sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A guerra à democracia dos Estados Unidos e Inglaterra

No dia 5 de Janeiro, num discurso extraordinário no Pentágono, Obama disse que os militares estariam não só prontos para "proteger território e populações" além mar, como para lutar "na sua terra" e fornecer "apoio às autoridades civis". Por outras palavras, as tropas dos Estados Unidos serão redistribuídas pelas ruas de cidades americanas quando o desassossego civil inevitável as tomar. Corolário histórico de um estado de guerra perpétuo, isto não é fascismo, ainda não, mas tão pouco é democracia sob qualquer forma reconhecível, apesar da política de placebo que consumirá as notícias até novembro. A mesma sombra se estende pela Grã-Bretanha e muito da Europa, onde a democracia social, um artigo de fé duas gerações atrás, caiu em favor dos ditadores dos bancos centrais



Por John Pilger*


Lisette Talate morreu outro dia. Lembro-me de uma mulher rija, tremendamente inteligente, que mascarava a sua dor com uma determinação que marcava presença. Ela incorporava a resistência popular à guerra contra a democracia. Entrevi-a pela primeira vez nos anos 50, num filme do departamento colonial sobre os ilhéus Chagos, uma nação crioula muito pequena localizada no Oceano Índico, a meio caminho entre a África e a Ásia.

A câmera garimpou através de aldeias prósperas, uma igreja, uma escola, um hospital, no meio de um fenômeno de beleza natural e paz. Lisette lembra-se do produtor dizer a ela e às suas amigas adolescentes: "continuem a sorrir meninas!".

Sentada na sua cozinha em Maurícia, muitos anos depois, disse: "não era preciso dizerem-me para sorrir. Era uma criança feliz porque as minhas raízes estavam no fundo das ilhas, o meu paraíso. A minha bisavó tinha nascido lá; fiz seis filhos lá. Por isso é que eles não podiam atirar-nos legalmente para fora das nossas próprias casas; tiveram de aterrorizar-nos para nos fazer partir ou arrancar-nos à força. Primeiro tentaram fazer-nos passar fome. Os barcos com comida deixaram de chegar [depois] eles espalharam rumores de que íamos ser bombardeados, depois chegou a vez dos nossos cães".

No início dos anos 1960, o governo trabalhista de Harold Wilson aceitou secretamente uma exigência de Washington de que o arquipélago de Chagos, uma colônia britânica, fosse "varrido" e "higienizado" dos seus 2.500 habitantes para que uma base militar pudesse ser construída na ilha principal, Diego Garcia. "Eles sabiam que éramos inseparáveis dos nossos animais de estimação", disse Lisette, e "quando os soldados americanos chegaram para construir a base, encostaram a traseira dos seus grandes caminhões contra o abrigo de tijolo onde preparávamos os cocos; centenas dos nossos cães tinham sido reunidos e presos aí. Então lançaram os gases dos tubos de escape dos caminhões. Nós conseguíamos ouvi-los ladrar".

Lisette e a sua família, e centenas de ilhéus, foram empurrados para dentro de um vapor enferrujado com destino à [ilha] Maurícia, a uma distância de 2.500 milhas. Foram obrigados a dormir no porão sobre um carregamento de fertilizante: cocô de pássaro. O tempo estava ruim; todo mundo estava doente; duas mulheres abortaram. Despejados nas docas de Port Louis, os filhos mais novos de Lisette, Jollice e Regis, morreram, uma semana após o outro. "Morreram de tristeza", disse ela. "Tinham ouvido toda a conversa e visto o horror do que tinha acontecido aos cachorros. Sabiam que estavam deixando a sua casa para sempre. O médico, em Maurícia, disse que não conseguia tratar a tristeza".

Este ato de rapto em massa foi executado em alto segredo. No arquivo oficial, sob o título "Mantendo a ficção," o conselheiro legal do Ministério das Relações Exteriores [Foreign Office] exorta os seus colegas a encobrir as suas ações, "reclassificando" a população como "flutuante" e "fazendo as regras à medida que avançavam." Que a Inglaterra tenha cometido tal crime - em troca de um desconto de US$ 14 milhões no preço de um submarino nuclear americano Polaris - não constava da agenda de um grupo de correspondentes britânicos "da defesa", enviados de avião para Chagos pelo Ministério da Defesa, quando a base dos EUA ficou concluída. "Não há nada nos nossos arquivos", disse um funcionário do Ministério, "sobre habitantes ou sobre uma evacuação".

Hoje, Diego Garcia é crucial para a guerra dos EUA e da Inglaterra contra a democracia. O bombardeio mais violento do Iraque e do Afeganistão foi desencadeado a partir das suas vastas pistas, além das quais o cemitério e a igreja, abandonados depois que os ilhéus foram expulsos, se erguem como ruínas arqueológicas. O jardim com terraço onde Lisette riu para a câmera é agora uma fortaleza que aloja as bombas "rebenta-bunkers", transportadas pelo avião B-2, em forma de morcego, em direção a objetivos de dois continentes; um ataque ao Irã começará aqui. Como para rematar este emblema de poder desenfreado, criminoso, a CIA acrescentou uma prisão ao estilo de Guantánamo para a "entrega" das suas vítimas e chamou-lhe Camp Justice [Campo da Justiça].

O que foi feito ao paraíso de Lisette tem um significado urgente e universal, já que representa a natureza violenta, cruel de todo um sistema por trás de uma fachada democrática e a escala da nossa própria doutrinação aos seus pressupostos messiânicos, descritos por Harold Pinter como "um ato de hipnose brilhante, engenhoso mesmo, altamente bem sucedido". Mais longa e mais sangrenta do que qualquer guerra desde 1945, empreendida com armas demoníacas, um gangsterismo travestido de política econômica e por vezes conhecido como globalização, a guerra à democracia é mantida, sem menção em círculos da elite ocidental. Tal como Pinter escreveu, "nunca aconteceu, mesmo enquanto estava acontecendo". Em julho passado, o historiador americano William Blum publicou o seu "sumário atualizado da história da política externa dos Estados Unidos". Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA têm:

- Tentado derrubar mais de 50 governos, a maior parte deles democraticamente eleitos.

- Tentado suprimir movimentos populistas ou nacionais em 20 países.

- Interferido grosseiramente em eleições democráticas em pelo menos 30 países.

- Atirado bombas sobre povos de mais de 30 países.

- Tentado assassinar mais de 50 líderes estrangeiros.

No total, os EUA levaram a cabo uma ou várias dessas ações em 69 países. Em quase todos os casos a Inglaterra foi colaboradora. O "inimigo" muda de nome - de comunismo para islamismo - mas ele é acima de tudo a ascensão da democracia independente do poder ocidental ou uma sociedade que ocupa território estrategicamente útil, considerada dispensável, como as Ilhas Chagos.

A simples escala do sofrimento, sem falar na criminalidade, é pouco conhecida no Ocidente, apesar da presença das comunicações mais avançadas do mundo, do jornalismo nominalmente mais livre e do mundo acadêmico mais admirado. É inenarrável que as vítimas mais numerosas do terrorismo - o terrorismo ocidental - sejam muçulmanas, se isso for conhecido. Que 500 mil crianças iraquianas morrerem nos anos 1990, em consequência do embargo imposto pela Inglaterra e pelos Estados Unidos, não tem qualquer interesse. Que o jihadismo extremista, que levou ao 11 de setembro, foi alimentado como uma arma da política ocidental ("Operação Ciclone") é coisa conhecida de especialistas, mas, exceto isso, apagada.

Enquanto a cultura popular na Inglaterra e nos Estados Unidos imerge a Segunda Guerra Mundial num banho ético para os vencedores, o holocausto resultante da dominação anglo-americana sobre regiões ricas em recursos é entregue ao esquecimento. Sob o regime do tirano indonésio Suharto, ungido como "o nosso homem" por Thatcher, mais de um milhão de pessoas foram assassinadas. Descrito pela CIA como "o pior assassinato em massa da segunda metade do séc. 20", a estimativa não inclui um terço da população do Timor-Leste, que foi morta de fome ou assassinada com a conivência ocidental por bombardeiros e metralhadoras britânicas.

Estas histórias verdadeiras são contadas em registros do Public Record Office, tornados públicos, mas representam uma dimensão interna da política e do exercício do poder excluída da apreciação pública. Isto foi conseguido através de um regime não-coercivo de controle de informação, desde o mantra evangélico da publicidade para o consumidor até aos sound bites das notícias da BBC e, agora, das notícias de interesse passageiro dos meios de comunicação.

É como se os escritores, enquanto jornalistas de denúncia, estivessem extintos, ou servos de um zeitgeist sociopata, convencidos de que são demasiado inteligentes para serem enganados. Presenciem o estampido de bajuladores ansiosos por deificar Christopher Hitchens, um adorador da guerra que ansiava poder justificar os crimes de um poder ávido. "Quase pela primeira vez em dois séculos", escreveu Terry Eagleton, "que não há nenhum poeta britânico eminente, dramaturgo ou romancista preparado para interrogar os fundamentos do modo de vida ocidental". Nenhum Orwell avisa que não temos de viver numa sociedade totalitária para sermos corrompidos pelo totalitarismo. Nenhum Shelley fala em nome dos pobres; nenhum Blake profere uma visão; nenhum Wilde nos lembra que "a desobediência, aos olhos de alguém que leu a história, é a virtude original do homem". E, dolorosamente, nenhum Pinter se enfurece com a máquina de guerra, como em "Futebol Americano":

Aleluia.

Louvem o Senhor por todas as coisas boas.../ Rebentámos-lhes os tomates em estilhaços de pó,/ Em estilhaços de pó dum raio...

[Hallelujah.

Praise the Lord for all good things .../ We blew their balls into shards of dust,/ Into shards of fucking dust…] (Nota da Redação: Trecho do poema de Harold Pinter cujo subtítulo é Uma reflexão sobre a guerra do golfo).

A estilhaços de pó dum raio vão foram parar todas as vidas atiradas por Barack Obama, o Hopey Changeyiii da violência ocidental. Sempre que um dos drones de Obama limpa uma família inteira numa região tribal distante do Paquistão, ou da Somália, ou do Iêmen, os controladores americanos à frente das suas telas tipo jogo de computador escrevem "Bugsplat"iv. Obama gosta de drones e gracejou sobre eles com jornalistas. Uma das suas primeiras ações como presidente foi ordenar uma vaga de ataques de drones Predator no Paquistão o qual matou 74 pessoas. Desde então matou milhares, na maior parte civis; os drones disparam mísseis Hellfire que sugam o ar dos pulmões das crianças e deixam partes de corpos a engrinaldar a vegetação rasteira.

Lembram-se dos títulos de notícias manchados de lágrimas quando o "Marca" Obama foi eleito: "importantíssimo, de fazer arrepiar a espinha": The Guardian, Reino Unido. "O futuro americano," escreveu Simon Schama, "é todo ele visão, sublime, informe, espírito leve..." O colunista do jornal San Francisco Chronicle viu um espiritual "ser com luz interior e apaziguador [que pode ser] portador de um novo modo de estar no planeta." Além do disparate, como o grande whistleblowerv Daniel Ellsberg tinha predito, um golpe militar decorria em Washington e Obama foi o seu homem. Tendo seduzido o movimento anti-guerra para um silêncio virtual, tem dado poderes de Estado e de compromisso sem precedentes à classe de oficiais militares corruptos da América. O que inclui a perspectiva de guerras na África e oportunidades de provocações contra a China, o maior credor dos Estados Unidos e o novo "inimigo" na Ásia. Sob Obama, a velha fonte da paranoia oficial, a Rússia, foi cercada com mísseis balísticos e a oposição russa infiltrada. Equipes de assassinos militares e da CIA foram enviadas em missão para 120 países; ataques há muito planejados na Síria e no Irã incitam a uma guerra mundial. Israel, o exemplar de violência e ilegalidade dos Estados Unidos por procuração, acaba de receber o seu dinheiro de bolso anual de 3 bilhões de dólares em conjunto com a permissão de Obama para roubar mais terra palestina.

O feito mais "histórico" de Obama é trazer a guerra contra a democracia para dentro de casa nos Estados Unidos da América. Na véspera do Ano Novo assinou a lei de Autorização de Defesa Nacional (NDAA , na sigla em inglês), uma lei que concede ao Pentágono o direito legal de raptar tanto estrangeiros como cidadãos dos EUA e de os deter indefinidamente, interrogar e torturar, ou até matar. Só precisam de se "associar" com os "beligerantes" em relação aos Estados Unidos. Não haverá nenhuma proteção da lei, nenhum julgamento, nenhuma representação legal. Isto é a primeira legislação explícita a abolir o habeas corpus (o direito ao devido processo da lei) e efetivamente revogar a Lei dos Direitos de 1789.

No dia 5 de Janeiro, num discurso extraordinário no Pentágono, Obama disse que os militares estariam não só prontos para "proteger território e populações" além mar, como para lutar "na sua terra" e fornecer "apoio às autoridades civis". Por outras palavras, as tropas dos Estados Unidos serão redistribuídas pelas ruas de cidades americanas quando o desassossego civil inevitável as tomar.

Os Estados Unidos são agora uma terra de pobreza epidêmica e prisões selvagens: a consequência de um extremismo "de mercado" que, sob Obama, incitou a transferência de 14 trilhões de dólares de dinheiro público a empresas criminosas em Wall Street. As vítimas são na maioria pessoas jovens desempregadas, sem abrigo, afro-americanos encarcerados, traídos pelo primeiro presidente negro.

Corolário histórico de um estado de guerra perpétuo, isto não é fascismo, ainda não, mas tão pouco é democracia sob qualquer forma reconhecível, apesar da política de placebo que consumirá as notícias até novembro. A campanha presidencial, diz The Washington Post, "apresentará um choque de filosofias enraizadas em visões distintamente diferentes da economia". Isto é evidentemente falso. A tarefa circunscrita do jornalismo dos dois lados do Atlântico é criar a pretensão de uma escolha política onde não existe nenhuma.

A mesma sombra se estende pela Grã-Bretanha e muito da Europa, onde a democracia social, um artigo de fé duas gerações atrás, caiu em favor dos ditadores dos bancos centrais. Na "grande sociedade" de David Cameron, o roubo de 84 bilhões de libras em empregos e serviços até excede o montante do imposto "legalmente" evitado por grandes grupos econômicos piratas. A culpa não é da extrema direita, mas de uma cultura política liberal covarde que permitiu que isto acontecesse, a qual, escreveu Hywel Williams no rastro dos ataques do 11 de setembro, "pode ser uma forma de fanatismo moralista". Tony Blair é um desses fanáticos. Na sua indiferença gestionária para com as liberdades por que clama para ter grande carinho, a Inglaterra da Blairite burguesa criou um estado de vigilância com 3000 novas ofensas criminais e leis: mais do que para todo o século anterior. A polícia claramente acredita que tem impunidade para matar. Por exigência da CIA, casos como o de Binyam Mohamed, um residente britânico inocente torturado e depois mantido por cinco anos na baía de Guantánamo, serão tratados em tribunais secretos na Inglaterra "para proteger as agências de espionagem" - os torturadores.

Este estado invisível permitiu que o governo de Blair lutasse contra os ilhéus de Chagos à medida que se ergueram do seu desespero no exílio e exigiram justiça nas ruas de Port Louis e de Londres. "Só quando se vai para a ação direta, face a face, até quebrar leis, é que alguma vez nos faremos notar", disse Lisette. "E quanto menor se for, maior o seu exemplo para os outros." Uma resposta tão eloquente para aqueles que ainda perguntam "O que eu posso fazer?"

Vi pela última vez a figura muito pequena de Lisette de pé sob forte chuva ao lado dos seus camaradas fora do Parlamento. O que me impressionou foi a duradoura coragem da sua resistência. É esta recusa em desistir que o poder podre teme, acima de tudo, sabendo que ela é a semente debaixo da neve.

Artigo publicado originalmente em truthout, traduzido por Paula Sequeiros para esquerda.net

* Jornalista , escritor e diretor de cinema nascido na Austrália e residente em Londres. Pelas suas reportagens sobre guerras, que vão do Vietnã e Camboja até o Oriente Médio, ganhou por duas vezes o maior prêmio de jornalismo da Inglaterra. Pelos seus documentários ganhou um prêmio da Academia Britânica e um Emmy americano. Em 2009 foi-lhe concedido o prêmio de direitos humanos da Austrália, o Prêmio Sydney da Paz. O seu último filme é "Guerra contra a democracia".

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