domingo, 4 de outubro de 2015

A transição para a paz

Por Horacio Duque Giraldo
O processo de conversações da Mesa de Havana, entre o governo do Presidente Santos e as Farc, colocou a Colômbia, com seus avanços, numa transição política da violência para a paz. Hoje, já estamos fazendo uma rota para deixar para trás, definitivamente, o conflito social e armado de quase 60 anos. As Farc pensam em construir um movimento político apoiados na construção de novas realidades sociais a partir de uma Assembleia Constituinte, as reformas institucionais, a erradicação do paramilitarismo, a segurança para seus dirigentes, o trâmite dos “asteriscos” e a referenda popular dos consensos alcançados.
Na vida cotidiana dos colombianos, particularmente daqueles situados em zonas de intenso conflito armado, a violência parece murchar como reflexo da vigência da trégua unilateral determinada desde 20 de julho pelas Farc e de uma desescalada recíproca que envolve aos contendores da guerra no cessar de hostilidades, do desminado e dos ataques à infraestrutura energética. Não se trata de algo absoluto. Ainda persistem as violências institucionais dos grupos dominantes no Estado. A máquina governamental conserva inalterada a cultura despótica da arbitrariedade e do ultraje aos grupos subordinados afetados pela carência de espaços de organização sólidos em sua resistência frente ao desmando crônico das oligarquias locais. O fascismo muda desde seu berço original, se recria e se expressa com outras maneiras para manter a linha e fulminar a quem o impede a partir da subalternidade campesina, operária, indígena, afro ou da militância emancipatória e libertadora. Por acaso não é essa a brutal mensagem da captura de Feliciano Valencia, o líder nasa caucano, a quem integrantes do corrupto sistema judicial regional, representado no Tribunal estadual, condenaram a 18 anos de prisão por um recente ato coletivo de rechaço à violência militar governamental que pretendia impedir a reivindicação das terras ancestrais saqueadas por poderosos terra-tenentes?
Não se trata de um acontecimento isolado. Se repetirá para relembrarmos que a violência persistirá como recurso essencial de poder de minorias sociais e políticas locais.
Ainda assim, a decisão de avançar para a superação do conflito é real. Superar a violência requer muita paciência e inteligência para evitar a provocação da ultra direita, quem mais vantagem saca com o uso da força.
Recentes avanços no trabalho da Mesa de conversações de paz de Havana estão indicando que o processo se situa numa transição política. De que transição se trata? É a pergunta que convém se expor.
A transição como categoria analítica tem sido considerada ao longo dos atuais diálogos. O governo aludiu a uma “justiça transicional” e nesses termos elaborou um Marco jurídico para a paz que não resultou adequado aos requerimentos do Acordo especial para a terminação do conflito que serve de suporte às conversações de paz. Sua visão unilateral das coisas jurídicas é o que explica sua irrelevância. Hoje, com o funcionamento de uma subcomissão de expertos, há sinais de que surgem consensos nessa matéria para encerrar assim o prolongado debate do ponto das vítimas da agenda temática.
Fazer uso da transição como ferramenta de análise não implica excluir outras de muito valor como a mudança, a ruptura e a revolução. Ainda que em muitos casos não há que esquecer que nas transições, ademais da esfera política, há que se referir à econômica, institucional ou aquela outra que afeta a organização do Estado, e cuja conjunção em alguns âmbitos especiais tem sido caracterizada como de uma revolução sem precedentes históricos.
No caso concreto que nos ocupa, a transição encaixa no modelo escolhido para terminar a guerra civil nacional. Reflete umas correlações de força e o sistema de consensos determinado para esgotar os eixos do litígio.
Seu conteúdo material reflete, inicialmente, um percorrido entre a violência e a paz. Um passo a partir dos cenários densos da violência [concentração latifundiária da terra, pobreza, miséria, ausência de liberdades democráticas, regime autoritário, constrangimento midiático etc], para os âmbitos da vigência certa e plena dos direitos fundamentais das pessoas.
A delegação plenipotenciária da resistência campesina revolucionária na Mesa de Havana expressou recentemente sua disposição de avançar na organização de sua ação política nos termos “da reincorporação das FARC-EP à vida civil,... para abordar e discutir os procedimentos para o trânsito de organização levantada em armas a movimento político aberto. (http://bit.ly/1gDmNhe).
Sintoma da potência alcançada pelo processo. A vontade de paz o baliza, o empurra, o direciona para deixar para trás a violência, à qual se agarram os grupos da ultra direita mais radicais porque sabem que é o terreno apropriado de seu auge e reprodução política.
Porém, a transição para a paz é mais que isso, por ser importante. Ela implica de maneira imediata assumir outros problemas álgidos. Me refiro aos seguintes:
Primeiro. Ao compromisso do governo Nacional de revisar e adiantar as reformas e os ajustes institucionais necessários para fazer frente aos desafios da construção da paz. O que, a partir da minha apreciação, implica uma aproximação ao tema do Estado e seu papel na construção da paz mediante reformas transcendentais que deixem para trás o modelo neoliberal de ajustes promovidos nas últimas décadas a partir do ângulo do que se conhece como Nova gestão pública. Aproximação que deve assumir o debate sobre a natureza das instituições estatais e as tensões que se derivam do choque de visões contrapostas ao redor da organização do Estado e da administração pública.
Segundo. “Assumir o mandato da Agenda para esclarecer o fenômeno do paramilitarismo, e, o que é mais urgente para o futuro da paz, sua desarticulação, porque guerra suja no pós acordo constituiria um contrassenso. Essa ameaça deve se desmontar se queremos a reconciliação”. Eliminar o paramilitarismo captura a reforma das Forças Armadas como dispositivo chave da violência. Os militares a promovem à sua maneira, segundo dados recentes que dão conta de trabalhos expertos. No entanto, não convém a distorção insinuada, pois evita o consenso na projeção de uns novos institutos armados para as épocas de paz e defesa da integralidade territorial da nação, função primordial das mesmas na visão clássica. Aos oficiais e expertos que tratam do tema da reforma militar lhes convém criar canais de comunicação e interação com outras vozes e opiniões; não só têm transcendência os olhares desde o que sucede ou ocorreu nos exércitos dos Estados Unidos ou Chile, como expôs Pedro Javier Rojas Guevara, há pouco em uma coluna de El Tiempo. (http://bit.ly/1V33qvr).
Terceiro. “Retomar a discussão sobre ‘asteriscos’ ou assuntos cuja discussão foi adiada como, por exemplo, o estabelecimento da quantidade de hectares que conformarão o Fundo de terras, necessário para a execução da Reforma Rural Integral, também é tempo de tirar do freezer as 28 ressalvas para arejá-las e buscar consenso em torno delas”.
Quarto. Determinar os procedimentos de legitimação dos consensos mediante sua referenda popular e a realização de uma Constituinte soberana, que bem termine de assumir-se com o debate propiciado pela reforma apresentada com o Ato legislativo que pretende criar uma Comissão legislativa e dar faculdades de paz ao Presidente da República, pois são tantos seus vazios e suas potenciais inconsistências que o risco de seu naufrágio no exame óbvio da Corte Constitucional pode tornar-se uma realidade nos meses vindouros, uma vez se surta seu trâmite nas Câmaras legislativas. Não creio tanto no fantasmagórico “golpe de Estado” sugerido pelo delirante uribismo para distorcer a proposta do Presidente Santos, senão que é tal o emaranhado de envolvidos que dessa gestão não creio que saia algo positivo no articulado, salvo um acordo nacional inclinado pela Constituinte como ponto de corte e de partida para uma nova etapa histórica da Colômbia.
Quinto. Implementar e executar os consensos suficientes alcançados de maneira que se evite enganos e frustrações coletivas no povo.
Sexto. Num plano mais geral, não resulta irrelevante abordar os desafios que para a esquerda, o movimento social e o campo da oposição democrática tem a transição para a paz. À esquerda corresponde a maior carga na construção da mesma. Fazê-lo com solvência quer dizer apresentar novas formas de organização, novas linguagens, novos símbolos, novas maneiras de relacionamento com a multidão.
Nota. Grave a crise da saúde em Cali e no Vale do Cauca. As finanças do emblemático Hospital Estadual não dão mais. A única saída é a mobilização cidadã exigindo urgentes soluções fiscais ao governo em todos os seus níveis, começando pelos Ministérios de Fazenda e Saúde.




Equipe ANNCOL - Brasil






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