
Nessa época, eu era estudante de engenharia na UFRGS e tive a oportunidade de trabalhar como calculista no GEIPOT, realizando a medição do consumo de combustível de distintos veículos, a diferentes velocidades, nas mais variadas estradas do Rio Grande do Sul. Minha primeira surpresa ocorreu por ocasião das provas de seleção, quando só me exigiram duas habilidades: domínio do cálculo matemático e da língua inglesa (o domínio do português não me foi exigido...). A segunda surpresa foi o fato de que praticamente todos os engenheiros e técnicos envolvidos no projeto eram estrangeiros!
Ficou claro para mim – já naquele momento – que a elaboração da política nacional de transportes do regime militar, através do GEIPOT, se dava sob forte influência estrangeira, especialmente norte-americana. Não creio ser um mero acaso a opção pelo “rodoviarismo” no transporte de cargas – em detrimento do hidroviário e ferroviário – em um país continental como o Brasil. Principalmente se tivermos em conta nossa dependência em petróleo e asfalto, além do fato das grandes montadoras de automóveis serem todas estrangeiras. Aliás, o Relatório da “Subcomissão de Transporte Ferroviário, que funcionou na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, em 1991, já apontava:
”A ferrovia no Brasil prosperou até o final da Segunda Grande Guerra Mundial; após isso, enquanto o mundo inteiro desenvolvia o transporte ferroviário, o Brasil, com altíssimos custos, assumia o rodoviarismo. Não é o caso de nos determos aqui na verdadeira história da subordinação a interesses particulares de grupos poderosos que se escondem por trás dessa opção política. Mas cabe registrar, ainda que de passagem, que a força desses interesses – das montadoras internacionais de automóveis, dos grandes grupos petrolíferos, etc. – influenciou decisivamente as políticas de transporte implementadas pelo Estado brasileiro, num claro exemplo de privatização da coisa pública.” (ALERS. Relatório..., p. 15).
O fato é que durante o regime militar foram eliminados cerca de 5 mil km de ramais de baixa densidade – muitos onde hoje estão instaladas grandes e potenciais empresas exportadoras – e os trens de passageiros de longo curso foram sendo progressivamente desativados. Ao mesmo tempo, o transporte de cargas passou a se especializar em minérios e produtos agrícolas para a exportação, proibindo-se as encomendas, os correios, as mercadorias em pequenas expedições e as cargas fracionadas.
Com isso, muitas estações ficaram sem razão de existir e acabaram fechadas. Um número cada vez maior de cidades deixou de ter vínculo com as ferrovias, que perderam qualquer caráter integrador e promotor do desenvolvimento, reduzindo-se a meros corredores de exportação de commodities (produtos primários cotados internacionalmente) e de matérias primas, sem interligação entre as malhas – em um claro processo voltado à espoliação de nossas riquezas naturais. Em 1970, o transporte de passageiros caiu para 33,8 milhões (-47%) e o de cargas aumentou para 32,6 milhões de toneladas (+20%). Em 1980, o número de passageiros transportados reduziu-se a apenas 13,8 milhões (-59%), enquanto as cargas transportadas subiram para 71 milhões de toneladas (+117%).
A descoberta das jazidas de ferro de Carajás, no Pará, no final da década de 70, ensejou a construção da Estrada de Ferro Carajás, concluída em 1985, com 892 km de extensão, acentuando ainda mais a concentração de nossas ferrovias no transporte de minérios e produtos primários em geral. Cinco mercadorias – minério de ferro, carvão mineral, produtos siderúrgicos, derivados de petróleo e grãos agrícolas, passaram a concentrar 90% do transporte de carga da malha federal.
O volume da carga transportada, em 1996, às vésperas da sua privatização, chegou a 83 milhões de toneladas e desde então vem crescendo, sem alterar o seu perfil de cargas de baixo valor agregado.
Na medida em que as empresas mineradoras e exportadoras de produtos primários são ao mesmo tempo controladoras e maiores clientes das ferrovias concedidas, não têm qualquer interesse em diversificar a sua carga ou em integrar a economia nacional, realizando uma verdadeira “captura” de um serviço essencialmente público pelos interesses privados.
Bibliografia citada
ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO-RS. Relatório da Subcomissão de Transporte Ferroviário. 1991.
BELVISO, Tony. Guinadas Ferroviárias In História Viva, Caminhos do Trem, vol. 4, A conquista do Território. VASQUEZ, Pedro (org). São Paulo, Dueto Editorial, 2008.
MAUÁ, Visconde de. Autobiografia; Exposição aos credores e ao público. O meio circulante no Brasil. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 1998.
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* Historiador e membro da Comissão Política do PCdoB/RS. Foi vereador de Porto Alegre em três legislaturas e deputado estadual do RS por duas legislaturas. Atualmente, preside a Fundação Maurício Grabois-RS
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Com apoio de Vermelho
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