sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Uma viagem ao belo país de Kim Il Sung e Kim Zong Il (2)

Por Carlos Lopes

Cont.

A Fábrica Têxtil de Pyongyang é, também, um dos símbolos da resistência coreana à agressão norte-americana. Construída logo após a libertação do país da ocupação japonesa, por iniciativa de Kim Il Sung, o fundador da Coreia moderna - a quem os coreanos chamam "o grande líder" -, ela foi destruída duas vezes por bombardeios aéreos dos EUA


Na Fábrica Têxtil de Pyongyang trabalham nove mil mulheres. Pela manhã, chegavam trabalhadoras com seus filhos agasalhados, levados, confortavelmente, ao modo oriental – hoje, também aqui, popular: nas costas.

As mulheres levam os filhos pequenos para a fábrica porque eles ficam numa imensa creche, enquanto as mães trabalham. Há intervalos, na jornada, para que as mães, se quiserem - e sempre querem - vejam seus filhos, inclusive, se for o caso, os amamentem.

Curiosamente – para brasileiros que conhecem algumas poucas instituições públicas que existem em nosso país – as atendentes da creche também são mães. Há um motivo óbvio para isso: as mães percebem melhor do que qualquer um as necessidades dos bebês. Um dos poucos psicanalistas que, após Freud, tratou a psicanálise como ciência - inclusive ciência experimental -, o austríaco René Spitz, deteve-se, em um livro fascinante, "O Primeiro Ano de Vida", na relação específica entre mãe e filho (ou filha) nos estágios mais precoces do desenvolvimento. Chamou, a essa relação, "díade", um termo retirado da música, onde significa um acorde formado por duas notas musicais. Sem entrar numa discussão conceitual – aqui não é o lugar – o que ele observa é a comunicação entre a mãe (ou quem faz a função de mãe) e o bebê, o entendimento, sem linguagem verbal, que existe entre os dois, e que, nessa fase da vida da criança, só existe nessa relação. Em suma, o apoio afetivo da mãe, em especial nos primeiros seis meses, é decisivo para o conjunto da vida, inclusive para a próxima relação com o pai.

Não sei se os coreanos conhecem a obra de Spitz. Mas, se não a conhecem, de alguma forma chegaram a conclusões semelhantes: nada melhor do que mães para atenderem crianças numa creche. Pode parecer que isso é óbvio. Infelizmente, não é. Tanto assim que a motivação inicial do trabalho de Spitz foi - após a sua emigração da Europa, refugiado do nazismo – a constatação de casos de depressão por privação afetiva em bebês que estavam em creches e hospitais dos EUA (chamada, por ele, "depressão anaclítica", isto é, depressão por falta de apoio emocional).

A GUERRA

A Fábrica Têxtil de Pyongyang é, também, um dos símbolos da resistência coreana à agressão norte-americana. Construída logo após a libertação do país da ocupação japonesa, por iniciativa de Kim Il Sung, o fundador da Coreia moderna - a quem os coreanos chamam "o grande líder" -, ela foi destruída duas vezes por bombardeios aéreos dos EUA.

Nunca foi um alvo militar – a fábrica, como as daqui, produz tecidos para as roupas da população civil – e os mandantes dos bombardeios sabiam disso. Mas, como hoje é, infelizmente, notório, o alvo das agressões do establishment dos EUA está, principalmente, na população civil, o que inclui a infraestrutura econômica do país agredido. Até elaboraram uma teoria sobre o assunto, a sinistra "guerra total", segundo eles, baseada no que fizeram os generais Sherman e Grant na Guerra de Secessão.

Entretanto, Grant e Sherman estavam combatendo os escravagistas do sul dos EUA, sob a liderança do grande presidente Lincoln. O que a casta financeira norte-americana fez após a guerra hispano-americana, e, sobretudo, depois da II Guerra Mundial – nas Filipinas, na Coreia, no Vietnã, no Iraque, na Líbia - tem mais a ver com Hitler e Goering do que com os generais da guerra civil americana. Em 1933, bem antes da agressão à Coreia, e quando Hitler apenas acabava de tomar o poder, o general Smedley Butler, organizador do atual corpo de fuzileiros navais dos EUA (os, tristemente famosos, "marines"), já havia dito:

"Eu ajudei a fazer o México, especialmente Tampico, seguro para os interesses das empresas de petróleo americanas, em 1914. Eu ajudei a fazer do Haiti e de Cuba lugares decentes para que os rapazes do National City Bank arrecadassem rendimentos. Eu ajudei a estuprar meia dúzia de repúblicas da América Central em prol dos lucros de Wall Street. O registro de extorsões é grande. Eu ajudei a purificar a Nicarágua para a casa bancária internacional dos Brown Brothers (onde eu tinha ouvido esse nome antes?) em 1909-1912. Eu trouxe a luz, na República Dominicana, para os interesses dos usineiros americanos, em 1916. Na China, eu ajudei a Standard Oil a seguir o seu caminho sem ser molestada. Durante aqueles anos, eu participei de uma expansão da extorsão. Olhando para trás, sinto que poderia ter dado a Al Capone umas poucas sugestões. O melhor que ele pôde fazer foi operar suas extorsões em três distritos. Eu operei em três continentes." (ver HP, 12/01/2007 e o livro de Butler, "War Is a Racket", Round Table Press, NY, 1935).

Entretanto, é forçoso reconhecer que nada se compara às agressões norte-americanas após a II Guerra. Os píncaros do crime foram atingidos na agressão à Coreia e nas que seguiram. Só o nazismo e o imperialismo japonês são medida de comparação para o que os EUA fizeram – e continuam fazendo – depois da II Guerra. Aliás, Hitler é mais uma medida de inspiração do que de comparação. Como disse Howard Hunt, chefe de operações da CIA na Guatemala na intervenção que depôs, em 1954, o presidente Jacobo Árbenz: "o que nós queríamos fazer era uma campanha de terror, para aterrorizar Árbenz particularmente, aterrorizar suas tropas, tal como os bombardeiros Stukas alemães aterrorizaram a população da Holanda, Bélgica e Polônia no início da II Guerra" (ver HP, 12/09/2003 - Howard Hunt, entrevista ao National Security Archive).

Se na Guatemala foi assim, o leitor pode, ainda que palidamente, imaginar como foi na Coreia.

LINHA E AGULHA

Os coreanos, naturalmente, reconstruíram a Fábrica Têxtil de Pyongyang duas vezes durante a guerra. Lembrei de um ditado, repetido pelo detetive de ficção Charlie Chan, personagem de seis livros – e não sei quantos filmes e histórias em quadrinhos – do escritor (por sinal, americano) Earl Derr Biggers: "se caíres sete vezes, levanta-te oito".

Porém, depois de vencida a agressão dos EUA, havia um problema na Fábrica Têxtil de Pyongyang: para trabalhar nela, as mulheres ficavam afastadas dos maridos – ou noivos ou namorados - que estavam em outras unidades fabris, ou, frequentemente, no campo. Assim, além de outras necessidades que o leitor pode deduzir, os pais não participavam do cuidado aos filhos.

A solução foi construir, em torno da Fábrica Têxtil de Pyongyang, uma série de outras fábricas – em geral, produtoras de máquinas e equipamentos – e transferir os maridos para elas. Assim, eles poderiam (e podem) ficar perto de suas mulheres, ajudando-as, nos intervalos do trabalho, quanto aos filhos.

As coreanas (e coreanos) também têm um ditado para o que consideram a relação ideal entre maridos e mulheres. Foi uma mulher, na Fábrica Têxtil de Pyongyang, que, após relatar a decisão, tomada por Kim Il Sung, de trazer os maridos para perto das mulheres, nos repetiu, sorrindo, esse ditado: "a mulher deve seguir o marido, assim como a linha segue a agulha".

Olhei, com o canto dos olhos, para minha mulher, só para perceber a reação. Mas Sandra, que não é nada submissa (quase escrevo: "ai de mim...", mas seria muito injusto), entendera imediatamente o significado da frase.

Então, antes que alguma leitora, ciosa de sua independência, nos escreva, furiosa, esclarecemos: que ninguém pense que isso significa a submissão da mulher ao marido. Como vimos pela história da Fábrica Têxtil de Pyongyang, nesse caso quem seguiu a linha foi a agulha... Nem por isso os maridos se tornaram submissos às mulheres.

O ditado, para os coreanos de hoje, significa apenas (mas esse "apenas" é um mundo a ser conquistado) que mulheres e maridos devem ficar juntos, cuidar dos filhos juntos - de preferência, trabalharem juntos ou o mais próximo possível. O que quer dizer conscientemente juntos, pois as mulheres não são obrigadas a casarem, ou a permanecer casadas, com quem não querem.

Portanto, leitora, se você entendeu errado, o que é compreensível, pode deixar a indignação e a fúria de lado – nem tudo que parece às nossas mentes, algo viciadas pela ainda presente submissão da mulher em nosso país, é o que superficialmente parece (e a repetição do "parece", nesta frase, não é um cochilo de estilo do redator).

Um novo conteúdo às vezes se expressa por formas antigas – mas nem por isso ele deixa de ser novo.

Até porque, após seu retorno a Pyongyang - em 1945, quando a Coreia se libertou do Japão - a primeira lei assinada por Kim Il Sung foi a "Lei da Igualdade entre Homens e Mulheres", antes mesmo da lei de reforma agrária.

Para os brasileiros, que assistem aos avanços da condição feminina desde 1934, quando o presidente Getúlio regulamentou o direito de voto das mulheres, é difícil aquilatar o significado revolucionário da primeira lei de Kim Il Sung (se bem que, no Brasil, o ambiente antes de 1930 era tão atrasado que nosso maior poeta do século XX, Carlos Drummond de Andrade, escreveu, em 1928, ironizando o escândalo, quando uma mulher conseguiu uma decisão judicial para votar e ser votada: "Mulher votando?/ Mulher, quem sabe, Chefe da Nação?/ O escândalo abafa a Mantiqueira,/ faz tremerem os trilhos da Central/ e acende no Bairro dos Funcionários,/ melhor: na cidade inteira funcionária,/ a suspeita de que Minas endoidece,/ já endoideceu: o mundo acaba").

Na Coreia, como lembra Kim Il Sung em suas memórias ("No Transcurso do Século"), a situação da mulher era feudal. A vida para elas era tão difícil, tão árdua, diz ele, que algumas aderiam a religiões ocidentais apenas para evadir-se um pouco da vida cotidiana durante o culto.

Isso, no melhor dos casos: aqueles em que não eram tornadas escravas sexuais pelo ocupantes japoneses – em 35 anos, da anexação pelo Japão à libertação, 200 mil coreanas foram forçadas a essa condição, um crime que o Estado japonês ainda resiste a reconhecer plenamente, apesar de, além dos depoimentos de milhares de vítimas, além da condenação pelos tribunais do pós-guerra, montanhas de documentos terem sido descobertos por historiadores do próprio Japão, demonstrando que isso era uma política oficial.

ANEXAÇÃO

Existem poucas ocupações mais infames – se é que existe alguma – do que a da Coreia pelo Japão, iniciada em 1894 e acelerada em 1905, após o aval explícito dos EUA, através do acordo secreto Taft-Katsura (em troca do reconhecimento à anexação das Filipinas, o secretário da Guerra dos EUA, depois presidente, William Howard Taft, comprometeu-se com o primeiro-ministro japonês, Katsura Taro, a reconhecer a suserania do Japão sobre a Coreia – as notas da conversação vieram a público 19 anos depois, em 1924, quando a Coreia já fora anexada pelo Japão).

É impossível compreender razoavelmente a Coreia, e o povo coreano, sem conhecer um pouco da sua História. Por isso, aqui nos estenderemos (não muito) sobre esse tema.

Em 1905, o imperador coreano e seu primeiro-ministro recusaram-se a aceitar a condição de vassalagem da Coreia em relação ao Japão. A aceitação, totalmente ilegal, foi assinada - com o primeiro-ministro preso pelos japoneses - por cinco ministros sem autoridade para tal, conhecidos na História da Coreia como "os cinco ministros traidores".

O imperador, recusando-se a ratificar, apelou para a China e para os chefes de Estado ocidentais, e, depois, para a Conferência de Haia, em 1907 – mas a Coreia foi proibida de participar em Haia e o imperador foi deposto pelos japoneses, o que levantou vários setores nacionalistas contra a ocupação. No exterior, os três emissários coreanos, impedidos de entrar na Conferência, fizeram o possível para denunciar a situação do país.

O imperialismo japonês derrotara a China, então sob a decadente dinastia manchu, em 1895, e a Rússia, sob a decadente dinastia czarista, em 1904-1907. As potências ocidentais tornaram-se cúmplices na destruição do Estado da Coreia. Os coreanos aprendiam, dolorosamente, que sua liberdade dependia, antes de tudo, de suas próprias forças – ou não haveria liberdade.

Não foi a primeira lição, nem foi só isso (!) o que eles aprenderam: a entrada das tropas japonesas na Coreia, em 1894, teve como pretexto o apelo dos feudais coreanos, derrotados no início daquele ano pelo exército guerrilheiro da revolução camponesa "Donghak", aos manchus da China para que esmagassem a revolta.

Donghak era uma religião coreana da segunda metade do século XIX que pregava "a igualdade de todos os seres humanos". O programa de sua revolução assemelha-se, em aspectos fundamentais, mais no conteúdo do que na forma, ao Plano de Ayala, escrito por Zapata para a revolução mexicana.

O Japão aproveitou-se da presença de tropas manchus na Coreia para romper a Convenção de Tientsin, estabelecida com a China em 1885, que proibia a intervenção militar, tanto japonesa quanto chinesa, na Península, exceto se a outra parte fosse notificada antecipadamente (o que a dinastia manchu fez, mas o Império do Japão passou por cima desse detalhe).

Depois da declaração de guerra do Japão à China, o bem armado exército japonês massacrou os camponeses coreanos, que só dispunham de lanças, espadas, arcos-e-flechas e alguns velhos bacamartes.

Daí por diante, há uma coleção inumerável de desmandos, ultrajes e crimes dos imperialistas japoneses na Coreia. No ano seguinte, 1895, a imperatriz coreana, Myeongseong, adversária da ingerência japonesa, foi assassinada a mando do embaixador do Japão – os assassinos, que invadiram o palácio e chacinaram os guardas, eram agentes japoneses.

Evidentemente, o embaixador - um visconde e general nipônico - não cometera o crime sem o sinal verde, ou a ordem, de Tóquio. O escândalo internacional, mesmo naquela época, foi tão grande que o governo japonês resolveu encenar uma farsa: um julgamento do seu embaixador na Coreia, em que este confessou a ideia e a organização do assassinato, mas argumentou que não se tratava de um crime, pois seu objetivo era a "supremacia" do Japão na Coreia. O réu foi absolvido "por insuficiência de provas".

No entanto, a política de Myeongseong – e de seu marido, o imperador Gojong – era colocar-se sob o abrigo da Rússia czarista para se opor ao Japão. Certamente, depender de outros para ser independente é a maneira mais segura de não ser independente. Gojong asilou-se na embaixada russa depois do assassinato da esposa, só voltando ao palácio em 1897, sob proteção de tropas czaristas. Depois da derrota russa na guerra com o Japão – logo no início, 1904, após o desembarque do exército japonês, as tropas czaristas foram expulsas da Coreia - essa política tornou-se insustentável. Em seguida, o Japão impôs sua suserania sobre a Coreia.

No entanto, a resistência coreana não cessou. Além dos levantamentos contra a ocupação, em 1909, o "Residente-Geral da Coreia" (uma espécie de vice-rei japonês) foi executado pelo patriota coreano An Jung Gun, homem notavelmente culto e consciente.

Prisioneiro dos japoneses, An Jung Gun fez estremecer os algozes ao defender o seu ato no tribunal-farsa a que foi submetido – o que talvez explique porque ele foi "julgado" nada menos do que seis vezes. An Jung Gun exigiu que fosse tratado como prisioneiro de guerra e comandante do exército de resistência coreano, e listou os crimes do "Residente-Geral" (um dos principais políticos da casta feudal-monopolista japonesa, quatro vezes primeiro-ministro, inclusive na época do assassinato de Myeongseong), entre eles: o assassinato da imperatriz coreana; a deposição do imperador coreano; o massacre de civis coreanos; a pilhagem de ferrovias, jazidas, florestas e rios coreanos; a imposição ao país da moeda japonesa; o impedimento da educação aos coreanos, com o confisco e queima dos seus livros didáticos.

Pouco antes de seu martírio na forca, An Jung Gun disse uma frase que repercutiria por toda a História coreana posterior: "Eu tenho a felicidade de oferecer a minha vida por meu país, assim é o comportamento de um patriota com espírito nobre". Mas, talvez, nada seja mais significativo do ambiente que a ocupação japonesa provocou na Coreia, e do caráter do povo desse país já naquela época, do que a mensagem da mãe de An Jung Gun, recebida pelo filho momentos antes de passar à eternidade: "Sua morte é por amor ao nosso país, e eu não peço covardemente por sua vida. Sua valente morte lutando pela justiça é para mim o último carinho de um filho por sua mãe".

An Jung Gun era católico – e, como nós chamamos, católico praticante. Apesar disso, por submissão aos japoneses, o então bispo da Coreia proibiu que se lhe administrasse a extrema-unção. Mas os sacerdotes menos graduados recusaram-se a obedecer – e An Jung Gun recebeu o sacramento.

Assim, em 1910, foi debaixo de ferro, fogo, e sangue aos borbotões, que o Japão anexou a Coreia – o imperador Gojong, deposto desde 1907, foi mantido em prisão domiciliar até sua morte, em 1919, por envenenamento. Seu funeral provocou outros levantamentos, em toda a Coreia, contra a opressão japonesa.

Continua na próxima edição

http://www.horadopovo.com.br/2011/12Dez/3016-07-12-2011/P8/pag8a.htm

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