Fonte:Revista Semana
As vítimas estão dando ao país uma lição de reconciliação. As Farc começam a pedir perdão pelos erros cometidos e o Estado também encara sua responsabilidade.
Algo muito profundo está mudando em Colômbia, pois o país começa a experimentar seriamente a possibilidade do perdão. Uma vez encerrada a Mesa de Havana entre o governo e as Farc, ambas partes estão cumprindo o que genericamente ficou proposto como atos prematuros de reconhecimento de responsabilidade. E não de qualquer maneira.
No dia 10 deste mês de setembro, antes de sair de Cuba, um grupo importante de dirigentes dessa guerrilha se encontrou pela primeira vez com os familiares dos 11 deputados do estado de El Valle sequestrados em 2002 e assassinados a sangue frio cinco anos depois. O encontro foi assustador. Dor e vergonha se entremearam com lágrimas. No princípio todos tremiam, houve queixas, pranto e raiva. Especialmente por parte de três jovens filhos dos políticos sacrificados: Carolina Charry, a primeira a falar, lhes disse “sou filha do deputado Carlos Alberto Charry, sequestrado e assassinado por vocês em cativeiro”; Sebastián Arismendi lhes confessou com raiva que algum dia quis matá-los e cobrar vingança; e Daniela Narváez, ainda que não tenha assistido ao encontro, enviou uma carta demolidora que fez chorar a todos.
As Farc mostraram uma faceta até agora desconhecida: com humildade acolheram as queixas e assumiram sem ambiguidades sua responsabilidade. Iván Márquez o fez primeiro de maneira genérica, quando disse que estes episódios tinham a ver com a degradação da guerra. Porém Pablo, quem comandava o bloco que cometeu esse aterrador crime, pronunciou as palavras que todos esperavam: “Não vamos evitar a responsabilidade. Estavam em nossas mãos, e não se pode reparar o irreparável, se trata de ressarcir o dano, que é diferente [...] A morte dos deputados foi o mais absurdo do que vivi na guerra, o episódio mais vergonhoso, não nos orgulhamos dele. Hoje, com humildade sincera, pedimos perdão. Oxalá vocês possam nos perdoar”.
Depois de quatro horas intensas, e assim que as Farc assumiram compromissos concretos com as famílias em termos de contar toda a verdade sobre o ocorrido, todos se uniram numa oração que os guias espirituais presentes propiciaram. Os familiares expressaram um sentimento geral de alívio após uma catarse coletiva. A maioria dos que falaram publicamente disseram que creem que os guerrilheiros atuaram com sinceridade e que seguirão apoiando o processo de paz.
Um dia depois deste encontro, as Farc se reuniram com delegados do bairro La Chinita, de Apartadó, no Urabá antioquenho. Ali esta guerrilha cometeu um massacre indiscriminado contra 35 pessoas, a maioria desmobilizados do EPL, em janeiro de 1994. Nos próximos dias se fará neste bairro um ato de reconhecimento similar igual ao que já se fez em Bojayá, Chocó, em novembro do ano passado, quando Pastor Alape viajou para admitir, com voz embargada, que não houve misericórdia para as 79 pessoas que morreram sob a pólvora e a metralha de um cilindro disparado pelas Farc em meio a um combate.
E num fato também histórico, e esperado há meses, Iván Márquez falou ao país por meio de um vídeo no qual reconheceu que as “retenções”, isto é, o sequestro, causaram “uma grande dor” nas famílias e na sociedade. Também disse que estas práticas devem ficar “sepultadas para sempre”.
Como os atos atrozes cometidos na guerra vieram de todos os bandos, e há um compromisso de que todos façam atos de reconhecimento, na última quinta-feira o presidente Santos admitiu que “o Estado não fez o suficiente para evitar a tragédia da UP”, num auditório onde se lhe rendia tributo aos militantes desse grupo que caíram sob as balas da guerra suja. Usou em várias ocasiões, citando ao Conselho de Estado, a palavra “extermínio” e se comprometeu a que essa história não se repetirá nunca mais. Este é um ato de contrição transcendental porque é recíproco com os gestos que as Farc vêm fazendo, e é o reconhecimento tático de que o Estado também foi parte na degradação do conflito.
Que importância tem o perdão?
Possivelmente o mais revelador destes atos de perdão é que demonstram que o processo de paz transformou aos guerrilheiros. As Farc haviam sido reticentes a reconhecer seus erros. Quando se instalaram as conversações de paz em Oslo, Noruega, em fins de 2012, Jesús Santrich disse que “talvez, talvez, talvez” reconheceriam a suas vítimas, o qual se converteu numa bofetada mais para elas. Timochenko e outros chefes dessa guerrilha haviam dito em várias ocasiões que não pediriam perdão porque não tinham nada de que se arrepender. Por sua vez, dentro do governo se falou de que os crimes de guerra cometidos desde sua margem eram produto de umas quantas “maçãs podres” e não do Estado como tal.
Esse mudança é importante porque demonstra que há uma vontade de não repetir a história. Também que as narrativas heroicas próprias da guerra estão chegando a seu fim, o qual é uma guinada na ética política que tem predominado no país.
A isso se soma que os atos de perdão superam a retórica porque estão acompanhados de compromissos práticos de verdade exaustiva e de reparação. No caso dos deputados, a guerrilha tentará devolver aos familiares os pertences que tiveram no cativeiro, e no da UP o governo se compromete no esforço de proteger e não estigmatizar este movimento e outros similares.
Em segundo lugar, o perdão, ainda que não está contemplado como tal no acordo de Havana, pode assimilar-se a um ato de reparação na medida em que eleva as demandas das vítimas acima dos interesses das partes envolvidas. Não em vão os familiares dos deputados expressaram a sensação de haver alcançado algo de justiça com o ato dos guerrilheiros. Adicionalmente, estas petições de perdão se estão dando num contexto de fim do conflito, no qual haverá um sistema de justiça integral, baseado na verdade e na restauração, em que também haverá sanções e castigos. Não são portanto fatos isolados que possam ser considerados banais, cosméticos ou rodeados de oportunismo político.
Finalmente há que considerar que, como o disse Óscar Tulio Lizcano, quem também esteve sequestrado pelas Farc, o perdão é uma virtude política na medida em que permite à sociedade assimilar o passado e olhar pro futuro. O perdão como experiência pessoal e coletiva assenta as bases da reconciliação. Assim ocorreu na África do Sul, onde houve uma verdadeira catarse das injustiças do apartheid em diversos espaços. “Sem perdão não há futuro”, dizia o bispo Desmond Tutu, guardião espiritual desse processo de transição à democracia.
Dado que o tempo do perdão apenas começa, o país verá no futuro muitos destes atos. Porém serão pontuais e sobre os fatos mais atrozes cometidos. Ainda que alguns setores esperam um arrependimento geral da guerrilha e outros esperam do próprio Estado, isso dificilmente ocorrerá. As Farc estão dispostas a reconhecer os excessos da guerra e de seus atos de barbárie, porém não vão renegar totalmente seu passado, pois consideram que levantar-se em armas contra o regime político, com toda a violência que isso implica, tinha uma justificativa histórica.
Por enquanto, as vítimas estão dando ao país uma lição ética e política. Estão dizendo que em Colômbia podem conviver vítimas e vitimários, numa nova relação humana, se se quer que as novas gerações tenham um país diferente. Isso expressa a pungente carta que Sebastián Arismendi publicou em seu Facebook. As vítimas estão mostrando ao país um novo alfabeto para reescrever as páginas do futuro.
Crônica de uma catarse
Sebastián Arismendi, filho do deputado Héctor Fabio Arismendi, contou no Facebook como transformou sua vida o encontro com as Farc.
“Hoje sinto uma tranquilidade que nunca em mina vida havia sentido, sinto uma paz interior que necessitava desde há muito tempo, hoje posso dizer que por fim meu pai pode ir descansar em paz.
Não vou mentir pra vocês, antes de me deitar e dormir na noite anterior tinha muitos medos, pensava como ia ser esse momento quando visse aos que assassinaram o meu pai: Iván Márquez, Pablo Catabumbo, Rodrigo Granda e Joaquín Gómez.
Simplesmente acreditava que não ia suportar tanta pressão e simplesmente sairia correndo dali implorando por justiça.
Ao amanhecer, a ansiedade não me abandonava, as tonturas e o estresse eram os que primavam em mim. Portanto, não fui capaz de desjejuar e parti para o meu encontro com o estômago vazio porém cheio de medos e dores em meu coração. O momento havia chegado, olhei para o céu implorando ao Espírito Santo que me desse a força para enfrentar a situação. Nesse momento, eles entraram, e lhes confesso que não senti nada, me enchi de força e me pus de pé a exigir-lhes a verdade. Mostrei toda minha dor e sofrimento durante todos estes anos, lhes disse algo que sempre tinha querido dizer-lhes: eu jurei matar a todos vocês quando tinha só 9 anos, com lágrimas em meus olhos e com a alma destroçada, pelo assassinato de meu pai. No entanto, lhes disse que já os havia perdoado e também já me havia perdoado e por isso eu era livre e feliz.
Porém eles, como nunca o esperava [nunca esperei nada deles], me ouviram com respeito e punham atenção a todas minhas palavras. Ao final, Pablo Catatumbo tomou a palavra e nos disse: ‘Não nos orgulhamos do assassinato dos deputados, isso nunca deveria ocorrer. Hoje fazemos um reconhecimento público e pedimos perdão. Oxalá vocês também nos perdoem’, e Iván Márquez assegurou: ‘Desde o mais profundo de nosso ser sentimos sua dor. Permita-nos que nossos sentimentos os abrace, e pedir-lhes perdão por esta situação’. Ademais de muitas outras palavras que diziam sem um roteiro em suas mãos. Sinceramente, jamais esperei que eles pedissem perdão, sempre se caracterizaram por serem duros e orgulhosos, ontem desconheci ao Iván Márquez de sempre, se via triste e não repreendia nenhum de nossos requerimentos.
Por todo o acima exposto, algo muito estranho passava em meu corpo, o sofrimento foi desaparecendo de mim, e sentia que havia obtido justiça, porque me dei conta de que vendo-os no cárcere não me traria o meu pai de volta, porém obrigando-os a ouvir-me e ouvi-los arrependidos pelo que fizeram me fez sentir grande e a eles vê-los muito pequenos. Finalmente, saí com um sorriso em meu rosto e via como meu pai se sentia orgulhoso de mim no céu, porque compreendi que sua vida foi entregue para que a Colômbia fosse uma muito melhor.
Te amo, papai, sempre estarás em minha mente e no meu coração, e te juro que minha vida será para cumprir o sonho que ambos tivemos: ver a Colômbia como uma nação muito melhor para todos nós”.