quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Parte de entrevista do ROMÁRIO ao jornalista Cosme Rimoli - TV Record .

Gente, eu nunca imaginei que o Romário tivesse esse discernimento!!Tenho que me render ao senso observador, politico,critico, e a sua visão sobre educação.Muito bem, Romário.Voce está no parlamento, faça a diferença!(Ninféia G)


- Você foi recebido com preconceito em Brasília?
Olha, vou ser claro para quem ler entender como as coisas são. Há o burro, aquele que não entende o que acontece ao redor. E há o ignorante, que não teve tempo de aprender. Não houve preconceito comigo porque não sou nem uma coisa nem outra. Mesmo tendo a rotina de um grande jogador que fui, nunca deixei de me informar, estudar. Vim de uma família muito humilde. Nasci na favela. Meu pai, que está no céu, e minha mãe ralaram para me dar além de comida, educação. Consciência das coisas... Não só joguei futebol. Frequentei dois anos de faculdade de Educação Física. E dois de moda. Sim, moda. Sempre gostei de roupa, de me vestir bem. Queria entender como as roupas eram feitas. Mas isso é o de menos. O que importa é que esta sede de conhecimento me deu preparo para ser uma pessoa consciente... Preparada para a vida. E insisto em uma tese em Brasília, com os outros deputados. O Brasil só vai deixar de ser um país tão atrasado quando a educação for valorizada. O professor é uma das classes que menos ganha e é a mais importante. O Brasil cria gerações de pessoas ignorantes porque não valoriza a Educação. E seus professores. Não há interesse de que a população brasileira deixe de ser ignorante. Há quem se beneficie disso. As pessoas que comandam o País precisam passar a enxergar isso. A Saúde é importante? Lógico que é. Mas a Educação de um povo é muito mais.
- Essa ignorância ajuda a corrupção? Por exemplo, que legado deixou o Pan do Rio?
Você não tenha dúvidas que a ignorância é parceira da corrupção. Os gastos previstos para o Pan do Rio eram de, no máximo, R$ 400 milhões. Foram gastos R$ 3,5 bilhões. Vou dar um testemunho que nunca dei. Comprei alguns apartamentos na Vila Panamericana do Rio como investimento. A melhor coisa que fiz foi vender esses apartamentos rapidamente. Sabe por quê? A Vila do Pan foi construída em cima de um pântano. Está afundando. O Velódromo caríssimo está abandonado. Assim como o Complexo Aquático Maria Lenk... É um escândalo! Uma vergonha! Todos fingem não enxergar. Alguém ganhou muito dinheiro com o Panamericano do Rio. A ignorância da população é que deixa essa gente safada sossegada. Sabe que ninguém vai cobrar nada das autoridades. A população não sabe da força que tem. Por isso que defendo os professores. Não temos base cultural nem para entender o que acontece ao nosso lado. E muito menos para perceber a força que temos. Para que gente poderosa vai querer a população consciente? O Pan do Rio custou quatro vezes mais do que este do México. Não deixou legado algum e ninguém abre a boca para reclamar.
- Se o Pan foi assim, a Copa do Mundo no Brasil será uma festa para os corruptos...
Vou te dar um dado assustador. A presidente Dilma havia afirmado quando assumiu que a Copa custaria R$ 42 bilhões. Já está em R$ 72 bilhões. E ninguém sabe onde os gastos vão parar. Ningúem. Com exceção de São Paulo, Rio, Minas, Rio Grande do Sul e olhe lá...Pernambuco... Todas as outras sete arenas não terão o uso constante. E não havia nem a necessidade de serem construídas. Eu vi onze das doze... Estive em onze sedes da Copa e posso afirmar sem medo. Tem muita coisa errada. E de propósito para beneficiar poucas pessoas. Por que o Brasil teve de fazer 12 sedes e não oito como sempre acontecia nos outros países? Basta pensar. Quem se beneficia com tantas arenas construídas que servirão apenas para três jogos da Copa? É revoltante. Não há a mínima coerência na organização da Copa no Brasil.
- São Paulo acaba de ser confirmado como a sede da abertura da Copa. Você concorda?
Como posso concordar? Colocaram lá três tijolinhos em Itaquera e pronto... E a sede da abertura é lá. Quem pode garantir que o estádio ficará pronto a tempo? Não é por ser São Paulo, mas eu não concordaria com essa situação em lugar nenhum do País. Quando as pessoas poderosas querem é assim que funcionam as coisas no Brasil. No Maracanã também vão gastar uma fortuna, mais de um bilhão. E ninguém tem certeza dos gastos. Nem terá. Prometem, falam, garantem mas não há transparência. Minha luta é para que as obras não fiquem atrasadas de propósito. E depois aceleradas com gastos que ninguém controla.
- O que você acha de um estádio de mais de R$ 1 bilhão construído com recursos públicos. E entregue para um clube particular.
Você está falando do estádio do Corinthians, não é? Não vou concordar nunca. Os incentivos públicos para um estádio particular são imorais. Seja de que clube for. De que cidade for. Não há meio de uma população consciente aceitar. Não deveria haver conversa de politico que convencesse a todos a aceitar. Por isso repito que falta compreensão à população do que está acontecendo no Brasil para a Copa.
- A Fifa vai fazer o que quer com o Brasil?
Infelizmente, tudo indica que sim. Vai lucrar de R$ 3 a R$ 4 bilhões e não vai colocar um tostão no Brasil. É revoltante. Deveria dar apenas 10% para ajudar na Educação. Iria fazer um bem absurdo ao Brasil. Mas cadê coragem de cobrar alguma coisa da Fifa. Ela vai colocar o preço mais baixo dos ingressos da Copa a R$ 240,00. Só porque estamos brigando pela manutenção da meia entrada. É uma palhaçada! As classes C, D e E não vão ver a Copa no estádio.
O Mundial é para a elite. Não é para o brasileiro comum assistir.
- Ricardo Teixeira tem condições de comandar o processo do Mundial de 2014?
Não tem de saúde. Eu falei há mais de quatro meses que ele não suportaria a pressão. Ser presidente da CBF e do Comitê Organizador Local é demais para qualquer um. Ainda mais com a idade que ele tem. Não deu outra. Caiu no hospital. E ainda diz que vai levar esse processo até o final. Eu acho um absurdo.
- Muito além da saúde de Ricardo Teixeira. Você acha que pelas várias denúncias, investigações da Polícia Federal... Ele tem condições morais de comandar a organização Copa no Brasil?
Não. O Ricardo Teixeira não tem condições morais de organizar a Copa. Não até provar que é inocente. Que não tem cabimento nenhuma das denúncias. Até lá, não tem condições morais de estar no comando de todo o processo. Muito menos do futebol brasileiro...

País tem 11 milhões de pessoas em favelas

Dados do Censo 2010 revelam que 11,4 milhões de brasileiros, o equivalente à população da Grécia, vivem em áreas ocupadas irregularmente e com carência de serviços públicos ou urbanização, como favelas, palafitas, grotas e vilas. São 6% dos habitantes do país.

A reportagem é de Antonio Gois e Denise Menchen e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 22-12-2011.

É o retrato mais preciso já feito dessas áreas, e mostra que o problema é concentrado nas regiões metropolitanas, mas espalhado por todos os Estados. Dez favelas têm população maior que 40 mil pessoas, superior a 86% dos municípios brasileiros.

Em 2000, o IBGE identificou 6,5 milhões de pessoas, ou 4% do total, em "aglomerados subnormais", denominação usada pelo instituto.

METODOLOGIA

Não é possível saber quanto do aumento na década se deve à expansão das áreas irregulares e quanto se deve ao aprimoramento da metodologia de pesquisa, como o uso de imagens de satélite.

Em 2010, foram localizadas 6.329 favelas em 323 municípios. Ficam de fora do levantamento áreas precárias, mas regularizadas, ou irregulares, mas sem precariedade.

QUADRO GRAVE

A pesquisa revelou também que o quadro mais grave de moradia está na região metropolitana de Belém (PA), onde 54% da população vive em favelas e similares.

No caso de serviços básicos, o que mais diferencia as favelas das áreas de ocupação regular das cidades é a proporção de casas com coleta adequada de esgoto.

"O fato de existir um alto percentual de pessoas vivendo nessas áreas decorre do Estado brasileiro ter se omitido por décadas em relação a políticas habitacionais, concomitante a um dos processos de urbanização mais intensos da história da humanidade", diz Sérgio Besserman, ex-presidente do IBGE.

Para a relatora especial da ONU para o direito à moradia adequada, Raquel Rolnik, novos assentamentos precários irão surgir no país nos próximos anos. Ela aponta como motivos a elevação dos preços dos terrenos e as remoções mal conduzidas para a realização de obras, como as da Copa de 2014.

"A máquina de produção de favelas está em operação", diz a urbanista.


pontodepauta | 22/12/2011 at 8:59 | Categories: Ponto de pauta | URL: http://wp.me/pWElV-1bx

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

104 anos de Oscar Niemeyer: veja as obras do arquiteto pelo mundo

Arquiteto que levou o Brasil para a arquitetura mundial tem obras consagradas nos EUA, França e outros países



"Não é o ângulo certo que me atrai, nem a linha reta e inflexível criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual – a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso do rio, no corpo da mulher amada”.


Oscar Niemeyer Ribeiro Soares Filho, que completa hoje 104 anos, levou o nome do Brasil para a arquitetura mundial. Suas obras estão presentes não só aqui, mas também nos Estados Unidos, França, Alemanha, Argélia, Itália, entre outros países.

Apesar de sua preocupação com a funcionalidade, a atenção à estética é uma das características mais evidentes de seus projetos, muitos dos quais contaram, inclusive com a participação de artistas plásticos consagrados como Cândido Portinari, Bruno Giorgi, Alfredo Ceschiatti, Burle Marx e Tomie Othake.

Após se formar engenheiro arquiteto pela Escola Nacional das Belas Artes do Rio de Janeiro em 1934, Niemeyer começou a trabalhar no escritório de Lúcio Costa, integrando a equipe que projetou o prédio do Ministério da Educação (Edifício Gustavo Capanema), um dos marcos da arquitetura brasileira.

O ano seguinte reuniu Niemeyer ao político Juscelino Kubitschek, então prefeito de Belo Horizonte, que o convidou para projetar o Conjunto da Pampulha - obra que o arquiteto até hoje considera uma de suas favoritas.

Em 1947, ganhou por unanimidade o concurso para a construção da sede da Organização das Nações Unidas em Nova York.

No início da década de 1950, projetou o parque do Ibirapuera e o Edifício Copan, que se tornariam cartões-postais da cidade de São Paulo. Também viajou à Europa, participando do projeto para a reconstrução de Berlim.

Quando Juscelino Kubitschek assumiu a Presidência da República em 1956, Niemeyer foi incumbido de organizar o concurso para a escolha do plano-piloto de Brasília, vencido por Lúcio Costa.

Em poucos meses, Oscar Niemeyer projetou o Palácio da Alvorada, o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional, a Catedral, os prédios dos Ministérios, além de edifícios residenciais e comerciais da nova capital, inaugurada em 21 de abril de 1960.

Com o golpe militar de 1964, Niemeyer, cuja vida é marcada pelo engajamento político, foi impedido de trabalhar no Brasil, por isso resolveu mudar-se para a França. Com um escritório em Paris, ele ampliou suas fronteiras e desenvolveu projetos em outros países como na Itália, em Portugal e na Argélia.

Nos anos 80, com o abrandamento da ditadura militar, Niemeyer retornou ao Brasil e, no mesmo ano, projetou o Memorial Juscelino Kubitschek em Brasília. Quatro anos depois, sob o governo de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, projetou o Sambódromo. Em 1987, o Memorial da América Latina em São Paulo. Foi ainda responsável pelos CIEPs, Centro Integrado de Educação Pública.

Em 1991 projetou o Museu de Arte Contemporânea de Niterói e ao longo dos dez anos finais do século 20 criou várias outras obras importantes. Não interrompeu seu trabalho nos primeiros oito anos do século 21, desenvolvendo projetos no Brasil, em Oslo (Noruega), em Moscou e em Londres. Entre as obras recentes mais famosas de Niemeyer estão o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba (PR), conhecido popularmente por sua forma de olho, e o Auditório Ibirapuera, em São Paulo.

http://msn.imovelweb.com.br/Noticias/Mercado/104-anos-de-Oscar-Niemeyer--veja-as-obras-do-arqui.aspx

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Fidel Castro: Cinismo genocida (Primeira parte)

Sinto-me no dever de transmitir àqueles que se ocupam em ler estas reflexões, o critério de que todos, sem exceção, estamos na obrigação de criar consciência sobre os riscos que a humanidade está correndo de forma inexorável, rumo a uma catástrofe definitiva e total como consequência das decisões irresponsáveis de políticos a quem o acaso, mais que o talento ou o mérito, pôs em suas mãos o destino da humanidade.

Sejam ou não os cidadãos de seu país portadores de uma crença religiosa ou céticos com relação ao tema, nenhum ser humano em seu juízo são, estaria de acordo com que seus filhos, ou familiares mais próximos, pereçam de forma abrupta ou vítimas de atrozes e torturantes sofrimentos.

Depois dos crimes repugnantes que com frequência crescente a Organização do Tratado do Atlântico Norte, sob a égide dos Estados Unidos e dos países mais ricos de Europa vêm cometendo, a atenção mundial se concentrou na reunião do G-20, onde se devia analisar a profunda crise econômica que hoje afeta todas as nações. A opinião internacional, e particularmente a europeia, esperavam resposta à profunda crise econômica que com suas profundas implicações sociais, e inclusive climáticas, ameaçam todos os habitantes do planeta. Nessa reunião se decidia se o euro podia manter-se como a moeda comum da maior parte da Europa, e inclusive se alguns países poderiam permanecer dentro da comunidade.

Não houve resposta nem solução alguma para os problemas mais sérios da economia mundial apesar dos esforços de China, Rússia, Indonésia, África do Sul, Brasil, Argentina e outros de economia emergente, desejosos de cooperar com o resto do mundo na busca de soluções aos graves problemas econômicos que o afetam.

O insólito é que logo que a Otan deu por concluída a operação na Líbia – depois do ataque aéreo que feriu o chefe constitucional desse país, destruiu o veículo que o transportava e o deixou à mercê dos mercenários do império, que o assassinaram e o exibiram como troféu de guerra, ultrajando costumes e tradições muçulmanos – a AIEA, órgão das Nações Unidas, uma instituição que deveria estar a serviço da paz mundial, lançou o informe político, carimbado e sectário, que põe o mundo à beira da guerra com o emprego de armas nucleares que o império ianque, em aliança com a Grã Bretanha e Israel, vem preparando minuciosamente contra o Irã.

Depois do “Veni, vidi, vici” do famoso imperador romano há mais de dois mil anos, traduzido para o “vim, vi e morreu” transmitido à opinião pública através de uma importante rede de televisão logo que se tomou conhecimento da morte de Gaddafi, as palavras são desnecessárias para qualificar a política dos Estados Unidos.

O que importa agora é a necessidade de criar nos povos uma consciência clara do abismo para onde a humanidade está sendo conduzida. Duas vezes nossa Revolução conheceu riscos dramáticos: em outubro de 1962, o mais crítico de todos, em que a humanidade esteve à beira do holocausto nuclear; e em meados de 1987, quando nossas forças enfrentavam as tropas racistas sul-africanas, dotadas com as armas nucleares que os israelenses os ajudaram a criar.

O Xá do Irã também colaborou junto a Israel com o regime racista e fascista sul-africano.
O que é a ONU? – uma organização impulsionada pelos Estados Unidos antes do final da Segunda Guerra Mundial. Essa nação, cujo território estava consideravelmente distante dos cenários de guerra, tinha enriquecido enormemente; acumulou 80% do ouro do mundo e sob a direção de Roosevelt, sincero antifascista, impulsionou o desenvolvimento da arma nuclear que Truman, seu sucessor, oligarca e mediocre, não vacilou em usar contra as cidades indefesas de Hiroshima e Nagasaki no ano de 1945.

O monopólio do ouro mundial em poder dos Estados Unidos e o prestígio de Roosevelt, permitiram o acordo de Bretton Woods que atribuiu aos Estados Unidos o papel de emitir o dólar como única divisa que se utilizou durante anos no comércio mundial, sem outra limitação que seu respaldo em ouro metálico.

Os Estados Unidos, ao finalizar aquela guerra, eram também o único país que possuía a arma nuclear, privilégio que não vacilou em transmitir a seus aliados e membros do Conselho de Segurança: Grã Bretanha e França, as duas mais importantes potências coloniais do mundo naquela época.

À URSS, Truman nem sequer informou uma palavra sobre a arma atômica antes de usá-la. A China, então governada pelo general nacionalista, oligárquico e pró-ianque, Chiang Kai-shek, não podia ser excluída daquele Conselho de Segurança.

A URSS, golpeada duramente pela guerra, a destruição e a perda de mais de 20 milhões de seus filhos pela invasão nazista, consagrou ingentes recursos econômicos, científicos e humanos para equiparar sua capacidade nuclear com a dos Estados Unidos. Quatro anos depois, em 1949, provou sua primeira arma nuclear; a de Hidrogênio, em 1953; e em 1955 seu primeiro megaton. A França dispôs de sua primeira arma nuclear em 1960.

Eram apenas três os países que possuíam a arma nuclear em 1957, quando a ONU, sob a égide ianque, criou a Agência Internacional de Energia Atômica. Alguém imagina que esse instrumento dos Estados Unidos fez algo para advertir o mundo sobre os terríveis riscos a que se exporia a sociedade humana quando Israel, aliado incondicional dos Estados Unidos e da Otan, situado em pleno coração das mais importantes reservas do mundo em petróleo e gás, se constituía em perigosa e agressiva potência nuclear?

Suas forças, em cooperação com as tropas coloniais inglesas e francesas, atacaram Port Said quando Abdel Nasser nacionalizou o Canal de Suez, propiedade da França, o que obrigou o primeiro-ministro soviético a transmitir um ultimato exigindo o cessar daquela agressão, que os aliados europeus dos Estados Unidos não tiveram outra alternativa senão acatar.

(Continuará)

Fidel Castro Ruz é militante do Partido Comunista Cubano.

Tradução: Redação do Vermelho

domingo, 11 de dezembro de 2011

Entrevista com Pedro Casadáliga

http://naoamiseria.blogspot.com/2011/06/entrevista-de-pedro-casadaliga-ao-mcm.html#more



Pedro Casaldáliga concedeu esta entrevista mesmo enfrentando uma luta contra o Parkinson, com muita gentileza e humildade e ao saber que jovens poderiam lê-la, disse "A juventude merece muita atenção".

Sobre Dom Pedro: Dom Pedro Casaldáliga é um bispo católico, catalão.Aos 15 anos ingressou na Congregação Claretiana.Em 1968, foi nomeado bispo prelado de São Félix do Araguaia, MT, no dia 27 de agosto de 1971. Adepto da teologia da libertação foi muito criticado pelos setores tradicionais da Igreja, que consideram essa corrente teológica, baseada no Marxismo, uma traição aos conceitos básicos da fé, da liturgia e do catolicismo. É poeta, autor de várias obras.Durante a ditadura militar, foi alvo de cinco processos de expulsão do Brasil. Em sua defesa, veio o arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, impedindo tal arbitrariedade .


Entrevista:



Escobar: Caro Pedro para começar gostaríamos de lhe perguntar, do seu ponto de vista quais foram os acertos dos governos do PT até aqui, e qual é sua grande dívida com o Povo Brasileiro?



Casaldáliga: Com todas as ambigüidades e corrupções o PT tem facilitado certa presença e atuação do movimento popular, não o tem satanizado, tem exercido uma política exterior bastante correta e tem estimulado a integração latinoamericana, tem promovido políticas sociais de urgência reduzindo a fome e a marginalização.
Daqui, da Amazônia, cobramos sobre tudo do Governo de PT três dívidas urgentes: a causa indígena, a reforma agrária e a substituição dos grandes projetos transnacionais por projetos verdadeiramente populares e sustentáveis ecologicamente.
O PT não deveria fazer alianças que exigem claudicações. O PT, como toda pessoa e toda entidade que se considerem de esquerda, deve contestar ativamente o capitalismo neoliberal. O inimigo é o sistema.

Escobar: A teologia da libertação teve um impacto no nosso país principalmente nas comunidades eclesiais de base, hoje ela encontra-se um pouco distante da juventude, você acredita que ela precisa de uma renovação para se tornar mais acessível aos jovens brasileiros?

Casaldáliga: A renovação sempre é necessária e a Teologia da Libertação tem-se renovado constantemente, sobre tudo, assumindo mais explicitamente as identidades étnico-culturais e outras causas que num primeiro momento não eram destacadas: partiu-se da libertação socioeconômica e vem-se abrangendo cada vez mais a libertação integral, holística, da luta contra a fome à vivência da mística. Sempre a verdadeira renovação será voltar mais e mais a Jesus de Nazaré, a sua causa, que é o Reino.

Escobar: Hoje há um debate na igreja brasileira no que diz respeito ao tema da homossexualidade, tem acontecido divisões em relação ao assunto, qual é seu ponto de vista em relação ao tema?

Casaldáliga: A sexualidade é parte integral da pessoa humana e é, por definição, relação. Se vive dentro de uma cultura, na história das pessoas e dos povos. Como toda vertente humana tem sua dimensão ética. Isso faz com que a sexualidade (heterossexualidade, homossexualidade...) seja debate, polêmica, dependendo dos pontos de vista e das situações histórico-culturais. A homossexualidade tem sido estigmatizada, sobre tudo na Igreja, e facilmente se tem enfrentado como doença e como vício. Exige-se, na Igreja principalmente, uma revisão a fundo da sexualidade e particularmente da homossexualidade, como de uma condição humana que pode e deve responder dignamente á realização da pessoa, com as exigências morais em sociedade e à vivência da fé religiosa.

Escobar: Os movimentos que visam um Evangelho próspero, financeiramente falando, têm crescido significativamente na América Latina. Como você enxerga este acontecimento?

Casaldáliga: É só abrir o Evangelho de Jesus de Nazaré e escutar seu coração e sua palavra. Tudo o que seja dinheiro é suspeito. «Não podeis servir a dois senhores» A evangelização não deve procurar a prosperidade financeira da Igreja mas a partilha fraterna de todas as filhas e filhos de Deus. Não se deve optar pelo lucro, mas pelos pobres. Não é com a riqueza que a Igreja vai dar testemunho de Jesus. O Evangelho pede sobriedade, despojamento, a favor dessa Humanidade jogada à beira da estrada da exclusão. A Eucaristia é a mesa da partilha fraterna e sororal.

Escobar: Qual deve ser a posição da Igreja latino americana na sociedade atual diante globalização, de um neoliberalismo que traz um discurso que materializou a felicidade e que a cada dia deixa mais ao margem os pobres?

Casaldáliga: A posição da nossa Igreja só pode ser de profecia que contesta o materialismo neoliberal e anuncia uma sociedade alternativa, esse Outro Mundo Possível que está sendo consigna de tantas pessoas e entidades em toda a Terra. Denunciar a iniqüidade do mercado total, do consumismo desenfreado, do lucro excluidor das maiorias. Fazer da Fé cristã luz e força para combater esse sistema de iniqüidade que mata de fome milhões de pessoas da grande família de Deus.

Escobar: Como você imagina a construção de uma nova alternativa em relação ao sistema que vivemos hoje?

Casaldáliga: A construção de uma nova sociedade, alternativa à que é imposta hoje ao mundo, é um processo complexo, uma caminhada histórica, não tem uma cartilha pronta em detalhes dentro da plural humanidade. De todo jeito eu só posso imaginar esse processo como socializador: socializar a terra de lavoura e de moradia, socializar a saúde, a educação, a comunicação, as oportunidades para viver ‘o bem viver’ que proclamam os nossos povos primigênios.

Escobar: Você acredita que projetos como Belo Monte realmente visam trazer melhorias para o nosso povo ou há outros interesses por trás?


Casaldáliga: Os projetos como Belo Monte, os chamados ‘grandes projetos’, são projetos do capitalismo neoliberal, do agronegócio depredador, de um progresso que ignora a dignidade e os direitos essenciais das pessoas e dos povos. O único verdadeiramente ‘grande projeto’ é viver em harmonia com a natureza e a serviço da vida digna de todas as pessoas e de todos os povos.

Escobar: Tenho a impressão que no nosso país as pessoas que lutam por justiça ainda são “crucificadas”, como no caso de Maria e José no Pará, ou Dorothy Stang há alguns anos, são casos de pessoas que avisaram o perigo que corriam, mas novamente nada foi feito ao respeito. A quais meios o povo pode recorrer ou está só nesta luta?

Casadáliga: Sempre foi e sempre será um risco a entrega total da própria vida às grandes causas da justiça, da fraternidade, da paz. Nos, os cristãos, sabemos por que Jesus acabou crucificado. Ser profeta é facilmente ser mártir. Aqui, na Prelazia de São Félix do Araguaia, estamos celebrando nos dias 16 e 17 de julho a Romaria dos Mártires de Caminhada; milhares de irmãos e irmãs que foram dando a vida pelas causas do Reino de Deus; que continuam dando a vida, como Dorothy Stang, como o casal José Cláudio e Maria do Espírito Santo.
Felizmente o próprio povo têm o seus profetas e, no meio desse sistema de morte que domina no mundo, há muita indignação, muita vitalidade alternativa, muita solidariedade; o bem está vencendo o mal; a vida e o amor, dons do Deus do Amor e da Vida, têm a palavra. Porque Deus é Amor, nós somos esperança. A Humanidade não está só, Deus é Deus conosco; sobre tudo com os pobres e com os lutadores.
Essa fé, que é esperança, deve ser prática, luta, dia a dia; e deve-se traduzir em outro ‘poder’, ‘outra política’ verdadeiramente popular, sem corrupção, sem disparidades escandalosas, sem impunidade assassina.

Escobar: Caro Pedro gostaríamos de te agradecer a oportunidade de poder entrevista-lo, pois sabemos da luta contra o Parkinson que você enfrenta, e dizer-lhe que foi um prazer ter a oportunidade e que através desta entrevista mais jovens saibam sobre a pessoa humana que você tem sido em relação a defesa do pobre e luta contra a injustiça. Para finalizar poderia nos deixar algumas palavras?

Casaldáliga: Palavras que deixo para vocês e que primeiro devo-me dizer a mim mesmo:

*
A paixão por Jesus Cristo e por sua causa, o Reino.
*
A construção diária de uma convivência verdadeiramente humana, na família, na sociedade, com a natureza, com toda a família de Deus.
*
O compromisso diário com as lutas do povo e na caminhada de uma Igreja sempre mais evangélica, samaritana, ecumênica, que responda ao sonho de Jesus.


Pedro Casaldáliga,
junho de 2011



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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Uma viagem ao belo país de Kim Il Sung e Kim Zong Il (3)

Por Carlos Lopes

Cont.

É comovente como o povo considera Kim Il Sung um dos seus, como um integrante da família – e, portanto, como a própria nação tem para eles um caráter familiar

Não se conhece, ou nós não conhecemos, outra ocupação de um país em que todas as pessoas de um povo tenham sido proibidas de usar o próprio nome, senão a da Coreia pelo Japão. Os coreanos eram obrigados a trocar o seu por um nome japonês. E isso não aconteceu em priscas eras, como se dizia antigamente, mas no século XX.

Não há registro de que os assírios tenham sequer pensado nessa forma de humilhar os povos que oprimiam – e eles eram especialistas em humilhações. Os romanos, muito menos: as línguas neolatinas são uma criação histórica, o francês não surgiu porque forçaram os gauleses a trocarem Asterix por Asterium, e, se conhecemos apenas as versões latinas dos nomes de antigos lusos e bretões, não é porque eles fossem obrigados a trocar seus nomes, mas porque não tinham escrita, ou esta era tão primitiva, que somente chegou a nós o que os romanos consignaram.

É verdade que nos séculos XVIII e XIX - como Napoleão anotou em seu exemplar de "O Príncipe" - os franceses impuseram seu idioma ao, até então, território de língua italiana da Córsega. Mas o próprio Napoleão, ele mesmo um corso, preservou o sobrenome italiano: Bonaparte é uma corruptela de Buonaparte. Além disso, até hoje, quase 250 anos depois, a assimilação francesa da Córsega não deu muito certo.

Na Coreia, a partir de 1910, a população foi obrigada a usar nomes próprios estranhos de uma língua estranha – que está longe de guardar semelhança com a sua. Não há parentesco entre a língua falada coreana e o japonês (ou com as línguas faladas na China) e também não existe semelhança na escrita, porque, desde o ano de 1443, o coreano possui um alfabeto – ao contrário do mandarim, cantonês e japonês, que usam ideogramas.

Se o leitor nos permite outro interlúdio, neste relato que está repleto deles, é muito interessante a fundamentação do rei Sejong, ao instituir o alfabeto, no século XV: a escrita até então utilizada pelos coreanos, os ideogramas chineses, que os japoneses adotaram, dificultava ao homem comum o aprendizado da escrita, tornando-a um privilégio dos aristocratas. A ideia de Sejong era estabelecer uma escrita que pudesse ser aprendida por todos, literalmente por todos, não somente de todas as classes sociais, mas até mesmo de todos os níveis de inteligência: "Um sábio pode aprender a escrever em uma manhã; um estúpido pode aprender em dez dias", considera um documento coreano de 1446, sobre o aprendizado da escrita alfabética.

Ainda que seja difícil – senão impossível – falar de democracia no século XV em qualquer parte do mundo, a escrita alfabética coreana tinha esse fundamento democrático. Por isso, desde então, foi uma das bases mais sólidas da unidade nacional coreana.

O RETRATO

Um tio de Kim Il Sung tornou-se famoso por recusar-se a mudar de nome. Kim Hyong Rok era um homem modesto, um homem do povo, que não pôde ir à escola, pois lhe faltavam sapatos, conhecido por seu temperamento suave. Não era - como o sobrinho lembra em suas memórias - um militante ou ativista organizado. Mas não aceitava trocar o seu próprio nome coreano por um estranho nome japonês.

Por isso, ele era constantemente preso e espancado pelos esbirros japoneses – que sempre fracassavam. "Seu nome não é mais Kim Hyong Rok!", diziam, depois de espancá-lo, os japoneses. "Diga qual é o seu nome agora!". E o tio de Kim Il Sung respondia: "‘meu nome é Kim Hyong Rok’, depois do que os policiais espancavam-no outra vez e repetiam o processo; a cada recusa, os policiais japoneses tornavam-se mais raivosos e mais cruéis no espancamento do meu pobre tio. Porém, meu tio não se entregava" (Kim Il Sung, "No Transcurso do Século", 1.1, "Minha Família").

O tio de Kim Il Sung continuou a recusar a troca de nome até a sua morte, relativamente - e compreensivelmente - ainda jovem. Olhando para trás, não foi uma pequena contribuição à resistência coreana – ele recusava-se a deixar de existir enquanto coreano, porque não era possível, para ele, outra forma de existir. Hoje, seu retrato pode ser visto na parede da casa natal de Kim Il Sung, em Mankyongdae.

O LUGAR

Mankyongdae é local sagrado para os coreanos. Ali nasceu Kim Il Sung, em 1912, dois anos após a anexação da Coreia, como ele relembra no início de suas memórias:

"Minha vida começou nos anos 10, quando a Coreia sofrera a pior das mais trágicas calamidades. Na época em que nasci, a Coreia já estava sob o domínio colonial japonês. Através de um mandado de anexação Japão-Coreia, o país estava sob o tacão do imperador do Japão. Os coreanos tornaram-se escravos do Governador Geral japonês. A Coreia, com sua longa e brilhante história, com seus abundantes recursos naturais e claras vias navegáveis, tinha se tornado o chão duramente pisado pelas botas japonesas e sulcado pelas rodas das carretas de canhões. O povo coreano fervia de raiva e chorava a tristeza da perda de sua condição de nação. Inúmeros patriotas, não podendo suportar o drama que acontecera na Coreia, optaram por terminar suas vidas, em vez de viver sob o jugo japonês. Escolheram a morte honrosa, ao invés da submissão vergonhosa aos muito desprezados japoneses."

Apesar de nascer nesse momento amargo, o sorriso de Kim Il Sung pode hoje ser visto em painéis e cartazes por toda a Coreia Popular. O fundamento de sua obra extraordinária está, certamente, nessa serenidade, nessa ausência de rancor ou ressentimento, embora não de ódio pela opressão, vale dizer, na recusa a ser esmagado por uma situação dificílima, pelo opressor, como outros o foram - o que levou o jovem Kim Sung Ju (depois chamado, sucessivamente, pelos companheiros da resistência guerrilheira, pelo povo coreano, e pelo mundo, Kim Il Sung, ou seja, Kim "o Sol") a liderar e levantar um povo mais do que humilhado, massacrado e ofendido.

Seu relato da mudança de nome é característico de sua personalidade:

"Por volta dessa época [1930], a canção ‘Estrela da Coreia’ tornou-se conhecida amplamente e meus camaradas mudaram meu nome, começando a chamar-me Han Byol, que significava ‘Uma Estrela", apesar dos meus protestos. Foi Pyon Dae U e outros ativistas em Wujiazi, jovens comunistas como Choe Il Chon, que propuseram mudar meu nome para Kim Il Sung. Passei a ser chamado por três nomes, Sung Ju, Han Byol e Il Sung. (…) Como eu era muito apegado ao nome que meu pai me deu, não gostava de ser chamado por outro. Ainda menos tolerava pessoas exaltando-me, comparando-me a uma estrela ou ao sol; não se encaixava em um jovem. Mas os meus camaradas não me ouviam, não importava quão firmemente eu os repreendesse ou argumentasse contra isso. Eles se acostumaram a chamar-me Kim Il Sung, apesar de saberem que eu não gostava. Foi na primavera de 1931, quando passei três semanas na prisão, detido pelos senhores da guerra em Guyushu, que o nome Kim Il Sung apareceu pela primeira vez na imprensa. Mas até essa época, a maioria dos meus conhecidos me chamava pelo nome verdadeiro, Sung Ju" (Kim Il Sung, op. cit., 4.6, "O poeta Kim Hyok e como eu me tornei ‘Kim Il Sung’").

Kim Il Sung formulou a estratégia da revolução nacional coreana no Encontro de Kalun, na Manchúria, a 30 de junho de 1930, para o qual convocou os principais dirigentes da Liga da Juventude Comunista e da Liga da Juventude Anti-imperialista.

Seu informe nesse encontro, "O Caminho da Revolução Coreana", é, também, um primor de síntese e estilo literário. Até o centenário de Kim Il Sung, no próximo ano, em abril, nós publicaremos em português, e na íntegra, esse informe. Aqui, apenas três parágrafos, fora de ordem, para que o leitor avalie, não tanto a estratégia – até porque ela já foi avaliada e aprovada pela História –, mas a têmpera do homem:

"Os imperialistas japoneses, agarrados pela crise econômica mundial, no momento estão tentando achar uma saída pela aceleração dos preparativos de guerra para invadir o Continente Asiático, e, ao mesmo tempo, intensificando outra vez a repressão colonial e a pilhagem da Coreia.

"Tomando as indústrias-chave da Coreia, os imperialistas japoneses estão pondo um freio no desenvolvimento da indústria nacional e estão roubando sem qualquer limite as nossas riquezas naturais, inclusive o ouro, a prata, o carvão e o ferro. Especialmente, esses agressores estão fazendo esforços desesperados para explorar impiedosamente a mão-de-obra barata na Coreia. Como consequência, os trabalhadores coreanos são levados a uma vida desgraçada, com remuneração de escravos, como escravos coloniais.

"A nação coreana defronta-se hoje com uma questão de vida ou morte – se perece para sempre sob o jugo colonial dos imperialistas japoneses ou se levanta numa luta para sobreviver. Se, simplesmente, se lamenta sobre sua terra arruinada e tolera a inaudita tirania japonesa, nossa nação nunca se levantará outra vez. Mas se ela inteira se levanta e luta, desafiando a morte, saudará a alvorada da libertação."

Isso foi escrito – e pronunciado – por um jovem de 20 anos, muito pobre, que para estudar tinha de fazer um esforço titânico, perseguido, na clandestinidade, obrigado a viver em território chinês sob 45º C negativos no inverno, numa situação em que o Partido Comunista da Coreia, devido aos divisionistas, dissolvera-se dois anos antes - e a única possibilidade de construí-lo outra vez dependia agora, exatamente, da Juventude.

Quando o fundador do HP, Cláudio Campos, fez sua primeira viagem à Coreia, e conheceu pessoalmente Kim Il Sung, nós, aqui, publicamos uma de suas frases como manchete: "Mesmo que o céu desabe, encontraremos a saída" - e, realmente, ele sempre a encontrou, em momentos onde outros teriam desistido, ou, pior ainda, capitulado.

Um amigo de Kim Il Sung e da Coreia Popular, o príncipe Norodom Sihanouk, rei do Cambodja ("príncipe", naquele país, é condição de nascimento, e "rei" é um cargo), descreveu em um de seus livros – ele é um escritor razoavelmente prolífico, e, por sinal, bastante bom – a figura do "grande líder" dos coreanos de forma inesquecível. Sihanouk, exilado após a intervenção da CIA no seu país, viveu algum tempo na Coreia. O que mais o impressionou em Kim Il Sung foi o modo simples de tratar as pessoas, em especial os trabalhadores – talvez por ser um príncipe e um rei, Sihanouk tem um olhar agudo para acontecimentos que nos passariam, normalmente, despercebidos: ele nota, por exemplo, como, ao visitar uma fábrica, ao ver que não tinha mais cigarros, Kim Il Sung pediu um ao operário mais próximo, como se fosse um amigo e um igual – e, da mesma forma natural, sem timidez, agiu o trabalhador, estendendo seu maço ao fundador, governante máximo do país e líder de seu povo. Realmente, enquanto fumantes, trabalhadores e, sobretudo, coreanos, eles eram amigos e iguais.

Longe de nós, evidentemente, negar o papel que os grandes homens têm na História. Sobretudo um que faz parte dos poucos homens (nunca são muitos, mas são suficientes) que condensaram a luta dos povos no século XX: no mesmo patamar, lembramo-nos de Lenin, Gandhi, Stalin, Dimitrov, Mao, Ho e Che - talvez tenhamos esquecido algum gigante, ou alguns, mas não muitos.

A CASA

Em Mankyongdae, ainda com as roupas da cerimônia, recém-casados têm o hábito de visitar a casa natal de Kim Il Sung. É como se fossem pedir a bênção, antes de partir para a nova vida conjunta. Vi algo semelhante na URSS, em outubro ou novembro de 1990, quando visitei Gorky (não a cidade, mas o distrito de Moscou onde Lenin passou seus últimos dias, também chamado Gorky Leníinskie), com noivas e noivos chegando, os carros com dois círculos entrelaçados em cima, representando as alianças, para percorrer o museu - e a casa onde viveu por algum tempo o líder soviético (durante o czarismo, a propriedade, esplendorosamente grande e bela, pertencia a um nobre, chefe da polícia de Moscou; Lenin preferiu morar nas dependências que antes eram reservadas aos criados).

Mas o que nós vimos em Mankyongdae, não sei por quê, talvez pela situação da URSS em 1990, comparada à da Coreia Popular de hoje, parece mais profundo – além disso, os vestidos das noivas são muito mais bonitos. Diante deles, o invariável branco ocidental torna-se muito monótono. São roupas tradicionais coreanas, mas especialmente, e detalhadamente, ataviadas. E nem vou falar da beleza das moças – vou deixar isso, se ela quiser fazê-lo, para a minha mulher...

No Brasil, de uma forma ou de outra, há muita gente que pede a bênção aos pais, antes, durante ou logo depois de casar – é isso, como sabemos, o que representa, por exemplo, a entrada da noiva na igreja acompanhada pelo pai. No casamento católico, a própria presença de um sacerdote denominado "padre", que não tem experiência de casamento mas nem por isso deixa de proferir conselhos a rodo, tem, mais ou menos, o mesmo sentido.

Visitar Mankyongdae após a solenidade de casamento, portanto, parece ser uma forma de obter as bênçãos do pai da nação, assim como muita gente aqui pede a bênção dos pais. Provavelmente, os coreanos (e, sobretudo, as coreanas) que se casam devem fazer as duas coisas. Porém, é comovente como o povo considera Kim Il Sung um dos seus, como um integrante da família – e, portanto, como a própria nação tem para eles um caráter familiar.

A casa, em si, não é impressionante – ou, para ser preciso, o que nos impressiona é que a maior figura da História do país tenha vindo ao mundo em lar tão humilde.

Porque a casa natal de Kim Il Sung é muito modesta, poder-se-ia dizer, uma casa de camponeses – e dos mais pobres -, o que é, rigorosamente, a verdade. Tem-se, às vezes, a mesma sensação que tomou um dos nossos maiores escritores, Graciliano Ramos, ao visitar, em Gori, na Geórgia, a casa natal de Stalin:

"... é apenas uma casa miúda, de tijolos nus, sem reboco. (…) Mas queríamos vê-la na pequenez e na humildade, enquanto alinhávamos à pressa retalhos da sua história. (…) abeiramo-nos da casinha, subimos alguns degraus. São dois quartos apenas e nessas miudezas alojaram-se duas famílias. (…) A cama do casal, a mesa, quatro tamboretes, uma cômoda, uma arca enchiam quase a miserável toca. Havia, além disso, um candeeiro, uma bilha, um espelho, o samovar infalível e um bule. Dois armários embutiam-se nas paredes. Uma pergunta me ocorreu. Onde estava a cama do menino? Talvez houvesse levado sumiço entre 1879 e 1935. O mais certo era não ter existido nunca: seria realmente difícil arrumá-la no espaço atravancado em demasia. Com certeza a criança dormia com os pais. (…) Doze metros quadrados. E neles um garoto viveu os primeiros anos. Isto marca uma pessoa para a vida inteira. Impressões posteriores somem-se, a escola some-se; as probabilidades de existência tranquila desfalecem. Resta a miséria inicial, precisamos livrar-nos dela. Insuportável. Se conseguirmos afastá-la da vida, talvez ela desapareça da nossa lembrança. Urgente acabar com isso. Indispensável que os homens não comecem a viver num meio como este." (Graciliano Ramos, "Viagem", 16ª edição, Record, págs. 149/153).

Embora a análise seja válida também para Kim Il Sung (como ele diz em suas memórias: "Apesar de nosso extenuante trabalho, mal tínhamos o bastante para comer; havia dias em que não podíamos dispor senão de uma magra e famélica tigela de arroz"), por algum motivo a impressão causada por sua casa natal é mais alegre do que a deixada em Graciliano pela casa de Stalin. Pensei que a diferença poderia estar na situação da Coreia de então, na clareza de uma situação em que havia um inimigo externo ocupando o país, mas lembrei que a Geórgia, no século XIX, também estava ocupada - pela Rússia czarista. Portanto, não sei o por quê da diferença. Talvez seja apenas uma diferença de temperamento entre nós e o velho Graciliano.

A MÁQUINA

Kim Ung Woo, bisavô de Kim Il Sung, conseguiu a pequena casa porque empregou-se para cuidar do cemitério de uma família rica. O cemitério não mais existe. Mas a casinha lá está até hoje. Nela, em 1945, ao voltar à cidade após a expulsão dos japoneses, Kim Il Sung passou sua primeira noite em Pyongyang. Poderia ter escolhido um palácio deixado pelos antigos imperadores ou pelos japoneses – mas preferiu dormir na casa pobre onde nascera.

Percorrendo Mankyongdae, deparamo-nos, num dos pouquíssimos cômodos da casa, com um grande instrumento manual. Perguntei para que servia. Ali, naquela máquina doméstica de madeira, nosso tradutor esclareceu, a avó de Kim Il Sung fazia "espaguete" (acostumado com o uso europeu, nosso tradutor usou essa palavra para o que, no Brasil, chamaríamos genericamente de "macarrão" - o que é compreensível, pois o italiano "maccheroni" designa um prato específico).

Kim Hyong Jik, pai de Kim Il Sung, foi um dos líderes da resistência ao invasor. Professor e depois médico tradicional coreano, era um dos patriotas mais avançados do seu país. Como seu filho contaria depois:

"Não foi antes do outono desse ano [1919 – ano do Movimento de 1º de Março contra a ocupação japonesa, em que 2 milhões de coreanos foram às ruas; na repressão imediata, os japoneses assassinaram 7.509 pessoas, feriram 15.849 e prenderam 46.303 coreanos] que meu pai voltou para casa. Esteve fora por um ano. Durante sua ausência, meu pai esteve ocupado com a reconstrução da Associação do Povo Coreano; ele viajou para Yiju, Chang-sung, Byukdong, Chosan, Junggang e outras cidades na província de Pyongahn do Norte e Manchúria. (…) Meu pai falou sobre os acontecimentos na Manchúria e na Rússia. Estava muito entusiasmado com Lenin e a Revolução de Outubro. Disse que, na Rússia, quem mandava eram os operários, camponeses e outros trabalhadores; ele invejava isso. Estava com raiva dos reacionários ‘brancos’ e das 14 nações que enviaram tropas para intervir na Rússia e derrubar o novo governo" (Kim Il Sung, op. cit., 1.3, "Longa vida à Coreia!").

Como Lenin em relação a Alexander, seu irmão, Kim Il Sung seguiria – aliás, desbravaria - um caminho diferente de An Jung Gun e dos patriotas da geração anterior. Mas seu pai já estava bem encaminhado. Infelizmente, faleceu aos 32 anos, uma vida atribulada, difícil - da tortura nas prisões japonesas até o precário exílio na Manchúria -, mas bem sucedida. Basta a lembrança do filho: "Bem cedo, meu pai despertou em mim o amor pela Coreia".

Continua na próxima edição

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Uma viagem ao belo país de Kim Il Sung e Kim Zong Il (2)

Por Carlos Lopes

Cont.

A Fábrica Têxtil de Pyongyang é, também, um dos símbolos da resistência coreana à agressão norte-americana. Construída logo após a libertação do país da ocupação japonesa, por iniciativa de Kim Il Sung, o fundador da Coreia moderna - a quem os coreanos chamam "o grande líder" -, ela foi destruída duas vezes por bombardeios aéreos dos EUA


Na Fábrica Têxtil de Pyongyang trabalham nove mil mulheres. Pela manhã, chegavam trabalhadoras com seus filhos agasalhados, levados, confortavelmente, ao modo oriental – hoje, também aqui, popular: nas costas.

As mulheres levam os filhos pequenos para a fábrica porque eles ficam numa imensa creche, enquanto as mães trabalham. Há intervalos, na jornada, para que as mães, se quiserem - e sempre querem - vejam seus filhos, inclusive, se for o caso, os amamentem.

Curiosamente – para brasileiros que conhecem algumas poucas instituições públicas que existem em nosso país – as atendentes da creche também são mães. Há um motivo óbvio para isso: as mães percebem melhor do que qualquer um as necessidades dos bebês. Um dos poucos psicanalistas que, após Freud, tratou a psicanálise como ciência - inclusive ciência experimental -, o austríaco René Spitz, deteve-se, em um livro fascinante, "O Primeiro Ano de Vida", na relação específica entre mãe e filho (ou filha) nos estágios mais precoces do desenvolvimento. Chamou, a essa relação, "díade", um termo retirado da música, onde significa um acorde formado por duas notas musicais. Sem entrar numa discussão conceitual – aqui não é o lugar – o que ele observa é a comunicação entre a mãe (ou quem faz a função de mãe) e o bebê, o entendimento, sem linguagem verbal, que existe entre os dois, e que, nessa fase da vida da criança, só existe nessa relação. Em suma, o apoio afetivo da mãe, em especial nos primeiros seis meses, é decisivo para o conjunto da vida, inclusive para a próxima relação com o pai.

Não sei se os coreanos conhecem a obra de Spitz. Mas, se não a conhecem, de alguma forma chegaram a conclusões semelhantes: nada melhor do que mães para atenderem crianças numa creche. Pode parecer que isso é óbvio. Infelizmente, não é. Tanto assim que a motivação inicial do trabalho de Spitz foi - após a sua emigração da Europa, refugiado do nazismo – a constatação de casos de depressão por privação afetiva em bebês que estavam em creches e hospitais dos EUA (chamada, por ele, "depressão anaclítica", isto é, depressão por falta de apoio emocional).

A GUERRA

A Fábrica Têxtil de Pyongyang é, também, um dos símbolos da resistência coreana à agressão norte-americana. Construída logo após a libertação do país da ocupação japonesa, por iniciativa de Kim Il Sung, o fundador da Coreia moderna - a quem os coreanos chamam "o grande líder" -, ela foi destruída duas vezes por bombardeios aéreos dos EUA.

Nunca foi um alvo militar – a fábrica, como as daqui, produz tecidos para as roupas da população civil – e os mandantes dos bombardeios sabiam disso. Mas, como hoje é, infelizmente, notório, o alvo das agressões do establishment dos EUA está, principalmente, na população civil, o que inclui a infraestrutura econômica do país agredido. Até elaboraram uma teoria sobre o assunto, a sinistra "guerra total", segundo eles, baseada no que fizeram os generais Sherman e Grant na Guerra de Secessão.

Entretanto, Grant e Sherman estavam combatendo os escravagistas do sul dos EUA, sob a liderança do grande presidente Lincoln. O que a casta financeira norte-americana fez após a guerra hispano-americana, e, sobretudo, depois da II Guerra Mundial – nas Filipinas, na Coreia, no Vietnã, no Iraque, na Líbia - tem mais a ver com Hitler e Goering do que com os generais da guerra civil americana. Em 1933, bem antes da agressão à Coreia, e quando Hitler apenas acabava de tomar o poder, o general Smedley Butler, organizador do atual corpo de fuzileiros navais dos EUA (os, tristemente famosos, "marines"), já havia dito:

"Eu ajudei a fazer o México, especialmente Tampico, seguro para os interesses das empresas de petróleo americanas, em 1914. Eu ajudei a fazer do Haiti e de Cuba lugares decentes para que os rapazes do National City Bank arrecadassem rendimentos. Eu ajudei a estuprar meia dúzia de repúblicas da América Central em prol dos lucros de Wall Street. O registro de extorsões é grande. Eu ajudei a purificar a Nicarágua para a casa bancária internacional dos Brown Brothers (onde eu tinha ouvido esse nome antes?) em 1909-1912. Eu trouxe a luz, na República Dominicana, para os interesses dos usineiros americanos, em 1916. Na China, eu ajudei a Standard Oil a seguir o seu caminho sem ser molestada. Durante aqueles anos, eu participei de uma expansão da extorsão. Olhando para trás, sinto que poderia ter dado a Al Capone umas poucas sugestões. O melhor que ele pôde fazer foi operar suas extorsões em três distritos. Eu operei em três continentes." (ver HP, 12/01/2007 e o livro de Butler, "War Is a Racket", Round Table Press, NY, 1935).

Entretanto, é forçoso reconhecer que nada se compara às agressões norte-americanas após a II Guerra. Os píncaros do crime foram atingidos na agressão à Coreia e nas que seguiram. Só o nazismo e o imperialismo japonês são medida de comparação para o que os EUA fizeram – e continuam fazendo – depois da II Guerra. Aliás, Hitler é mais uma medida de inspiração do que de comparação. Como disse Howard Hunt, chefe de operações da CIA na Guatemala na intervenção que depôs, em 1954, o presidente Jacobo Árbenz: "o que nós queríamos fazer era uma campanha de terror, para aterrorizar Árbenz particularmente, aterrorizar suas tropas, tal como os bombardeiros Stukas alemães aterrorizaram a população da Holanda, Bélgica e Polônia no início da II Guerra" (ver HP, 12/09/2003 - Howard Hunt, entrevista ao National Security Archive).

Se na Guatemala foi assim, o leitor pode, ainda que palidamente, imaginar como foi na Coreia.

LINHA E AGULHA

Os coreanos, naturalmente, reconstruíram a Fábrica Têxtil de Pyongyang duas vezes durante a guerra. Lembrei de um ditado, repetido pelo detetive de ficção Charlie Chan, personagem de seis livros – e não sei quantos filmes e histórias em quadrinhos – do escritor (por sinal, americano) Earl Derr Biggers: "se caíres sete vezes, levanta-te oito".

Porém, depois de vencida a agressão dos EUA, havia um problema na Fábrica Têxtil de Pyongyang: para trabalhar nela, as mulheres ficavam afastadas dos maridos – ou noivos ou namorados - que estavam em outras unidades fabris, ou, frequentemente, no campo. Assim, além de outras necessidades que o leitor pode deduzir, os pais não participavam do cuidado aos filhos.

A solução foi construir, em torno da Fábrica Têxtil de Pyongyang, uma série de outras fábricas – em geral, produtoras de máquinas e equipamentos – e transferir os maridos para elas. Assim, eles poderiam (e podem) ficar perto de suas mulheres, ajudando-as, nos intervalos do trabalho, quanto aos filhos.

As coreanas (e coreanos) também têm um ditado para o que consideram a relação ideal entre maridos e mulheres. Foi uma mulher, na Fábrica Têxtil de Pyongyang, que, após relatar a decisão, tomada por Kim Il Sung, de trazer os maridos para perto das mulheres, nos repetiu, sorrindo, esse ditado: "a mulher deve seguir o marido, assim como a linha segue a agulha".

Olhei, com o canto dos olhos, para minha mulher, só para perceber a reação. Mas Sandra, que não é nada submissa (quase escrevo: "ai de mim...", mas seria muito injusto), entendera imediatamente o significado da frase.

Então, antes que alguma leitora, ciosa de sua independência, nos escreva, furiosa, esclarecemos: que ninguém pense que isso significa a submissão da mulher ao marido. Como vimos pela história da Fábrica Têxtil de Pyongyang, nesse caso quem seguiu a linha foi a agulha... Nem por isso os maridos se tornaram submissos às mulheres.

O ditado, para os coreanos de hoje, significa apenas (mas esse "apenas" é um mundo a ser conquistado) que mulheres e maridos devem ficar juntos, cuidar dos filhos juntos - de preferência, trabalharem juntos ou o mais próximo possível. O que quer dizer conscientemente juntos, pois as mulheres não são obrigadas a casarem, ou a permanecer casadas, com quem não querem.

Portanto, leitora, se você entendeu errado, o que é compreensível, pode deixar a indignação e a fúria de lado – nem tudo que parece às nossas mentes, algo viciadas pela ainda presente submissão da mulher em nosso país, é o que superficialmente parece (e a repetição do "parece", nesta frase, não é um cochilo de estilo do redator).

Um novo conteúdo às vezes se expressa por formas antigas – mas nem por isso ele deixa de ser novo.

Até porque, após seu retorno a Pyongyang - em 1945, quando a Coreia se libertou do Japão - a primeira lei assinada por Kim Il Sung foi a "Lei da Igualdade entre Homens e Mulheres", antes mesmo da lei de reforma agrária.

Para os brasileiros, que assistem aos avanços da condição feminina desde 1934, quando o presidente Getúlio regulamentou o direito de voto das mulheres, é difícil aquilatar o significado revolucionário da primeira lei de Kim Il Sung (se bem que, no Brasil, o ambiente antes de 1930 era tão atrasado que nosso maior poeta do século XX, Carlos Drummond de Andrade, escreveu, em 1928, ironizando o escândalo, quando uma mulher conseguiu uma decisão judicial para votar e ser votada: "Mulher votando?/ Mulher, quem sabe, Chefe da Nação?/ O escândalo abafa a Mantiqueira,/ faz tremerem os trilhos da Central/ e acende no Bairro dos Funcionários,/ melhor: na cidade inteira funcionária,/ a suspeita de que Minas endoidece,/ já endoideceu: o mundo acaba").

Na Coreia, como lembra Kim Il Sung em suas memórias ("No Transcurso do Século"), a situação da mulher era feudal. A vida para elas era tão difícil, tão árdua, diz ele, que algumas aderiam a religiões ocidentais apenas para evadir-se um pouco da vida cotidiana durante o culto.

Isso, no melhor dos casos: aqueles em que não eram tornadas escravas sexuais pelo ocupantes japoneses – em 35 anos, da anexação pelo Japão à libertação, 200 mil coreanas foram forçadas a essa condição, um crime que o Estado japonês ainda resiste a reconhecer plenamente, apesar de, além dos depoimentos de milhares de vítimas, além da condenação pelos tribunais do pós-guerra, montanhas de documentos terem sido descobertos por historiadores do próprio Japão, demonstrando que isso era uma política oficial.

ANEXAÇÃO

Existem poucas ocupações mais infames – se é que existe alguma – do que a da Coreia pelo Japão, iniciada em 1894 e acelerada em 1905, após o aval explícito dos EUA, através do acordo secreto Taft-Katsura (em troca do reconhecimento à anexação das Filipinas, o secretário da Guerra dos EUA, depois presidente, William Howard Taft, comprometeu-se com o primeiro-ministro japonês, Katsura Taro, a reconhecer a suserania do Japão sobre a Coreia – as notas da conversação vieram a público 19 anos depois, em 1924, quando a Coreia já fora anexada pelo Japão).

É impossível compreender razoavelmente a Coreia, e o povo coreano, sem conhecer um pouco da sua História. Por isso, aqui nos estenderemos (não muito) sobre esse tema.

Em 1905, o imperador coreano e seu primeiro-ministro recusaram-se a aceitar a condição de vassalagem da Coreia em relação ao Japão. A aceitação, totalmente ilegal, foi assinada - com o primeiro-ministro preso pelos japoneses - por cinco ministros sem autoridade para tal, conhecidos na História da Coreia como "os cinco ministros traidores".

O imperador, recusando-se a ratificar, apelou para a China e para os chefes de Estado ocidentais, e, depois, para a Conferência de Haia, em 1907 – mas a Coreia foi proibida de participar em Haia e o imperador foi deposto pelos japoneses, o que levantou vários setores nacionalistas contra a ocupação. No exterior, os três emissários coreanos, impedidos de entrar na Conferência, fizeram o possível para denunciar a situação do país.

O imperialismo japonês derrotara a China, então sob a decadente dinastia manchu, em 1895, e a Rússia, sob a decadente dinastia czarista, em 1904-1907. As potências ocidentais tornaram-se cúmplices na destruição do Estado da Coreia. Os coreanos aprendiam, dolorosamente, que sua liberdade dependia, antes de tudo, de suas próprias forças – ou não haveria liberdade.

Não foi a primeira lição, nem foi só isso (!) o que eles aprenderam: a entrada das tropas japonesas na Coreia, em 1894, teve como pretexto o apelo dos feudais coreanos, derrotados no início daquele ano pelo exército guerrilheiro da revolução camponesa "Donghak", aos manchus da China para que esmagassem a revolta.

Donghak era uma religião coreana da segunda metade do século XIX que pregava "a igualdade de todos os seres humanos". O programa de sua revolução assemelha-se, em aspectos fundamentais, mais no conteúdo do que na forma, ao Plano de Ayala, escrito por Zapata para a revolução mexicana.

O Japão aproveitou-se da presença de tropas manchus na Coreia para romper a Convenção de Tientsin, estabelecida com a China em 1885, que proibia a intervenção militar, tanto japonesa quanto chinesa, na Península, exceto se a outra parte fosse notificada antecipadamente (o que a dinastia manchu fez, mas o Império do Japão passou por cima desse detalhe).

Depois da declaração de guerra do Japão à China, o bem armado exército japonês massacrou os camponeses coreanos, que só dispunham de lanças, espadas, arcos-e-flechas e alguns velhos bacamartes.

Daí por diante, há uma coleção inumerável de desmandos, ultrajes e crimes dos imperialistas japoneses na Coreia. No ano seguinte, 1895, a imperatriz coreana, Myeongseong, adversária da ingerência japonesa, foi assassinada a mando do embaixador do Japão – os assassinos, que invadiram o palácio e chacinaram os guardas, eram agentes japoneses.

Evidentemente, o embaixador - um visconde e general nipônico - não cometera o crime sem o sinal verde, ou a ordem, de Tóquio. O escândalo internacional, mesmo naquela época, foi tão grande que o governo japonês resolveu encenar uma farsa: um julgamento do seu embaixador na Coreia, em que este confessou a ideia e a organização do assassinato, mas argumentou que não se tratava de um crime, pois seu objetivo era a "supremacia" do Japão na Coreia. O réu foi absolvido "por insuficiência de provas".

No entanto, a política de Myeongseong – e de seu marido, o imperador Gojong – era colocar-se sob o abrigo da Rússia czarista para se opor ao Japão. Certamente, depender de outros para ser independente é a maneira mais segura de não ser independente. Gojong asilou-se na embaixada russa depois do assassinato da esposa, só voltando ao palácio em 1897, sob proteção de tropas czaristas. Depois da derrota russa na guerra com o Japão – logo no início, 1904, após o desembarque do exército japonês, as tropas czaristas foram expulsas da Coreia - essa política tornou-se insustentável. Em seguida, o Japão impôs sua suserania sobre a Coreia.

No entanto, a resistência coreana não cessou. Além dos levantamentos contra a ocupação, em 1909, o "Residente-Geral da Coreia" (uma espécie de vice-rei japonês) foi executado pelo patriota coreano An Jung Gun, homem notavelmente culto e consciente.

Prisioneiro dos japoneses, An Jung Gun fez estremecer os algozes ao defender o seu ato no tribunal-farsa a que foi submetido – o que talvez explique porque ele foi "julgado" nada menos do que seis vezes. An Jung Gun exigiu que fosse tratado como prisioneiro de guerra e comandante do exército de resistência coreano, e listou os crimes do "Residente-Geral" (um dos principais políticos da casta feudal-monopolista japonesa, quatro vezes primeiro-ministro, inclusive na época do assassinato de Myeongseong), entre eles: o assassinato da imperatriz coreana; a deposição do imperador coreano; o massacre de civis coreanos; a pilhagem de ferrovias, jazidas, florestas e rios coreanos; a imposição ao país da moeda japonesa; o impedimento da educação aos coreanos, com o confisco e queima dos seus livros didáticos.

Pouco antes de seu martírio na forca, An Jung Gun disse uma frase que repercutiria por toda a História coreana posterior: "Eu tenho a felicidade de oferecer a minha vida por meu país, assim é o comportamento de um patriota com espírito nobre". Mas, talvez, nada seja mais significativo do ambiente que a ocupação japonesa provocou na Coreia, e do caráter do povo desse país já naquela época, do que a mensagem da mãe de An Jung Gun, recebida pelo filho momentos antes de passar à eternidade: "Sua morte é por amor ao nosso país, e eu não peço covardemente por sua vida. Sua valente morte lutando pela justiça é para mim o último carinho de um filho por sua mãe".

An Jung Gun era católico – e, como nós chamamos, católico praticante. Apesar disso, por submissão aos japoneses, o então bispo da Coreia proibiu que se lhe administrasse a extrema-unção. Mas os sacerdotes menos graduados recusaram-se a obedecer – e An Jung Gun recebeu o sacramento.

Assim, em 1910, foi debaixo de ferro, fogo, e sangue aos borbotões, que o Japão anexou a Coreia – o imperador Gojong, deposto desde 1907, foi mantido em prisão domiciliar até sua morte, em 1919, por envenenamento. Seu funeral provocou outros levantamentos, em toda a Coreia, contra a opressão japonesa.

Continua na próxima edição

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domingo, 4 de dezembro de 2011

Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos,

Senhoras e Senhores

PRESIDENTES DA REPÚBLICA E PRIMEIROS MINISTROS

Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos CELAC

Caracas.

Prezadas Senhoras e Senhores:

A transcendental reunião que vocês celebram, com o propósito de dar formal nascimento à Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos, se constitui em um importante acontecimento.

As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia Exército do Povo, FARC-EP, os saudamos, expressando nosso desejo de que essa iniciativa se converta no ponto de partida de um esforço que encaminhe as nações latinoamericanas e carebienhas pelo caminho da unidade levando em conta os aspectos fundamentais da concepção bolivariana.

Graves contingências ameaçam hoje em dia não só o futuro de nosso sofrido Continente, mas de todo o planeta e, da espécie humana, em seu conjunto. A Terra nos reclama ações urgentes para frear o desastre ambiental, sopram ventos de guerra nuclear, a economia mundial está se estagnando e velhos interesses, em seu exclusivo benefício, impõem aos povos a carga de salvar-la.

Eis aqui o significativo sentido da unidade latinoamericana e caribenha, empreender o caminho rumo ao novo mundo que nos vetaram sempre o Velho Continente e o Império norteamericano.

Aproveitamos a oportunidade para expressar nossa profunda preocupação pela paz na Colômbia, que é a paz do Continente.

O rasgo característico de sua persistente classe dirigente tem sido uma estranha e atávica inclinação a solucionar os conflitos econômicos e sociais pela via das imposições violentas. Nenhuma das prolongadas e cruéis ditaduras que em um passado açoitaram distintas nações neste Continente, conta no se haver com o aterrador número de vítimas de todo ordem, produzidas pelo regime colombiano tão só nas últimas décadas.

Isso explica as dimensões do atual conflito armado interno, cuja conclusão parece se prorrogar indefinidamente no tempo. A paz nunca será fruto de rendições humilhantes que contribuam a aferrar ainda mais no poder os responsáveis desta tragédia nacional, jamais cambiaremos os alçados o algo que permita que todo continue igual.

Um diálogo com plenas garantias, de cara ao país, ao Continente e ao mundo, com participação popular, que modele uma recomposição institucional e política e, que abra as comportas às profundas reformas democráticas, é a fórmula que repetidamente temos proposto as FARC e que aspiramos se faça realidade muito cedo.

Recentes acontecimentos, contrários às guinadas entre bastidores, revelam a nula inclinação do Estabelecimento a considerar nossa postura. No seu lugar, insistem em sua pérfida acusação de narcotraficantes e terroristas, pretexto que lhes garanta o incondicional apoio dos Estados Unidos, revertido ademais em uma crescente ingerência militar e política, muito conveniente aos interesses estratégicos de dominação continental e mundial dessa potência.

Em palavras do presidente Santos se não nos rendemos, nos espera o cárcere ou a tumba. Sua oferta de recompensas em milhões de dólares pela cabeça dos comandantes guerrilheiros, relembra os usos das Coroas européias contra os indígenas e escravos negros rebeldes.

Não cremos ousado pensar que nesses novos tempos que nascem na América Latina e O Caribe, seus povos celebrariam como uma grande vitória a conquista de uma solução política na Colômbia.

Nosso abraço patriótico e bolivariano para esse verdadeiro Novo Mundo que grita basta e se propõe andar sem que já ninguém possa deter sua marcha de gigante.

Secretariado del Estado Maior Central de las FARC-EP

Montanhas da Colômbia 01 de dezembro de 2011

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Uma viagem ao belo país de Kim Il Sung e Kim Zong Il (1)

Por Carlos Lopes

(1)

A Coreia Popular no outono é uma palheta de cores, com a vegetação das grandes montanhas preparando-se aos poucos para o inverno. Estas são impressões não apenas da natureza, mas, antes de tudo, de seres humanos - de um povo extraordinário que libertou-se da opressão, venceu uma selvagem agressão e constrói o seu futuro


Nas margens do rio Taedong - essa é a transliteração oficial em português, mas, para nossos ouvidos, a pronúncia em coreano mais se parece com "Dedong" - que atravessa Pyongyang e boa parte do norte da Península da Coreia, viajantes franceses, suecos, alemães, dinamarqueses, espanhóis (havia até um simpático príncipe da casa real de Espanha), italianos, noruegueses, ingleses, e... americanos, sem falar nos chineses e outros cidadãos asiáticos, inclusive japoneses, admiravam os belos monumentos erguidos, detalhada e minuciosamente, pelo povo coreano.

Alguns deles portavam "piercings" e cortes de cabelo pouco ortodoxos, mas eram tratados, sempre, com a mesma gentileza pelos coreanos.

Estávamos no país que a propaganda do establishment americano – repetida até a náusea pela mídia antinacional daqui – chama de país "fechado", "um dos mais fechados", ou, mesmo, "o mais fechado" (ou "isolado") do mundo.

Essa propaganda tem sua lógica própria - a lógica do lobo, um lobo especialmente sanguinário: bloqueiam um país, agridem-no de milhares de formas, tentam trucidá-lo (inclusive através de um genocídio - os EUA admitem que, entre 1950 e 1953, mataram 1 milhão e 500 mil coreanos ao norte do paralelo 38, o que significa, como na cínica frase de Lloyd George, primeiro-ministro inglês durante a I Guerra Mundial, que podemos, pelo menos, duplicar esse número), sabotam-no, boicotam-no, ocupam metade do seu território, passam por cima das eleições e dos acordos internacionais, instalam ogivas contra a parte livre.

Depois disso tudo, segundo a propaganda imperialista, o problema não está no agressor - mas no país agredido, que é "fechado" ou "isolado".

Nós, aqui no Brasil, já experimentamos, em algum grau, o que eles chamam de "abertura". Eles gostariam que a Coreia Popular estivesse "aberta" para suas agressões, isto é, que o povo coreano se submetesse a eles. Para isso, realmente, a Coreia Popular está fechada – mas não para os povos do mundo, incluindo o povo norte-americano. Foi o que pensei, enquanto observava os viajantes, não apenas em Pyongyang, mas em Panmunjon e várias outras localidades coreanas. Numa cooperativa agrícola, vi a mensagem, entusiasmada, deixada pelo príncipe espanhol.

A Coreia Popular, realmente, sabe se defender. Na agressão de 1950-1953, apesar da invasão e do bombardeio bárbaro, algo que nem os nazistas fizeram, as hordas norte-americanas, derrotadas, tiveram que recuar, deixando atrás de si 20 km em relação à linha de demarcação anterior. Por esta razão, o limite com a parte ocupada, a Coreia do Sul, localiza-se hoje além do famoso paralelo 38.

Se a Coreia não é ainda o país mais aberto no mundo (será que algum país precisa ser?), isso se deve, exclusivamente, às dificuldades impostas pelo imperialismo dos EUA, e seus satélites. Mas elas não são capazes de impedir o crescente afluxo de cidadãos de todas as partes do mundo.

Realmente, leitor, vale a pena.

A NOITE

Durante vários dias, eu e minha mulher, Sandra, percorremos aquele belo país. Lá pelas tantas, lembrei-me da entrevista de uma repórter, norte-americana de pais chineses (irmã de outra, presa por espionagem ao entrar ilegalmente na Coreia, e generosamente deportada para os EUA, após as desculpas de Clinton), no intragável programa da senhorita Oprah Winfrey - um exemplo escandaloso de como o establishment usa as etnias e parcelas da população que oprime, sobretudo os negros e as mulheres.

Dizia a repórter que os viajantes só se movem na Coreia Popular acompanhados e vigiados por um "guia", que mostra apenas o que o governo coreano quer que seja mostrado - ao que a insopitável Oprah acrescentou um "oooh...!", à guisa de comentário.

Com todos os obstáculos do idioma (minimizados, é verdade, pela educação e cultura dos coreanos – muitos conhecem as línguas ocidentais), eu e Sandra, quando nos deu na telha, andamos sozinhos por Pyongyang e outras localidades, sem que ninguém nos aporrinhasse, como se estivéssemos em São Paulo, Rio ou Fortaleza, com a diferença de que os passeios, inclusive noturnos, foram muito mais seguros. Na Coreia Popular, os assaltos não existem - e não é por falta de armas nas mãos da população.

Alguns podem achar que estamos descrevendo uma utopia – mas, não, leitores, é apenas a verdade, e isso não quer dizer que o país não enfrente dificuldades. Enfrenta, sim, e está fazendo o que pode para vencê-las. Mas a desumanização brutal que ainda impera em nossa sociedade – e, mais ainda, em outras ainda dominadas pelo imperialismo – não existe. Lá, o homem, ao contrário da frase do romano Plauto ("homo homini lupus"), tão citada por Hobbes e todos os reacionários que vieram depois, não é o lobo do homem – esse papel está, muito justamente, reservado para a casta financeira dominante nos EUA, que não é composta exatamente pelo que se entende por seres humanos, como mais uma vez se comprovou na Líbia.

IMPRESSÕES

Tive dúvidas de por onde seria melhor começar este relato. As pessoas escrevem para serem lidas, até mesmo os mais obtusos literatos que vivem pregando a "arte pela arte". Como dar ao leitor uma visão, a mais realista possível, de uma viagem? Depende da viagem. Por pouco não adotei Graciliano Ramos, e o extraordinário livro sobre sua visita aos países socialistas ("Viagem"), como modelo. Mas isso não seria bom, nem justo – os tempos são outros, os países e as experiências, também, e eu não sou Graciliano.

Talvez seja melhor iniciar pelo mais singelo – mas nem por isso menos significativo: pelo fim, pois o leitor não estava lá para descobrir a Coreia, como os viajantes fizeram, a cada passo.

Na véspera de nossa volta, uma jornalista da "Voz da Coreia", o maior jornal do país, sabendo que sou diretor de redação da Hora do Povo, perguntou-me sobre o que mais me impressionara nos dias que lá passamos.

Respondi: "o olhar das crianças".

Ela, muito jovem - portanto, sem conhecer pessoalmente as agruras da ocupação japonesa ou da agressão norte-americana -, não entendeu.

No entanto, o diplomata que nos servia de tradutor, com longos anos na África, Portugal, Espanha, e uma rápida estada no Brasil (conhecia a música popular brasileira, em amplitude, mais do que eu, e quase tanto quanto Sandra), entendeu na hora, assentindo. Mas deixou que a jornalista continuasse, sem fazer comentários.

"Mas o que você viu no olhar das nossas crianças?"

Expliquei que as crianças sob fome, ou ameaça de fome, na miséria, ou sob agressão – citei algumas fotos da guerra do Vietnã que nós, aqui, já publicamos – têm um olhar de medo e insegurança. Um olhar de dor. Elas, em maior ou menor grau, temem o futuro, que às vezes é apenas o dia seguinte, às vezes apenas a hora do almoço.

Na Coreia Popular, eu vira crianças com olhar confiante, como se o futuro fosse delas, aquele olhar seguro, só possível quando as necessidades, pelo menos as mais elementares, estão atendidas, e a sociedade oferece a elas a perspectiva, sem lugar para dúvidas, de se desenvolver como seres humanos – o que é o modo humano de existir.

Não me refiro apenas às necessidades materiais, mas também às necessidades (vale dizer: "carências") psicológicas que só uma saudável vida coletiva, o que inclui a vida familiar, é capaz de atender.

Presenciamos, várias vezes, o cuidado dos coreanos com suas crianças. No país, já sabíamos, essa não é uma missão circunscrita aos pais. Mas não tínhamos visto ainda como isso é profundo nos coreanos.

Um dia, o motorista do automóvel em que nos deslocávamos teve um problema: sua filha ficara doente. Foi imediatamente dispensado para ficar com a filha, e substituído, naquele dia, por um colega. No dia seguinte, nosso tradutor, funcionário graduado do Ministério das Relações Exteriores, formado por algumas das melhores universidades, não somente da Coreia, mas, inclusive, do Ocidente, disse que iria deixar-nos por algumas horas: soubera que a filha do motorista, já melhor de saúde, manifestara vontade de chupar laranjas - e lá foi o diplomata, atrás de laranjas para a filha do motorista.

Pode ser que o leitor já tenha presenciado algum pequeno incidente semelhante a este no Brasil. Há muita gente sensível e generosa entre nós. Porém, terá sigo algo excepcional e admirável. O extraordinário aqui foi a naturalidade como tudo ocorreu – acontecimentos desse tipo não são excepcionais na Coreia Popular; e ninguém, exceto nós, achou que era digno de admiração.

Andando pelo Jardim Zoológico de Pyongyang, onde há tigres brancos, cisnes negros e outros espécimens no mínimo curiosos, vimos o orgulho com que a maior parte das crianças – as que têm idade para tal – exibiam, no pescoço, o lenço vermelho dos pioneiros. Mais ainda, era visível o carinho que os pais demonstravam pelos filhos.

Algum teimoso leitor poderá dizer: mas aqui, na maioria, os pais também demonstram carinho pelos filhos. É verdade, graças aos céus e ao povo brasileiro. Porém, como é difícil, às vezes, depois de trabalhar oito ou mais horas, aguentando patrões (e, o que é pior, prepostos de patrões), com a cabeça cheia dos problemas que nos coloca a própria sobrevivência da família - para não falar da jornada, muitas vezes dupla, das mães -, ter paciência e compreensão com os filhos!

Quantas vezes, leitor, isso não exigiu esforço – e não pequeno - da sua parte? Nem estamos nos referindo aos problemas das crianças – embora eles, também, existam – mas apenas a compreender, como é exigido dos pais, a sua condição de crianças. A situação de vida e trabalho que, via de regra, temos no Brasil, não torna fácil a compreensão dos filhos. Quantos de nós já perdemos, um dia ou outro, a paciência com os filhos, sem que eles tenham feito algo além de ser crianças? E, como consequência, quantos de nós, somente depois de anos, às vezes décadas, depois de adultos, é que conseguimos entender os problemas dos nossos pais, para não falar daqueles que nunca o conseguem?

Problemas assim devem, sem dúvida, ainda existir num país socialista, como a Coreia. Mas o grau em que ocorrem parece muito menor do que aqui – a julgar pelo modo como os pais tratavam os filhos no Zoológico, ou no Parque de Diversões de Pyongyang, ou no espetacular Circo que as forças armadas mantêm para o lazer da população.

O leitor teimoso poderá, ainda, replicar: mas isso foi em público. Como vocês estão certos de que na vida puramente familiar as coisas são assim?

Há, pelo menos, um poderoso indicativo disto: o modo livre, espontâneo, desembaraçado, e educado, como as crianças se comportam. O leitor sabe do que estamos falando – um adulto pode simular um comportamento em público (embora, no caso, estamos falando de milhares de pessoas) que não corresponde ao seu comportamento em particular. Mas, as crianças, quando tentam fazê-lo, só revelam o que a simulação não deveria revelar.

Toda a questão está em que as crianças, na Coreia Popular, não têm apenas a vida familiar como forma de socialização. Por isso, a rigor, não cabe falar, como fizemos acima, em "vida puramente familiar". Até porque este "puramente" também não existe em nossa sociedade – ou em qualquer sociedade -, como sabe qualquer um que tenha uma televisão em casa.

Milhares de pensadores de todas as épocas, incluindo São Paulo, o nosso Ruy Barbosa, e, dizem, Stalin, afirmaram que "a família é a celula mater da sociedade". Mas, falar em "célula mater" significa, ao mesmo tempo, dizer que existem outras células além da primeira. Quanto mais o indivíduo se relaciona positivamente com o conjunto da sociedade, mais "socializado", isto é, civilizado, ele é. E quanto mais "privatizada", isto é, individualista, a sociedade seja, menos possibilidades existem de algum relacionamento positivo – aliás, como sabemos pelo final da sociedade escravagista e da sociedade feudal, há momentos em que o único relacionamento saudável com uma sociedade é negativo: é ser contra ela, para transformá-la em outra. Estes são, em geral, os períodos mais angustiantes da História - e também aqueles em que pode se abrir uma nova época para o ser humano.

Na Coreia, essa nova época, apesar de todas as dificuldades acarretadas por um cerco que somente não é completo em virtude da vizinhança e da hoje longa amizade coreano-chinesa, já chegou. Portanto, é natural que o comportamento das pessoas, em especial o relacionamento entre pais e filhos, demande muito menos esforços, seja bem mais livre, do que na nossa sociedade. Em poucas palavras, o relacionamento entre pais e filhos exige menos esforço onde a sociedade está a seu favor, e não contra, onde a sociedade facilita esse relacionamento, inclusive através de instituições que estão além da família – o que não se pode dizer, por exemplo, da TV no Brasil, em geral um veículo de infâmias antissociais sobre as crianças.

O PARQUE

Depois de um dia repleto de atividades, um amigo coreano, fluente em castelhano, mas não em português, sugeriu que fôssemos, após o jantar, ao "parque de diversificação". Pensei que fosse alguma exposição econômica. Estávamos cansados – mais de 11 horas de voo entre São Paulo e Paris, mais 11 de Paris até Pequim, e mais uma hora entre Pequim e Pyongyang, mais os problemas do fuso horário, não são brincadeira para quem já passou dos 50 anos, para falar modestamente (no meu caso, sem modéstia, isso quer dizer que falta pouco para os 60...).

Ainda bem que, apesar do cansaço, aceitamos a sugestão do nosso amigo. Ele, ao tentar falar o português, cometera um pequeno e compreensível equívoco. Tratava-se do Parque de Diversões de Pyongyang.

A construção do parque foi uma ideia do general Kim Zong Un, vice-presidente da Comissão Nacional de Defesa, aprovada pelo presidente desta instituição, e secretário-geral do Partido do Trabalho da Coreia, Kim Zong Il, chamado pelos coreanos "o grande dirigente". O general Kim Zong Un também dirigiu pessoalmente os trabalhos de edificação do Parque.

É inevitável, para um brasileiro, que a toda hora ocorressem comparações com nossa vida aqui, em nosso país. Meu pai era um operário que durante 40 anos trabalhou em estaleiros, estradas ou em fábricas, mas, nos fins de semana, quando não cozinhava em casa para livrar minha mãe dessa tarefa, fazia questão de sair com a família. Íamos à Quinta da Boa Vista, onde fica o Zoológico do Rio, ou, antes de 1964, quando a situação era muito menos apertada, íamos almoçar com os vizinhos num restaurante alemão que ficava na Rio-Petrópolis. Uma vez até entramos na Hípica, clube granfino que abrira as portas ao público para uma "festa da uva".

Porém, durante todo o tempo em que trabalhou, jamais meu pai conseguiu sair, com a família ou sozinho, no meio da semana. No dia seguinte, às 5 horas da manhã, em certas épocas até mais cedo, ele tinha que tomar o seu café e ir ao trabalho – do qual chegava sempre bem extenuado.

No entanto, no Parque de Diversões de Pyongyang, numa noite de quinta-feira, havia seis ou sete mil crianças acompanhadas pelos pais - que tinham, todos, o ar inconfundível de trabalhadores. Para brasileiros comuns, como era o nosso caso, seria quase incrível, se não estivéssemos vendo (quase que escrevo "vendo com nossos olhos", mas é difícil que o leitor presuma que estávamos vendo com outros órgãos...).

O general Kim Zong Un tinha razão ao se preocupar com a diversão do povo. Um governo que não se preocupa com isso, despreza aquilo que Getúlio chamou "o trabalho nacional", com seu fundamental e decisivo elemento, os homens, as mulheres, e seus filhos.

Não representei muito bem as cores brasileiras no Parque de Diversões. Existe lá uma "punching ball", aquela bola que os boxeadores esmurram, para testar a potência do soco. Dei um murro com a direita, justamente a mão do braço afetado pela insidiosa Lesão por Esforços Repetitivos (LER). Resultado: meu soco, segundo o medidor, chegou apenas a 40 quilos. Um vexame. O amigo que nos levou ao Parque conseguiu chegar, num único soco, a mais de 200 quilos. Além disso, venceu minha mulher no tiro-ao-alvo eletrônico, matando todos os pombos virtuais que apareceram na tela, vindos dos mais insuspeitados lugares. Também, com o treinamento que os coreanos fazem para defender o país dos americanos, essas coisas devem ser fichinha...(continua)

http://www.horadopovo.com.br/2011/12Dez/3015-02-12-2011/P8/pag8a.htm

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Beth Carvalho: "A CIA quer acabar com o samba"




Cantora lança CD e, em entrevista ao iG, acusa a Agência Central de Inteligência dos EUA. Comente e veja galeria de fotos

Valmir Moratelli, iG Rio de Janeiro | 25/11/2011 07:00


Ao abrir o elevador, ainda no hall de entrada do apartamento, um quadro com a foto de Che Guevara. Não há dúvidas. Ali é o andar de Beth Carvalho. Ela surge na sala, amparada por duas muletas, que logo deixa de lado para posar para as fotos. “Nunca vi coisa para cair mais do que muletas. Estas meninas caem toda hora”, diz, bem-humorada.



Ainda se recuperando de uma fissura no sacro (osso do final da coluna), aos 65 anos, Beth anda com dificuldades. Ficou dois anos sem pôr os pés no chão. “Estou ótima, salva! Os médicos comentaram com minha filha que eu poderia não andar mais. Mas não me abati. Foi um processo menos doloroso por perceber a prova de amor dos amigos e da família”, relata.

Após quinze anos, a sambista lança o CD de inéditas “Nosso samba tá na rua”, dedicado a dona Ivone Lara, com canções sobre a negritude, o amor e o feminismo. Uma das letras, “Arrasta a sandália”, é de autoria de sua filha, Luana Carvalho. Cercada de quadros de Cartola e Nelson Cavaquinho, entre almofadas verdes e rosas (cores de sua escola de samba Mangueira), perante uma estante com dezenas de troféus e outra com bonecos de Che, Fidel Castro e orixás, Beth concede a entrevista a seguir ao iG.



No fundo da janela, o mar de São Conrado, bairro vizinho à favela da Rocinha. “A CIA quer acabar com o samba. É uma luta contra a cultura brasileira. Os Estados Unidos querem dominar o mundo através da cultura”, diz a cantora, presidente de honra do PDT. Entre os fartos risos, também não faltaram palavras ríspidas para defender seu ponto de vista.



G: Qual foi a sensação ao voltar a andar?
BETH CARVALHO: A pior da minha vida. Quando pus os pés pela primeira vez no chão, achei que nunca ia andar de novo. Parecia que não tinha mais pernas, sem força muscular. Depois, com a fisioterapia, a recuperação foi rápida. Precisei colocar dois parafusos de 15 cm cada um, só isso me fez voltar a andar. Agora sou interplanetária e biônica (risos).

iG: Em seu novo CD, a letra “Chega” é visivelmente feminista. Por que é raro o samba dar voz a mulheres?
BETH CARVALHO: O mundo, não só o samba, é machista. Melhorou bastante devido à luta das mulheres, mas a cada cinco minutos uma mulher apanha no Brasil. É um absurdo. Parece que está tudo bem, mas não é bem assim. Sempre fui ligada a movimentos libertários.

iG: De que forma o samba é machista?
BETH CARVALHO: A maioria dos sambistas é homem. Depois de mim, Clara Nunes e Alcione, as coisas melhoraram. O samba é machista, mas o papel da mulher é forte. O samba é matriarcal, na medida que dona Vicentina, dona Neuma, dona Zica comandam os bastidores da história. Eu, por exemplo, sou madrinha de muitos homens (risos).

G: A senhora é vizinha da favela da Rocinha. Como vê o processo de pacificação?
BETH CARVALHO: Faltou, por muitos anos, a força do estado nestas comunidades. Agora estão fazendo isso de maneira brutal e, de certa forma, necessária. Mas se não tiver o lado social junto, dando a posse de terreno para quem mora lá há tanto tempo, as pessoas vão continuar inseguras. E os morros virarão uma especulação imobiliária.

iG: Alguns culpam o governo Leonel Brizola (1983-1987/1991-1994) pelo fortalecimento do tráfico nos morros. A senhora, que era amiga do ex-governador, concorda?
BETH CARVALHO: Isso é muito injusto. É absurdo (diz em tom áspero). Se tivessem respeitado os Cieps, a atual geração não seria de viciados em crack, mas de pessoas bem informadas. Brizola discutia por que não metem o pé na porta nos condomínios da Avenida Viera Souto (em Ipanema) como metem nos barracos. Ele não podia fazer milagre.




iG: Defende a permanência de Carlos Lupi no Ministério do Trabalho?
BETH CARVALHO: Olha, sou presidente de honra do PDT porque é um título carinhoso que Brizola me deu, mas não sou filiada ao PDT. Não tenho uma opinião formada sobre isso, porque não sei detalhes. Existe uma grande rigidez a partidos de esquerda. Fizeram isso com o PC do B do Orlando Silva, e agora fazem com o PDT. O que conheço do Lupi é uma pessoa muito correta. Eles deveriam ser menos perseguidos pela mídia.

iG: Aqui na sua casa há várias imagens de Che Guevara e de Fidel Castro. Acredita no modelo socialista?
BETH CARVALHO: Eu só acredito no modelo socialista, é o único que pode salvar a humanidade. Não tem outro (fala de forma enfática). Cuba diz ‘me deixem em paz’. Os Estados Unidos, com o bloqueio econômico, fazem sacanagem com um país pobre que só tem cana de açúcar e tabaco.

iG: Mas e a falta de liberdade de expressão em Cuba?
BETH CARVALHO: Eu não me sinto com liberdade de expressão no Brasil.

iG: Por quê?
BETH CARVALHO: Porque existe uma ditadura civil no Brasil. Você não pode falar mal de muita coisa.

iG: Como quais?
BETH CARVALHO: Não falo. Tem uma mídia aí que acaba com você. Existe uma censura. Não tem quase nenhum programa de TV ao vivo que nos permita ir lá falar o que pensamos. São todos gravados. Você não sabe que vai sair o que você falou, tudo tem edição. A censura está no ar.

iG: Mas em países como Cuba a censura é institucionalizada, não?
BETH CARVALHO: Não existe isso que você está falando, para começo de conversa. Cuba não precisa ter mais que um partido. É um partido contra todo o imperialismo dos Estados Unidos. Aqui a gente está acostumada a ter vários partidos e acha que isso é democracia.

iG: Este não seria um pensamento ultrapassado?
BETH CARVALHO: Meu Deus do céu! Estados Unidos têm ódio mortal da derrota para oito homens, incluindo Fidel e Che, que expulsaram os americanos usando apenas o idealismo cubano. Os americanos dormem e acordam pensando o dia inteiro em como acabar com Cuba. É muito difícil ter outro Fidel, outro Brizola, outro Lula. A cada cem anos você tem um Pixinguinha, um Cartola, um Vinicius de Moraes... A mesma coisa na liderança política. Não é questão de ditadura, é dificuldade de encontrar outro melhor para ocupar o cargo. É difícil encontrar outro Hugo Chávez.

iG: Chávez é acusado por muitos de ter acabado com a democracia na Venezuela.
BETH CARVALHO: Acabou com o quê? Com o quê? (indaga com voz alta)

iG: Com a democracia...
BETH CARVALHO: Chávez é um grande líder, é uma maravilha aquele homem. Ele acabou com a exploração dos Estados Unidos. Onde tem petróleo estão os Estados Unidos. Chávez acabou com o analfabetismo na Venezuela, que é o foco dos Estados Unidos porque surgiu um líder eleito pelo povo. Houve uma tentativa de golpe dos americanos apoiada por uma rede de TV.

iG: A emissora que fazia oposição ao governo e que foi tirada do ar por Chávez...
BETH CARVALHO: Não tirou do ar (fala em tom áspero). Não deu mais a concessão. É diferente. Aqui no Brasil o governo pode fazer a mesma coisa, televisão aberta é concessão pública. Por que vou dar concessão a quem deu um golpe sujo em mim? Tem todo direito de não dar.

Leia também: Beth Carvalho segue renovando e preservando o samba em novo disco

iG: A senhora defende que o governo brasileiro deveria cassar TV que faz oposição?
BETH CARVALHO: Acho que se estiver devendo, deve cassar sim. Tem que ser o bonzinho eternamente? Isso não é liberdade de expressão, é falta de respeito com o presidente da República. Quem cassava direitos era a ditadura militar, é de direito não dar concessão. Isso eu apoio.

iG: Por ser oriundo dos morros, o samba foi conivente com o poder paralelo dos traficantes?
BETH CARVALHO: Não, o samba teve prejuízo enorme. Hoje dificilmente se consegue senhoras para a ala das baianas nas escolas de samba. Elas estão nas igrejas evangélicas, proibidas de sambar. Não se vê mais garoto com tamborim na mão, vê com fuzil. O samba perdeu espaço para o funk.

iG: Quem é o culpado?
BETH CARVALHO: Isso tem tudo a ver com a CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA), que quer acabar com o samba. É uma luta contra a cultura brasileira. Os Estados Unidos querem dominar o mundo através da cultura. Estas armas dos morros vêm de onde? Vem tudo de fora. Os Estados Unidos colocam armas aqui dentro para acabar com a cultura dos morros, nos fazendo achar que é paranoia da esquerda. Mas não é, não.

iG: O samba vai resistir a esta “guerra” que a senhora diz existir?
BETH CARVALHO: Samba é resistência. Meu disco é uma resistência, não deixa de ser uma passeata: “Nosso samba tá na rua”.

http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/musica/beth-carvalho-a-cia-quer-acabar-com-o-samba/n1597382636665.html

terça-feira, 15 de novembro de 2011

(Movimentos sociais – Financiamentos) – A fabricação da dissidência

Reflexão sobre financiamentos por parte de fundações de entidades e ongs com atuação nos movimentos sociais
Michel Chossudovsky*

“Tudo aquilo que a Fundação [Ford] fez pode ser considerado no âmbito de

“tornar o mundo seguro para o capitalismo, diminuindo as tensões sociais ao ajudar a socorrer os angustiados, a proporcionar válvulas de segurança aos raivosos e a melhorar o funcionamento do governo”

(McGeorge Bundy, conselheiro de Segurança Nacional dos Presidentes John F. Kennedy e Lyndon Johnson (1961-1966) e Presidente da Fundação Ford (1966-1979).

“Ao pôr os fundos e o enquadramento político à disposição de muita gente preocupada e dedicada que trabalha no setor não lucrativo, a classe dirigente pode ir buscar líderes às comunidades de base, e pode tornar o financiamento, a contabilidade e os componentes de avaliação do trabalho tão demorado e oneroso que o trabalho de justiça social é praticamente impossível nessas condições”

(Paul Kivel, You Call this Democracy, Who Benefits, Who Pays and Who Really Decides, 2004, p. 122 )

“Na Nova Ordem Mundial, o ritual de convidar líderes da “sociedade civil” para os círculos interiores do poder – enquanto simultaneamente reprime os cidadãos comuns – satisfaz diversas funções importantes. Primeiro, diz ao Mundo que os críticos da globalização “têm que fazer concessões” para ganharem o direito de se misturar. Segundo, transmite a ilusão de que, embora as elites globais devam – no que eufemísticamente se chama democracia – estar sujeitas à crítica, governam legitimamente. E terceiro, diz “não há alternativa” à globalização: não é possível uma mudança radical e o mais que podemos esperar é negociar com esses governantes um ineficaz “dar e receber”.

Mesmo que os “Globalizadores” possam adotar algumas frases progressistas para demonstrar que têm boas intenções, os seus objetivos fundamentais não são contestados. E o que esta “miscelânea da sociedade civil” faz é reforçar o coio da instituição empresarial, ao mesmo tempo em que enfraquece e divide o movimento de protesto. A compreensão deste processo de cooptação é importante, porque dezenas de milhares dos jovens mais íntegros em Seattle, Praga e Quebec [1999-2001] estão envolvidos nos protestos anti-globalização porque rejeitam a noção de que o dinheiro é tudo, porque rejeitam o empobrecimento de milhões e a destruição da Terra frágil para que alguns fiquem mais ricos.

Esta arraia-miúda e também alguns dos seus líderes merecem ser aplaudidos. Mas é preciso ir mais longe. É preciso contestar o direito dos “Globalizadores” a governar. Para isso é necessário repensar a estratégia do protesto. Poderemos mudar para um nível superior, desencadeando movimentos de massas nos nossos respectivos países, movimentos que transmitam a mensagem do que a globalização está fazendo às populações? Porque são eles a força que tem que ser mobilizada para contestar aqueles que pilham o Globo”. (Michel Chossudovsky, The Quebec Wall, abril 2001)

A expressão “fabricação do consenso” foi inicialmente cunhada por Edward S Herman and Noam Chomsky.

A “fabricação do consenso” descreve um modelo de propaganda usado pelos meios de comunicação corporativos para manipular a opinião pública e “inculcar valores e crenças nos indivíduos…”

Os meios de comunicação de massas servem como um sistema de comunicação de mensagens e símbolos à arraia-miúda. É sua função divertir, entreter e informar, e inculcar nos indivíduos valores, crenças e códigos de comportamento que os integrarão nas estruturas institucionais da sociedade mais ampla. Para cumprir este papel num mundo de riqueza concentrada e de importantes conflitos de interesses de classe, é necessário uma propaganda sistemática. (Manufaturing Consent por Edward S. Herman e Noam Chomsky)

A “fabricação do consenso” implica a manipulação e a modelação da opinião pública. Institui a conformidade e a aceitação à autoridade e à hierarquia social. Procura a obediência a uma ordem social instituída. A “fabricação do consenso” descreve a submissão da opinião pública à narrativa dos meios de comunicação predominantes, às suas mentiras e maquinações.

“A fabricação da dissidência”

Neste artigo, concentramo-nos num conceito relacionado, ou seja, o processo de “fabricação da dissidência” (em vez do “consenso”) que desempenha um papel decisivo ao serviço dos interesses da classe dirigente.

No capitalismo contemporâneo, tem que se manter a ilusão da democracia. É do interesse das elites corporativas aceitar a dissidência e o protesto como uma característica do sistema tanto mais que não ameaçam a ordem social instituída. O objetivo não é reprimir os dissidentes mas, pelo contrário, modelar e moldar o movimento de protesto, estabelecer os limites exteriores da dissidência.

Para manter a sua legitimidade, as elites econômicas favorecem formas de oposição limitadas e controladas, com vista a impedir o desenvolvimento de formas radicais de protesto, que podiam abalar as fundações e as instituições do capitalismo global. Por outras palavras, a “fabricação da dissidência” funciona como uma “válvula de segurança” que protege e sustenta a Nova Ordem Mundial.

Mas, para ser eficaz, o processo da “fabricação da dissidência” tem que ser cuidadosamente regulado e monitorizado por aqueles que são o alvo do movimento de protesto.

“Financiar a dissidência”

Como é que se consegue fabricar a dissidência?

Essencialmente, “financiando a dissidência”, nomeadamente canalizando recursos financeiros daqueles que são o objeto do movimento de protesto para aqueles que estão envolvidos na organização do movimento de protesto.

A cooptação não se limita a comprar os favores de políticos. As elites econômicas – que controlam importantes fundações – também fiscalizam o financiamento de inúmeras Organizações Não Governamentais (ONGs) e organizações da sociedade civil, que historicamente têm estado envolvidas no movimento de protesto contra a ordem econômica e social instituída. Os programas de muitas ONGs e movimentos populares dependem fortemente de financiamentos de organismos públicos ou privados, incluindo as fundações Ford, Rockefeller, McCarthy, entre outras.

O movimento anti-globalização opõe-se a Wall Street e aos gigantes petrolíferos do Texas controlados por Rockefeller e outros. Mas as fundações e os organismos caritativos de Rockefeller e outros financiam generosamente redes progressistas anti-capitalistas assim como os ambientalistas (que se opõem ao Grande Petróleo) com vista a vir a fiscalizar e a modelar as suas diversas atividades.

Os mecanismos da “fabricação da dissidência” exigem um ambiente manipulador, um processo de braço de ferro e uma sutil cooptação de indivíduos do interior de organizações progressistas, incluindo coligações anti-guerra, ambientalistas e o movimento anti-globalização.

Enquanto que os meios de comunicação “fabricam o consenso”, as elites corporativas utilizam a complexa rede de ONGs (incluindo segmentos dos meios de comunicação alternativos) para moldar e manipular o movimento de protesto.

Na sequência da desregulamentação do sistema financeiro global nos anos 90 e do rápido enriquecimento da instituição financeira, o financiamento através de fundações e instituições caritativas disparou. Ironicamente, parte dos ganhos financeiros fraudulentos de Wall Street nos últimos anos foram reciclados para fundações e instituições caritativas livres de impostos das elites. Estes ganhos financeiros inesperados não só foram usados para comprar políticos, como também foram canalizados para ONGs, institutos de pesquisa, centros comunitários, igrejas, ambientalistas, meios de comunicação alternativos, grupos de direitos humanos, etc. A “fabricação da dissidência” também se aplica à “esquerda corporativa” e aos “meios de comunicação progressistas” financiados por ONGs ou diretamente pelas fundações.

O objetivo encoberto é “fabricar a dissidência” e estabelecer as fronteiras duma oposição “politicamente correta”. Por sua vez, muitas ONGs são infiltradas por informantes que atuam frequentemente por conta dos organismos de informações ocidentais. Além disso, um segmento cada vez maior dos meios noticiosos progressistas alternativos na internet passou a ficar dependente do financiamento de fundações corporativas e de organizações caritativas.

Ativismo fragmentado

O objetivo das elites corporativas tem sido fragmentar o movimento popular num enorme mosaico “faça você mesmo”. A guerra e a globalização já não estão na linha da frente do ativismo da sociedade civil. O ativismo tem tendência para se fragmentar. Não há um movimento anti-guerra e anti-globalização integrado. A crise econômica não está sendo vista como tendo uma relação com a guerra liderada pelos EUA.

A dissidência foi compartimentalizada. São encorajados e generosamente financiados movimentos de protesto separados “orientados por assuntos” (por ex. ambiente, antiglobalização, paz, direitos das mulheres, alteração climática), em oposição a um movimento de massas coeso. Este mosaico já era prevalecente na manifestação contra as Cúpulas G7 e nas Cúpulas Populares dos anos 90.

O movimento anti-globalização

A Contra-Cúpula Seattle 1999 é invariavelmente considerada como um triunfo para o movimento anti-globalização: “uma coligação histórica de ativistas fez encerrar a Cúpula da Organização Mundial do Comércio em Seattle, a faísca que incendiou um movimento global anti-empresas”. (Ver Naomi Klein, Copenhagen: Seattle Grows Up, The Nation, 13 de novembro, 2009).

Seattle foi de fato um marco importante na história do movimento de massas. Mais de 50.000 pessoas de diversas origens, organizações da sociedade civil, dos direitos humanos, sindicatos de trabalhadores, ambientalistas juntaram-se com um objetivo comum. O seu objetivo era desmantelar à força a agenda neoliberal incluindo a sua base institucional.

Mas Seattle é também um marco de uma mudança importante. Com a escalada da dissidência por parte de todos os setores da sociedade, a Cúpula oficial da Organização Mundial do Comércio (OMC) precisava desesperadamente da participação simbólica dos líderes da sociedade civil “por dentro”, para dar exteriormente o aspecto de ser “democrática”.

Embora tenham convergido milhares de pessoas a Seattle, o que se passou nos bastidores foi na verdade uma vitória para o neoliberalismo. Um punhado de organizações da sociedade civil, formalmente opostas à OMC contribuiu para legitimar a arquitetura comercial global da OMC. Em vez de contestar a OMC como um órgão intergovernamental ilegal, aceitaram um diálogo pré-Cúpula com a OMC e os governos ocidentais. “Participantes acreditados das ONG foram convidados a participar num ambiente amistoso com embaixadores, ministros do comércio e magnatas de Wall Street em vários dos eventos oficiais, incluindo os numerosos cocktails e recepções”.(Michel Chossudovsky, Seattle and Beyond: Disarming the New World Order, Covert Action Quarterly, novembro 1999, Ver:Ten Years Ago: “Manufaturing Dissent” in Seattle).

A agenda oculta era enfraquecer e dividir os movimentos de protesto e orientar o movimento anti-globalização para áreas que não ameaçassem diretamente os interesses da instituição dos negócios.

Financiado por fundações privadas (incluindo a Ford, a Rockefeller, a Rockefeller Brothers, a Charles Stewart Mott, The Foundation for Deep Ecology), estas organizações “acreditadas” da sociedade civil passaram a funcionar como grupos de pressão, agindo formalmente em nome do movimento popular. Lideradas por ativistas conhecidos e empenhados, tinham as mãos atadas. Acabaram por contribuir (involuntariamente) para enfraquecer o movimento anti-globalização ao aceitarem a legitimidade do que era essencialmente uma organização ilegal, (o acordo da Cúpula de Marraqueche de 1994 que levou à criação da OMC em 1 de janeiro de 1995). (ibid).

Os líderes das Organizações Não Governamentais (ONGs) tinham plena consciência de onde é que vinha o dinheiro. No entanto, na comunidade das ONGs americanas e européias, as fundações e as organizações caritativas são consideradas como órgãos filantrópicos independentes, separados das corporações; nomeadamente a Fundação Rockefeller Brothers, por exemplo, é considerada como separada e distinta do império de bancos e empresas petrolíferas da família Rockefeller.

Com os salários e as despesas operacionais dependentes de fundações privadas, isso tornou-se uma rotina aceita: numa lógica distorcida, a batalha contra o capitalismo corporativo iria ser travada usando os fundos das fundações isentas de impostos, propriedade do capitalismo corporativo.

As ONGs foram metidas numa camisa-de-forças; a sua própria existência dependia das fundações. As suas atividades eram monitorizadas de perto. Numa lógica distorcida, a própria natureza do ativismo anti-capitalista era controlada indiretamente pelos capitalistas através das suas fundações independentes.

“Cães de guarda progressistas”

Nesta saga em evolução, as elites corporativas, cujos interesses são defendidos inexoravelmente pelo FMI, pelo Banco Mundial e pela OMC, financiam de boa vontade (através das suas diversas fundações e obras caritativas) organizações que estão na vanguarda do movimento de protesto contra a OMC e as instituições financeiras internacionais com sede em Washington.

Sustentados pelo dinheiro das fundações, foram colocados diversos “cães de guarda” nas ONGs para fiscalizar a implementação de políticas neoliberais, sem no entanto colocar a questão mais ampla de como é que os gêmeos Bretton Woods e a OMC, através das suas políticas, tinham contribuído para o empobrecimento de milhões de pessoas.

A SAPRIN (Structural Adjustment Participatory Review Network), foi fundada pelo Development Gap, uma USAID (Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional) e o Banco Mundial financiou a ONG com sede em Washington DC.

Amplamente documentada, a imposição do Programa de Ajustamento Estrutural FMI-Banco Mundial (SAP) aos países em desenvolvimento constitui uma forma escandalosa de interferência nos assuntos internos de estados soberanos em nome de instituições credoras.

Em vez de contestar a legitimidade da “medicina econômica letal” do FMI-Banco Mundial, a organização central da SAPRIN procurou estabelecer um papel participativo para as ONGs, de braço dado com a USAID e o Banco Mundial. O objetivo era dar um “rosto humano” à agenda política neoliberal, em vez de rejeitar liminarmente o enquadramento político do FMI-Banco Mundial:

“A SAPRIN é a rede global da sociedade civil que foi buscar o seu nome à Structural Adjustment Participatory Review Initiative (SAPRI), que foi lançada com o Banco Mundial e o seu presidente, Jim Wolfensohn, em 1997.

A SAPRI destina-se a um exercício tripartido para reunir organizações da sociedade civil, os seus governos e o Banco Mundial numa análise conjunta de programas de ajustamento estrutural (SAPs) e na exploração de novas opções políticas. Está legitimando um papel ativo para a sociedade civil na tomada de decisões econômicas, já que lhe compete indicar áreas em que são necessárias mudanças na política econômica e no processo de implementar políticas econômicas. (http://www.saprin.org/overview.htm – website da SAPRIN).

Do mesmo modo, o Observatório do Comércio (anteriormente WTO Watch), que opera a partir de Genebra, é um projeto do Instituto para a Política de Agricultura e Comércio (IATP), com base em Minneapolis, que é generosamente financiado pela Ford, Rockefeller, Charles Stewart Mott, entre outros (ver Quadro 1 abaixo).

O Observatório do Comércio tem por função fiscalizar a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Acordo de Comércio Livre Norte-americano (NAFTA) e a proposta Área de Comércio Livre das Américas (FTAA). (IATP,About Trade Observatory, setembro 2010).

O Observatório do Comércio também pretende melhorar dados e informações assim como estimular a “governação” e a “responsabilidade”. Responsabilidade em relação às vítimas das políticas da OMC ou responsabilidade para com os protagonistas das reformas neoliberais?

As funções de cão de guarda do Observatório do Comércio não ameaçam de modo algum a OMC. Muito pelo contrário: a legitimidade das organizações e dos acordos comerciais nunca são postas em questão.

Quadro 1 – Principais doadores ao Instituto para a

Política Agrícola e Comercial Minneapolis (IATP)

Doadores EUA dólares Período

Fundação Ford 2.612.500 1994-2006

Fundo Rockefeller Brothers 2.320.000 1995-2005

Fundação Charles Stewart Mott 1.391.000 1994-2005

Fundação McKnight 1.056.600 1995-2005

Fundação Joyce 748.000 1996-2004

Fundação Bush 610.000 2001-2006

Fundação Família Bauman 600.000 1994-2006

Fundo Proteção Grandes Lagos 580.000 1995-2000

Fundação John D. & Catherine T. MacArthur 554.100 1991-2003

Fundo John Merck 490.000 1992-2003

Fundação Harold K. Hochschild 486.600 1997-2005

Fundação Deep Ecology 417.500 1991-2001

Fundação Jennifer Altman 366.500 1992-2001

Fundação Rockefeller 344.134 2000-2004

Fonte: http://ativistcash.com/organization_financials.cfm/o/16-institute-for-agricultura-and-trade-policy

O Fórum Econômico Mundial. “Todos os caminhos vão dar em Davos”

O movimento popular foi assaltado. Intelectuais escolhidos, executivos sindicais, e líderes das organizações da sociedade civil (incluindo a Oxfam, a Amnistia Internacional, o Greenpeace) são sistematicamente convidados para o Fórum Mundial Econômico de Davos, onde se misturam com os atores econômicos e políticos mais poderosos do Mundo. Esta mistura de elites corporativas do mundo com “progressistas” escolhidos a dedo faz parte do ritual subjacente ao processo de “fabricação da dissidência”.

A tática é escolher a dedo seletivamente líderes da sociedade civil “em quem podemos confiar” e integrá-los num “diálogo”, isolá-los das suas bases, fazer com que eles se sintam “cidadãos globais” agindo no interesse dos trabalhadores seus colegas mas fazendo com que eles ajam de modo a servir os interesses da instituição corporativa:

“A participação de ONGs no Encontro Anual em Davos é uma prova de que procuramos intencionalmente integrar um largo espectro dos principais participantes na sociedade para… definir e impulsionar a agenda global… Acreditamos que o Fórum Mundial Econômico [de Davos] proporciona à comunidade dos negócios o enquadramento ideal para se empenhar num esforço colaborativo com os outros participantes principais [as ONGs] da economia global para “melhorar o estado do mundo”, que é a missão do Fórum. (Fórum Mundial Econômico, Comunicado à Imprensa 5 janeiro 2001)

O FME não representa a comunidade de negócios mais ampla. É um grupo elitista: Os seus membros são gigantescas corporações globais (com um mínimo de 5 bilhões de dólares de volume de negócios anual). As organizações não governamentais (ONGs) selecionadas são consideradas como “participantes” parceiros assim como um conveniente “porta-voz para os que não têm expressão que ficam quase sempre fora dos processos de tomada de decisões”. (World Economic Forum – Non-Governmental Organizations, 2010)

“[As ONGs] desempenham uma série de papéis na parceria com o Fórum para melhorar o estado do mundo, incluindo servir de ponte entre os negócios, o governo e a sociedade civil, ligando os políticos às bases, pondo soluções práticas em cima da mesa…” (ibid).

Uma “parceria” da sociedade civil com corporações globais em nome dos “que não têm voz”, que são “deixados de fora”?

Também são cooptados executivos sindicais com prejuízo para os direitos dos trabalhadores. Os líderes da Federação Internacional dos Sindicatos (IFTU), da AFL-CIO, da Confederação dos Sindicatos Europeus, do Congresso do Trabalho Canadense (CLC), entre outros, são sistematicamente convidados para assistir tanto às reuniões anuais do FME em Davos, na Suíça, como às Cúpulas regionais. Também participam na Comunidade de Líderes Trabalhistas do FME que se concentra em padrões mutuamente aceitáveis de comportamento para o movimento dos trabalhadores. O FME “acredita que a voz do Trabalho é importante para um diálogo dinâmico sobre as questões da globalização, da justiça econômica, da transparência e responsabilidade, e garante um sistema financeiro global saudável”.

“Garante um sistema financeiro global saudável” eivado de fraudes e corrupção? A questão dos direitos dos trabalhadores nem sequer é referida. (World Economic Forum – Labour Leaders, 2010).

O Fórum Social Mundial: “É possível outro mundo”

Em muitos aspectos a Contra-Cúpula de Seattle 1999 estabeleceu os alicerces para o desenvolvimento do Fórum Social Mundial.

A primeira reunião do Fórum Social Mundial (FSM) realizou-se em Janeiro de 2001, em Porto Alegre, Brasil. Esta reunião internacional envolveu a participação de dezenas de milhares de ativistas de organizações de bases de e de ONGs.

A reunião do FSM de ONGs e organizações progressistas realiza-se simultâneamente com o Fórum Econômico Mundial (FEM) de Davos. Destinava-se a dar voz à oposição e à dissidência em relação ao Fórum Econômico Mundial de líderes corporativos e de ministros das finanças.

No início, o FSM foi uma iniciativa da ATTAC de França e de várias ONGs brasileiras:

“… Em fevereiro de 2000, Bernard Cassen, chefe duma ONG francesa, a plataforma ATTAC, Oded Grajew, chefe duma organização de empregadores brasileiros, e Francisco Whitaker, chefe duma associação de ONGs brasileiras, reuniram-se para discutir uma proposta para um “evento mundial da sociedade civil”; em março de 2000, asseguraram formalmente o apoio do governo municipal de Porto Alegre e do governo estatal de Rio Grande do Sul, ambos controlados na época pelo Partido dos Trabalhadores Brasileiros (PT)… Um grupo de ONGs francesas, incluindo a ATTAC, os Amigos do L’Humanité e os Amigos do Le Monde Diplomatique, patrocinaram um Fórum Social Alternativo em Paris intitulado “Um Ano Após Seattle”, a fim de preparar uma agenda para os protestos a ser encenados na Cúpula da União Européia em Nice, que se aproximava. Os oradores apelaram à “reorientação de certas instituições internacionais tais como o FMI, o Banco Mundial, a OMC… a fim de criar uma globalização a partir de baixo” e à “implementação de um movimento internacional de cidadãos, não para destruir o FMI, mas para reorientar as suas missões”. (Research Unit For Political Economy, The Economics and Politics of the World Social Forum, Global Research, 20 de janeiro, 2004)

Desde o início em 2001, o FSM foi sustentado por um financiamento substancial da Fundação Ford, que, como se sabe, tem ligações com a CIA que remontam aos anos 50: “A CIA usa fundações filantrópicas como a via mais eficaz para canalizar grandes somas de dinheiro para projetos da Agência sem avisar os recebedores quanto à sua origem”. (James Petras, The Ford Foundation and the CIA, Global Research, 18 de setembro, 2002)

O mesmo procedimento de Contra-Cúpulas ou Cúpulas Populares com fundos doados, que caracterizou as Cúpulas Populares dos anos 90, foi utilizado no Fórum Social Mundial:

“… outros fundadores do FSM (ou ‘parceiros’, conforme são designados na terminologia do FSM) incluíam a Fundação Ford – basta dizer aqui que esta sempre funcionou na mais estreita colaboração com a CIA e com os interesses estratégicos em geral dos EUA; a Fundação Heinrich Boll Foundation, que é controlada pelo partido alemão Os Verdes, um parceiro no atual [2003] governo alemão e apoiador das guerras na Iugoslávia e no Afeganistão (o seu líder Joschka Fischer é o [antigo] ministro alemão dos negócios estrangeiros); e importantes organismos financiadores como o Oxfam (Reino Unido), o Novib (Holanda), o ActionAid (EUA), etc.

Curiosamente, um membro do Conselho Internacional do FSM relata que os “fundos consideráveis” recebidos desses organismos não tivera “até agora motivado quaisquer debates significativos [nos órgãos do FSM] sobre as possíveis relações de dependência que poderiam gerar”. Mas reconhece que “para receber fundos da Fundação Ford, os organizadores tiveram que convencer a fundação de que o Partido dos Trabalhadores não estava envolvido no processo”. Há aqui dois pontos dignos de registro. Primeiro, isto demonstra que os financiadores puderam medir as forças e determinar o papel das diferentes forças no FSM – tiveram que ser “convencidos” das credenciais daqueles que estariam envolvidos. Segundo, se os financiadores objetaram à participação do cuidadosamente domesticado Partido dos Trabalhadores, teriam objetado ainda com mais determinação se fosse dado relevo a forças genuinamente anti-imperialistas. Que eles fizeram essas objeções tornar-se-á claro quando descrevermos quem foi incluído e quem foi excluído da segunda e da terceira reuniões do FSM…

… A questão do financiamento [do FSM] nem sequer figura na carta de princípios do FSM, aprovada em Junho de 2001. Os marxistas, que são materialistas, fariam notar que se deve analisar a base material do fórum para apanhar a sua natureza. (Claro que não é preciso ser-se marxista para compreender que “quem paga a despesa é quem manda”). Mas o FSM não está de acordo. Pode aceitar fundos de instituições imperialistas como a Fundação Ford, e ao mesmo tempo lutar contra o “domínio do mundo pelo capital e qualquer outra forma de imperialismo”.(Research Unit For Political Economy, The Economics and Politics of the World Social Forum, Global Research, 20 de janeiro, 2004)

A Fundação Ford forneceu apoio fundamental ao FSM, com contribuições indiretas para participar em “organizações parceiras” da Fundação McArthur, da Fundação Charles Stewart Mott, de The Friedrich Ebert Stiftung, da Fundação W. Alton Jones, da Comissão Européia, de diversos governos europeus (incluindo o governo trabalhista de Tony Blair), do governo canadense, assim como de uma série de órgãos da ONU (incluindo a UNESCO, a UNICEF, a UNDP, a OIT e a FAO). (Iibid.)

Para além do apoio fundamental inicial da Fundação Ford, muitas das organizações da sociedade civil participantes recebem fundos de importantes fundações e organizações caritativas. Por seu lado, as ONGs com sede nos EUA e na Europa operam frequentemente como organismos de financiamento secundário, canalizando dinheiro Ford e Rockefeller para organizações parceiras em países em desenvolvimento, incluindo movimentos de base de camponeses e de direitos humanos.

O Conselho Internacional (CI) do FSM é composto por representantes das ONGs, sindicatos, organizações de meios de comunicação alternativos, institutos de investigação, muitos dos quais são fortemente financiados por fundações assim como por governos. (Ver Fórum Social Mundial). Os mesmos sindicatos, que são rotineiramente convidados para se misturarem com diretores de Wall Street no Fórum Econômico Mundial de Davos, incluindo a AFL-CIO, a Confederação Européia de Sindicatos e o Congresso do Trabalho Canadense também se sentam no Conselho Internacional do Fórum Social Mundial. Entre as ONGs financiadas pelas principais fundações que têm assento no Conselho Internacional do FSM encontra-se o Instituto para a Politica de Agricultura e Comércio (ver a nossa análise mais acima) que fiscaliza o Observatório do Comércio com sede em Genebra.

A Rede de Financiadores para o Comércio e Globalização (FTNG), que tem o estatuto de observador no Conselho Internacional do FSM desempenha um papel chave. Enquanto canaliza apoio financeiro para o FSM, atua como uma câmara de compensação para importantes fundações. A FTNG descreve-se a si mesma como “uma aliança de doadores empenhados na construção de comunidades justas e sustentadas em todo o mundo”. Alguns membros desta aliança são a Fundação Ford, a Rockefeller Brothers, Heinrich Boell, C. S. Mott, a Fundação da Família Merck, Open Society Institute, Tides, entre outros. (Para uma lista completa dos organismos financiadores da FTNG ver: FNTG: Funders). A FTNG atua como uma entidade angariadora de fundos por conta do FSM.

Governos ocidentais financiam as Contra-Cúpulas e reprimem o movimento de protesto

Ironicamente, governos que fazem parte da União Européia atribuem dinheiro para financiar grupos progressistas (incluindo o Fórum Social Mundial) envolvidos na organização de protestos contra esses mesmos governos que financiam as suas atividades:

“Também os governos têm sido financiadores significativos de grupos de protesto. A Comissão Européia, por exemplo, financiou dois grupos que mobilizaram grande número de pessoas para protestar nas Cúpulas da União Européia em Gotenburgo e Nice. A loteria nacional da Grã-Bretanha, que é fiscalizada pelo governo, ajudou a financiar um grupo no centro do contingente britânico em ambos os protestos”. (James Harding, Counter-capitalism,FT.com, 15 de outubro 2001)

Trata-se de um processo diabólico: O governo anfitrião financia a Cúpula oficial assim como as ONGs ativamente envolvidas na Contra-Cúpula. Também financia a operação policial anti-motins que tem como missão reprimir os participantes de base da Contra-Cúpula, incluindo membros de ONGs financiadas diretamente pelo governo.

O objetivo destas operações combinadas, incluindo ações violentas de vandalismo perpetradas por polícias à paisana (Toronto G20, 2010) disfarçados em ativistas, é desacreditar o movimento de protesto e intimidar os seus participantes. O objetivo mais amplo é transformar a Contra-Cúpula num ritual de dissidência, que serve para patrocinar os interesses da Cúpula oficial e o governo anfitrião. Esta lógica tem funcionado em numerosas contra Cúpulas desde os anos 90.

Na Cúpula da América em Quebec em 2001, o governo federal canadense concedeu financiamentos a ONGs e a sindicatos mais importantes mediante certas condições. Um grande segmento do movimento de protesto acabou por ficar excluído da Cúpula Popular. Isso deu origem a uma segunda reunião paralela, que alguns observadores descreveram como “Contra a Cúpula Popular”. As autoridades provinciais e federais exigiram que a marcha de protesto seguisse para um local a uma distância de 10 km da cidade, em vez de seguirem na direção da área do centro histórico onde estava-se realizando a Cúpula FTAA por detrás dum “perímetro de segurança” fortemente guardado”.

“Em vez de avançar para a vedação do perímetro e para o local das reuniões da Cúpula das Américas, os organizadores do desfile escolheram um percurso que se afastava da Cúpula Popular, passando por áreas residenciais quase vazias até ao parque de estacionamento de um estádio numa área isolada a alguns quilômetros de distância. Henri Masse, o presidente da Federação dos trabalhadores e trabalhadoras de Quebec (FTQ) explicou, “Lamento estarmos tão longe do centro da cidade… Mas foi por uma questão de segurança”. Um milhar de seguranças da FTQ mantiveram um controle muito apertado sobre o desfile. Quando o desfile chegou ao ponto em que alguns ativistas pretenderam dividir-se e subir a colina até à vedação, os seguranças da FTQ fizeram sinal ao contingente dos Trabalhadores Canadenses de Automóveis (CAW) que caminhavam atrás do CUPE para se sentarem e fazerem parar o desfile, a fim de os seguranças da FTQ poderem formar um cordão e impedir que houvesse quem saísse do percurso oficial do desfile”. (Katherine Dwyer, Lessons of Quebec City, International Socialist Review, junho/julho 2001)

A Cúpula das Américas efetuou-se no interior de um “bunker” de quatro quilômetros, feito com uma vedação de concreto e de aço galvanizado. A parte cercada do centro histórico da cidade, o “Muro de Quebec” de 3 metros de altura, incluía o complexo parlamentar da Assembleia Nacional, hoteis e áreas comerciais.

Líderes de ONGs versus suas bases

A instituição do Fórum Social Mundial em 2001 foi sem dúvida um marco histórico, reunindo dezenas de milhares de ativistas empenhados. Foi um acontecimento importante que permitiu a troca de idéias e o estabelecimento de laços de solidariedade.

O que está em questão é o papel ambivalente dos líderes das organizações progressistas. A sua relação estreita e bem-educada com os círculos internos do poder, com os financiamentos corporativos e governamentais, organismos de apoio, Banco Mundial, etc. corrói a sua relação e responsabilidades com as suas bases. O objetivo da dissidência fabricada é precisamente esse: distanciar os líderes das suas bases como um meio de silenciar e enfraquecer eficazmente as ações das bases.

Financiar a dissidência é também uma forma de infiltração nas ONGs, assim como de adquirir informações por dentro sobre estratégias de protesto e resistência dos movimentos de base.

A maior parte das organizações de base que participam no Fórum Social Mundial, incluindo organizações camponesas, de trabalhadores e de estudantes, firmemente empenhadas em combater o neoliberalismo não tinham conhecimento da relação do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial com o financiamento corporativo, negociado nas suas costas por um punhado de líderes de ONGs com ligações a organismos de financiamento oficiais e privados.

O financiamento a organizações progressistas não se faz sem condições. O seu objetivo é “pacificar” e manipular o movimento de protesto. Os organismos financiadores estabelecem condicionalismos minuciosos. Se não forem cumpridos, cessam os pagamentos e a ONG recebedora vai à falência por falta de fundos.

O Fórum Social Mundial define-se como “um local de encontro aberto para pensamento refletivo, debate de ideias democrático, formulação de propostas, livre troca de experiências e inter-ligação para ação eficaz, de grupos e movimentos da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e qualquer forma de imperialismo e estão empenhados na construção de uma sociedade centrada na pessoa humana”. (Ver Fórum Social Mundial, 2010).

O Fórum Social Mundial é um mosaico de iniciativas individuais que não ameaça diretamente nem contesta a legitimidade do capitalismo global e das suas instituições. Reúne-se anualmente. Caracteriza-se por uma imensidade de sessões e de grupos de trabalho. Quanto a este aspecto, uma das características do Fórum Social Mundial era manter o enquadramento “faça você mesmo”, característico

Esta estrutura aparentemente desorganizada é propositada. Embora favoreça o debate sobre uma série de tópicos individuais, a moldura do FSM não conduz a uma articulação duma plataforma comum coesiva e dum plano de ação dirigido contra o capitalismo global. Além disso, a guerra liderada pelos EUA no Oriente Médio e na Ásia Central, que rebentou poucos meses depois da reunião inaugural do FSM em Porto Alegre em janeiro de 2001, nunca foi uma questão central nas discussões do Fórum.

O que prevalece é uma vasta e intrincada rede de organizações. As organizações de base recebedoras dos países em desenvolvimento estão normalmente inconscientes de que as suas ONGs parceiras nos Estados Unidos ou na União Européia, que lhes estão fornecendo o apoio financeiro, estão elas próprias serem financiadas por importantes fundações. O dinheiro escorre, impondo constrangimentos às ações das bases. Muitos destes líderes de ONGs estão empenhados e são indivíduos bem intencionados que agem num enquadramento que estabelece os limites da dissidência. Os líderes destes movimentos são frequentemente cooptados, sem sequer perceber que, em consequência do financiamento corporativo, ficam com as mãos atadas.

O capitalismo global financia o anti-capitalismo: uma relação absurda e contraditória

“É Possível um Outro Mundo”, mas este não pode ser alcançado de forma significativa com a atual situação.

É preciso um abanão no Fórum Social Mundial, na sua estrutura organizativa, nos seus financiamentos e na sua liderança.

Não pode haver um movimento de massas significativo quando a dissidência é tão generosamente financiada pelos mesmos interesses corporativos que são o alvo desse movimento de protesto. Nas palavras de McGeorge Bundy, presidente da Fundação Ford (1966-1979), “Tudo o que a Fundação [Ford] fez pode ser considerado no âmbito de ‘tornar o mundo seguro para o capitalismo”.



O original encontra-se em: http://www.odiario.info/?p=1794
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