17 de agosto de 2010
Por Isabel Loureiro
Presidente do Instituto Rosa Luxemburg,
mestre e doutora em Filosofia pela USP
Desde que foi fundado em 1984, o MST nunca teve a vida fácil. Logo, não é novidade a atual campanha difamatória dos meios de comunicação e do Judiciário, procurando desmoralizar o movimento. O público leigo, perdido num emaranhado de informações desencontradas, de simplificações grosseiras e preconceituosas, não consegue formar uma imagem minimamente coerente do MST. Mas para o estudioso do tema também não são pequenas as dificuldades, embora de origem diferente. Por um lado, dados frequentemente pouco confiáveis, por outro, o caráter dinâmico e flexível do MST, dificultam a análise objetiva do maior e mais importante movimento social da América Latina nos últimos 25 anos.
Por isso é digna de aplauso a iniciativa da Editora Unesp de publicar esta coletânea organizada por Miguel Carter*, reunindo estudos produzidos para uma conferência internacional no Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford, em 2003, e revistos até 2007, com a finalidade de investigar a desigualdade no campo, suas origens, consequências e reações atuais a essa situação. O maior mérito da obra, além de outros que comentaremos a seguir, consiste não só em sistematizar a vasta literatura existente sobre o tema, mas também, a partir de um levantamento empírico meticuloso, organizar com extremo rigor dados esparsos, provenientes de diversas fontes, sobretudo oficiais, a respeito da questão agrária e do MST no Brasil.
O livro divide-se em quatro partes, além de uma Introdução e uma Conclusão do organizador em que procura organizar as contribuições dos vários autores (Brasil, Inglaterra, Estados Unidos, México, Argentina e Paraguai), especialistas em questão agrária e movimentos sociais, a partir da tese, amplamente demonstrada nos 18 artigos, de que o MST, contrariamente ao que afirmam seus detratores, contribui para o fortalecimento da democracia no Brasil. A primeira parte da coletânea trata dos antecedentes históricos do MST, a segunda da luta pela terra (acampamentos), a terceira da luta na terra (assentamentos), a quarta das relações entre o MST, a política e a sociedade no Brasil.
O tema da desigualdade é introduzido, de maneira muito pertinente, a partir da comparação entre dois eventos contrastantes ocorridos no primeiro semestre de 2005: a Marcha do MST, em que durante 16 dias, 12 mil trabalhadores rurais percorreram mais de 200 quilômetros de cerrado até chegar a Brasília, e a inauguração da Daslu, “a maior loja de departamentos de produtos de luxo do planeta” (p.35), com a presença do governador e do prefeito de São Paulo.
A Marcha, cujo objetivo era pressionar o governo Lula a favor da reforma agrária, apoiada numa logística sofisticada e em recursos provenientes de várias fontes (assentamentos, organizações religiosas, governos estaduais e municipais, simpatizantes dentro e fora do Brasil) transcorreu num clima de harmonia e tranquilidade. Contudo, a mídia que dela pouco falou, e só para denegri-la, tratou de maneira benevolente a dona da Daslu, presa pela polícia federal em julho de 2005, acusada de sonegar impostos (24 milhões de reais em 10 meses). Carter considera essas duas cenas contrastantes emblemáticas do Brasil do começo do século XXI, assim como o tratamento dado a cada uma delas pela grande imprensa. Enquanto os principais noticiários televisivos julgavam como um ato de corrupção política o gasto da Marcha de 300 mil reais com água e alimentação, os 24 milhões sonegados pela Daslu eram perdoados.
E conclui com os dados chocantes – e bem conhecidos – sobre a desigualdade no Brasil. Segundo um relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 2005, os 10% mais ricos da população detêm 46% da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres apenas 13%. Somente alguns países africanos muito pobres têm desigualdade maior que o Brasil. No campo a situação é ainda pior. 1% dos proprietários rurais controla 45% das terras cultiváveis, enquanto 37% possuem apenas 1% da mesma área. “Sem dúvida, o Brasil é uma das nações com a maior concentração de terra do mundo. A atual estrutura agrária tem raízes profundas na história do país. Ela foi forjada durante o período colonial, com a concessão de extensas sesmarias a famílias portuguesas privilegiadas e a instituição de um regime de trabalho baseado na escravidão. A acentuada assimetria fundiária foi mantida posteriormente sob diferentes sistemas políticos: império, república oligárquica, governo militar e democracia política.” (p.36)
Carter tem razão quando afirma existir um vínculo profundo entre os dois mundos – a pobreza iníqua é o reverso da riqueza obscena. É essa situação tão absurdamente injusta que faz que o MST não seja apenas um movimento restrito à reforma agrária, mas que “desafia as desigualdades seculares do Brasil.” (p.37)
Num apanhado rápido dos vários tipos de reforma agrária no mundo no século XX, e pior, numa comparação entre o Brasil e a América Latina, o Brasil fica em último lugar nesse quesito. Carter mostra, com grande riqueza de dados, que os países em desenvolvimento que fizeram reforma agrária têm menos desigualdade social. Já no Brasil a também desigual distribuição do poder – uma super-representação dos interesses dos grandes proprietários rurais e uma subrepresentação dos sem-terra – impede a reforma agrária e outras políticas de redistribuição de renda.
Em resumo, a luta pela terra e na terra precisa ser compreendida nesse contexto em que prevalecem, desde a colônia, relações de extrema desigualdade que impedem uma reforma agrária progressista. É isso que explica em grande parte a força, a fraqueza e os limites do MST.
A luta pela terra
A luta por reforma agrária no Brasil aparece sob dois aspectos: primeiro, pela ocupação de terras, ainda a principal forma de acesso à terra. Há unanimidade entre os autores a respeito da relação estreita entre ocupação e desapropriação de terras no Brasil (85% dos assentamentos foram resultado de ocupações). E segundo, pela atuação dos movimentos camponeses (de 2000 a 2006 foram contabilizados 86 movimentos camponeses) para pressionar o Estado a adotar políticas de crédito, educação, moradia, saúde, etc. A resposta do Estado a essas reivindicações tem sido, de 1985 até hoje, a adoção de uma “reforma agrária conservadora” (p.290): repartição de terras sob pressão social; tempo muito longo (em média 4 anos) para a desapropriação do imóvel ocupado; violação dos direitos humanos: os assassinatos no campo ficam impunes na grande maioria [1]; distribuição residual de terras; pequeno apoio aos assentamentos (p.291-2).
Aliás, Plínio de Arruda Sampaio considera que a questão agrária só entrou de fato na agenda política em 1995, no governo FHC, depois dos massacres de Corumbiara (Rondônia) e Eldorado de Carajás (p.401). Foi quando o MST conseguiu amplo apoio para a causa da reforma agrária, que desde então continua, sem avanços significativos, na agenda política.
Vários artigos, ao recuperarem o contexto no qual nasceu o MST, mostram como o atual modelo de desenvolvimento agrário do Brasil, fundado no agronegócio e na proteção da grande propriedade fundiária, foi desenvolvido e financiado pelo regime militar, mantendo-se assim desde então, apesar da democratização do regime político, das leis a favor da reforma agrária e da demanda popular por terra (p.514).
Entre os vários artigos que refazem a história do MST, o de Bernardo Mançano Fernandes é particularmente elucidativo. Numa excelente síntese do processo de formação, consolidação e institucionalização do MST, o autor mostra como o movimento foi se estruturando de maneira realista e pragmática em resposta às políticas mais, ou menos, repressivas, mais, ou menos, simpáticas à causa da reforma agrária, por parte do governo federal.
Com a eleição de Lula, o MST tinha a esperança de que seu aliado histórico finalmente realizasse uma reforma agrária digna do nome. Apesar de o governo Lula ter superado o de FHC em número de famílias assentadas por ano (p.191), Mançano lembra que grande parte da área incorporada à reforma agrária “são terras de florestas nacionais e reservas extrativistas localizadas na Amazônia” (p.191); além disso, uma parte das famílias foi assentada em assentamentos já existentes ou implantados em terras públicas (p.192).
Os dados são inquestionáveis mostrando que não só não houve vontade política para diminuir a concentração da propriedade da terra, como foi explícita a opção pelo agronegócio. Tanto que o plano de reforma agrária encomendado a Plínio de Arruda Sampaio em 2003, concebido como uma política de transformação profunda da estrutura fundiária do país, foi adotado numa versão diluída, sob a alegação de não ser realista. (p.190)
Todos os autores enfatizam que a partir do começo dos anos 1990 mudou o eixo da questão agrária no Brasil, tendo o agronegócio passado a ser o principal obstáculo à reforma agrária e à agricultura camponesa, e não mais o latifúndio improdutivo. O agronegócio, num jogo de cartas marcadas – basta lembrar a não atualização dos índices de produtividade para efeito de desapropriação de terras – continua sendo fortemente subsidiado: durante o governo Lula, obteve sete vezes mais recursos que a agricultura familiar, responsável por 87% dos empregos no campo.
Tudo leva a pensar que é o poder do agronegócio e das transnacionais que está por trás da campanha difamatória contra o MST e seus métodos de democratização da propriedade rural (ocupações de terra, de prédios públicos, ações contra a Monsanto e a Aracruz Celulose, devido aos transgênicos e às plantações de eucaliptos) por parte da grande mídia, do Judiciário e de intelectuais conservadores, que veem a solução do problema agrário na modernização tecnológica, sem distribuição de terras. O movimento é classificado por eles como anacrônico e retrógrado, a reforma agrária como obsoleta, os assentamentos descritos como favelas rurais.
Contra as caricaturas do movimento como “fundamentalista”, “terrorista”, “ameaça perigosa”, “irracional”, Carter mostra que o MST, como associação de pessoas pobres, é um movimento que adota uma prática racional de enfrentamento da questão agrária e contribui, por várias razões, para o fortalecimento da democracia no Brasil: combate as enormes disparidades sociais; organiza e incorpora setores marginalizados da população; desenvolve o exercício da cidadania entre os pobres nas três dimensões contemporâneas dessa ideia: direitos civis, políticos e sociais; exerce o “ativismo público”, isto é, utiliza a pressão popular para negociar com o governo; defende ideais utópicos, em aberto, que fazem avançar a democracia.
Na situação de extrema desigualdade que caracteriza o Brasil, em que a paralisia patrimonialista e oligárquica contamina todas as forças, até mesmo as progressistas, só com pressão social um movimento de pessoas pobres pode chamar a atenção da sociedade e ter acesso aos fundos públicos, já que não tem representação no Congresso, nem influência na grande mídia. Segundo Carter, o que explica a força e a originalidade do MST – não por acaso ele é o movimento social mais longevo da América Latina – é sua “capacidade de sustentar e equilibrar a firmeza de seus ideais com a busca de soluções práticas para atender seus problemas quotidianos.” (p.231)
A luta na terra
A parte do livro que trata dos assentamentos é a mais interessante. Artigos baseados em minuciosas pesquisas de campo expõem com franqueza os problemas enfrentados pelos trabalhadores rurais após terem tido acesso à terra. O primeiro refere-se à heterogeneidade dos assentamentos, que variam em tamanho, lugar, origem cultural dos assentados, qualidade da terra. Outro problema é o baixo nível de instrução dos assentados, em sua grande maioria provenientes do meio rural: 1/3 não foi à escola; 87% só chegaram à quarta série. E, por fim, um obstáculo cultural muito poderoso: o mandonismo, clientelismo, machismo e racismo característicos do meio rural contaminam os assentamentos. Quem acompanha a vida do MST sabe desse problema e como ele é tenazmente combatido nos cursos de formação política.
O livro deixa claro que os casos concretos de fracasso nos assentamentos devem levar em conta o contexto. Ou seja, não podemos esquecer as dificuldades na obtenção de crédito, a localização dos assentamentos em regiões inacessíveis, longe dos mercados e serviços públicos. No entanto, apesar de toda a precariedade, os dados mostram também que, graças aos assentamentos, entre 1985-2006, mais de 5 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza conseguiram moradia, renda e alimentação; que o êxodo rural diminuiu; que o aumento do poder aquisitivo dos assentados contribuiu para fortalecer o comércio local; que a mobilização pela terra criou novas demandas: educação, saúde, cultura; que as novas lideranças assim criadas introduziram mudanças políticas nos municípios; e, por fim, um argumento pragmático: a criação de um posto de trabalho gerado pela reforma agrária é muito mais barata que na indústria, comércio ou serviços (p.302).
Os desafios colocados pela vida nos assentamentos levaram à ampliação dos horizontes do MST, que passou a incluir novos temas na sua agenda a fim de complementar a análise de classe: gênero, ecologia, direitos humanos, saúde, diversidade cultural, soberania alimentar, soberania nacional, solidariedade internacional (p.308). Essa flexibilidade do movimento, que se formou e se constrói na luta, é sem dúvida uma das razões do seu sucesso. Mas o que distingue o MST de outros movimentos camponeses passados e presentes é o enorme investimento na educação, qualificação e formação política de seus integrantes. Um número apenas: de 1988 a 2002 o setor de formação ministrou cursos e oficinas para mais de 100 mil militantes. (p.320)
Todos os autores, mesmo reconhecendo que o MST não é uma “sociedade de anjos”, concordam que ele é um fator civilizador na sociedade brasileira. Por exemplo, na medida em que recorre à justiça (que no caso brasileiro é profundamente injusta, burocrática e permeada por preconceitos de classe), ele contribui para democratizá-la. Como mostra George Meszaros, foi o que ocorreu em 1996, quando o Superior Tribunal de Justiça determinou que as ocupações de terra com o fim de acelerar a reforma agrária são “substancialmente distintas” de atos criminosos contra a propriedade. Com isso, contribui para o debate sobre a interpretação das leis existentes.
Mas sobretudo, a esperança – e é preciso reconhecer que ela tem sólidos fundamentos – que desponta em alguns dos artigos é que a crescente preocupação com os problemas ecológicos do planeta talvez possa fazer com que em breve o agronegócio, baseado num modelo produtivo industrial de alto custo ambiental (uso de transgênicos e agrotóxicos), se torne uma prática arcaica.
Nessa perspectiva, o MST exerce um papel crucial na sociedade brasileira porque, além de manter a reforma agrária na ordem do dia, contribui para difundir valores não-capitalistas no meio rural, sobretudo com uma concepção de produção camponesa em que a terra é usada para viver, e não para negociar. Com isso, ajuda a reconstituir a identidade cultural de populações tradicionais, cujos modos de vida foram destruídos pela modernização capitalista, que acarretou dificuldades quase insuperáveis para a agricultura camponesa, obrigando os pequenos camponeses a virarem trabalhadores assalariados.
E o mais fundamental, o MST insere a luta camponesa num projeto amplo de transformação econômica, social e política do país e numa disputa a respeito do modelo de civilização: ou a continuação do sistema de produção e consumo capitalista, baseado na lógica do progresso e do crescimento sem limites, levando ao esgotamento dos recursos do planeta, ou um sistema socialista, assentado em relações fraternas, justiça social e na ideia de uma vida harmoniosamente minimalista, em equilíbrio com a natureza.
Notas:
[*] Miguel Carter (org.), São Paulo: Editora Unesp, Centre for Brazilian Studies, Universidade de Oxford, NEAD, MDA, 2010, 563 p.
[1] Segundo dados recentes do próprio MST, dos 1.600 assassinatos de trabalhadores e lideranças no campo de 1985 até hoje, apenas 80 têm processos judiciais, 16 responsáveis foram condenados e apenas 8 estão presos. Cf. MST informa, no 182, 23/04/2010.
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