quarta-feira, 5 de junho de 2013
A sólida perseverança das FARC-EP
A ideologia das classes dominantes nunca bradou com tanta soberba como após a queda da União Soviética. Lança em riste, políticos, acadêmicos, intelectuais, militares e até comunistas arrependidos se bateram contra o pensamento revolucionário, alegando que carecia de lugar, pretendendo ridicularizar seus defensores e celebrando missas por sua morte intempestiva.
Absurdas elaborações sem a menor sustentação histórica ou científica passaram a ser publicadas, o que chamaram com desprezo de fim da história, choque das civilizações, onda democratizadora e sucessivamente emergiram novíssimas interpretações da realidade, abençoadas imediatamente pelo grande capital e universalizadas com loas pelos grandes meios de comunicação.
Pior ainda foi a avalanche desatada contra os revolucionários em armas. No tempo em que os marines norte-americanos armados com o arsenal mais moderno, amparados por sofisticada artilharia, naves de guerra e aviões de alta tecnologia destrutiva, humilhavam o Exército iraquiano na operação Tormenta do Deserto, diziam que nada justificava mais agora as rebeliões armadas.
Sem importar o lugar, as condições históricas, nem a natureza das contradições econômicas, sociais, políticas ou culturais que particularizavam a situação das distintas lutas dos oprimidos, um decreto expedido nas alturas imperiais, e aplicado de imediato por seus capangas em cada país, sentenciava que só tinham algum sentido os meios pacíficos.
Mesmo que em muitas partes existam as condições plenas para o exercício de tal expressão da luta popular. E partiram da premissa de que todas as manifestações, armadas e não armadas, de inconformidade e rebeldia, haviam tido origem exclusivamente no interesse soviético por ampliar seu domínio no mundo. Morta a mãe, havia que sacrificar os filhos.
Se todas as formas da luta contra a exploração capitalista eram estimuladas pelo comunismo russo, se as pressupostas injustiças e opressões contra as que se alçavam os povos não eram mais do que invenções da propaganda subversiva promovida por Moscou, se o capitalismo era o escalão mais alto e insuperável alcançado pela humanidade, não havia mais remédio do que a rendição.
Entre outras coisas, porque com a derrubada do paradigma se pretendia provar a impossibilidade de uma alternativa distinta. Todos os meios e discursos repetiram incessantemente que a salvação buscada não existia, como acabava de ser demonstrado, mas sobretudo porque tão pouco o perigo havia existido. O capitalismo nunca havia sido um monstro, mas uma benção divina.
Canalhas, miseráveis, dinossauros depreciáveis e estúpidos, múmias congeladas no tempo, peças descartáveis de museu, cegos sem cajados e surdos sem remédio, tudo isso foi dito dos que perseveramos na luta contra as injustiças. A fúria reunida de todos os furacões era pequena perante o temível tsunami que caiu sobre os revolucionários e rebeldes.
Muitos cederam, é verdade. Beberam da nova fonte da sabedoria e ficaram perplexos, intimidados pelo descomunal gigantismo do poder único. Resignaram suas ideias e seus esforços por transformar o todo e construir sua verdade. Não merecem uma palavra mais que se refira a eles. Nós não, nós seguimos apostando na causa e seguros do triunfo.
Desde então todas as iras imperiais e oligárquicas caíram sobre nossas cabeças; não houve infâmia que não se atribuísse a nossa organização. Perseverar na luta se converteu em estigma, operações exemplares se ergueram para executar-nos com sevícia, os círculos do poder celebraram em uníssono uma e outra vez cada golpe que recebíamos: converteram-nos em malditos.
Ainda assim seguimos adiante. Inspirados entre outras coisas pela dignidade do povo de Cuba, essa nação de titãs que iluminados pelas palavras de Fidel e Che, levanta invencível nas barbas do Império. Animados pela claridade diáfana do pensamento de nossos fundadores, reivindicando o sangue e a honra daqueles que tombaram lutando.
Mas sobretudo conscientes de que, não porque a repetiram milhões de vezes, a mentira institucionalizada ia a converte-se em verdade absoluta. Enquanto a fome e a injustiça afetaram uma imensa maioria de nossos compatriotas, enquanto a violência sanguinária do Estado continuara cerceando milhares de vidas em nosso solo, nossas razões se mantinham vivas.
Não porque conseguiram impor-se pela força das armas e o medo, se tornaram válidos os argumentos do grande capital para saquear sem trégua as riquezas do nosso país, para cortar de uma vez os direitos conquistados pelos trabalhadores em um século de lutas, para redistribuir a propriedade da terra a seu favor mediante a geração de massacre e o desterro.
Não porque nos chamaram da pior maneira, porque asseguraram que carecíamos de ideias e só nos alentavam as motivações vis, porque seus cantos de sereia nos convidaram à rendição ao mesmo tempo em que nos despejavam toneladas de explosivos, nós, as FARC-EP, íamos deixar de alentar nosso povo à luta e jogar a decência no lado do caminho.
Somos revolucionários, cremos na possibilidade de que o povo colombiano arrebente as correntes com que ataram sua soberania nacional, apostamos sem duvidar que, ao abrirem-se os espaços para a expressão livre do pensamento e o exercício da atividade política, sem risco para a vida e para a liberdade, as pessoas honradas do nosso país, essa grande maioria, alcançaremos as mudanças necessários.
Sempre soubemos que não é mediante a força solitária das armas que vamos conseguir o poder para nosso povo. Porém, sabemos que nas condições violentas e desvantajosas em que a oposição política é obrigada a atuar em nosso país, apenas as vias pacíficas resultarão insuficientes. A história da União Patriótica demonstra isso.
Na particular situação em que o povo da Colômbia é obrigado a viver, o emprego revolucionário das armas tem sido necessário para sustentar a resistência e manter acesa a possibilidade de abrir o caminho para uma verdadeira democracia. Há sido a oligarquia do nosso país, servil ao imperialismo, a que sempre promoveu a guerra. Nós apenas lhe fazemos frente.
Que tudo isso mude é nossa aspiração ao dialogar com o governo em Havana. Para alcançar essa Mesa tivemos que suportar a mais demente arremetida que já sofreu algum povo em toda a história do nosso continente. Durante 49 anos contínuos, milhares de mulheres e homens temos entregado o melhor das nossas vidas sem receber um centavo em troca.
Isso não nos confere o direito de nos considerarmos superiores a ninguém. Também somos conscientes disso. Mas sem dúvidas que tanto esforço, tantas vidas regadas no caminho, tantos mártires sacrificados na tortura e nas masmorras, nos outorgam o direito a chamarmo-nos revolucionários e a ocupar o lugar que merecemos na construção do novo país. E isso, ninguém pode negar.
Montanhas da Colômbia, 25 de maio de 2013.
FARC-EP
domingo, 2 de junho de 2013
As FARC-Exército do Povo. Meio século de luta pela paz.
Por Miguel Urbano Rodrigues
31 de maio de 2013
O comunicado conjunto divulgado em Havana no dia 26 de maio pelas delegações das FARC-EP e pelo governo de Bogotá significou a abertura de um novo ciclo de diálogos de paz iniciados naquela cidade.
Depois de seis meses de conversações difíceis, os representantes da guerrilha e do executivo colombiano assinaram um acordo para a “Reforma Rural Integral”, primeiro ponto da Agenda em debate.
O documento aprovado prevê transformações radicais no mundo agrário. A maioria das principais exigências das FARC foi aprovada. Entre elas, a relativa ao acesso ao uso da terra, à formalização da propriedade, às terras improdutivas, aos programas de desenvolvimento social (educação, habitação, erradicação da pobreza), ao estímulo à produção agropecuária, ao Fundo de terras pela Paz, ao ambiente.
No dia 11 de junho as delegações iniciam a discussão do segundo ponto da Agenda: a Participação Política, que abarca o tema crucial da Democracia.
O presidente Juan Manuel Santos afirmou que está empenhado na continuação do processo “com prudência e responsabilidade”.
Em uma Declaração emitida simultaneamente em Havana, as FARC-EP consideram positivo o acordo alcançado sobre a Reforma Agrária, mas alertam sobre as dificuldades do diálogo na Mesa de Negociações, sobre os pontos restantes da Agenda, especialmente os relativos à droga, ao cessar fogo e armamentos e à reintegração das populações expulsas de seus territórios.
As FARC estão conscientes de que a conquista da paz é inseparável do desmonte da oligarquia que utiliza o Estado como instrumento de sua política de classe, marcada por uma repressão feroz.
É significativo que quando cresce o apoio popular às iniciativas do Movimento Colombiano pela Paz, liderado pela ex-Senadora Piedad Córdoba, alguns ministros – entre eles Fernando Carrillo e o do Interior – falem outra linguagem, sugerindo o fim das conversações se antes do Natal não for assinado um Acordo Global.
O alto comando das Forças Armadas também se empenha em sabotar os debates de Havana – apoiados por Noruega e Cuba – intensificando a guerra. Os 50 Drones – aviões assassinos sem piloto – recentemente adquiridos já haviam sido utilizados em bombardeios em La Macarena, Orito, Saravena e Catatumbo.
A posição de Barack Obama é, como habitual, ambígua e hipócrita. Diz apoiar os diálogos para a Paz, mas envia o vice-presidente Joe Biden a Bogotá para derramar elogios sobre o governo da Colômbia, seu melhor aliado na América Latina, e expressar ali o desejo dos EUA de aderir à chamada Aliança do Pacífico. Cabe esclarecer que esta estranha aliança foi concebida em Washington para funcionar como contraponto ao Mercosul. Por ora, a integram México, Chile, Colômbia e Peru, países cujos governos desenvolvem políticas de submissão ao imperialismo estadunidense.
O apoio militar à guerra contra as FARC-EP prossegue. Os EUA que já investiram mais de oito bilhões de euros no financiamento do Plano Colômbia, instalaram no país sete novas bases militares desde o início da Administração Obama.
Meio século de luta
Ao contrário da imagem edênica de país próspero em acelerado desenvolvimento pela ação de um governo democrático e progressista, imagem que Juan Manuel Santos difundiu em sua visita a Europa, a situação na Colômbia continua degradando-se.
O paramilitarismo permanece impune com raras exceções. A corrupção desenfreada e a miséria, na capital e nas grandes cidades, são crescentes. As mais numerosas e bem equipadas forças armadas da América Latina – meio milhão de militares – absorvem uma quantia colossal do orçamento. A fome, endêmica em muitas regiões, afeta oito milhões de pessoas. 15.000 crianças morrem anualmente antes dos cinco anos por desnutrição. Dirigentes sindicais são assassinados cotidianamente todos os meses. Mas o número de multimilionários aumenta a cada ano em uma das sociedades mais desiguais do mundo.
As FARC-EP, fundadas em Marquetalia depois de combates épicos na ruptura de um cerco, acabam de comemorar 49 anos de existência e de luta ininterrupta.
Incluídas pela União Europeia e pela ONU na lista de organizações terroristas, caluniadas, acusadas de narcotraficantes por um presidente, Álvaro Uribe Vélez (aliado de Pablo Escobar, o rei da coca), as FARC se assumem como organização revolucionária, marxista-leninista.
“Somos povo – afirmam – que empunha as armas contra as armas do poder e contra a repressão”.
Moderadamente otimistas, tudo fazem para que as conversações de Havana permitam a concretização das aspirações de paz do povo colombiano.
Mas não esquecem que uma das cláusulas da Agenda estabelece que o Acordo Geral de Paz somente será possível se todos os pontos nele incluídos forem aprovados. O rechaço de qualquer deles implicará a anulação dos demais.
Por si só, essa exigência esclarece a falta de transparência e da má fé que foram permanentes nas posições dos delegados do governo na Mesa de Negociações.
Hoje, como sempre, as FARC-EP defendem uma solução política cujo desenlace será a Paz definitiva em uma Colômbia democrática.
Eles creem como Bolívar que as Forças Armadas devem ser o povo em armas, um instrumento da defesa da soberania nacional. Usa-las contra o povo, como ocorre na Colômbia, é um crime monstruoso.
quinta-feira, 4 de abril de 2013
Os Perigos da Manipulação Psiquiatrica, Paranormalidade e Mediunidade em Favor da Nova Ordem Mundial
Os globalistas Illuminati's estão fazendo de tudo para ter o controle da psique humana, inclusive alegando descaradamente que questionar o Sistema é uma doença mental.
Questionar o sistema e a autoridade é uma doença, de acordo com a indústria psiquiátrica norte americana.
A Associação Psiquiátrica Americana considera um transtorno mental desafiar o pensamento, o que sem dúvidas é algo adequado para manter uma sociedade de pessoas (ou robôs) aprisionados, em conformidade com o que eles consideram normal.
Pensar de forma diferente dos padrões dominantes da sociedade, que é às vezes chamado de livre-pensamento é uma NOVA "doença mental" de acordo com a nova edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Psiquiátrica Americana.
Este manual tipifica e cria uma nova categoria de doença chamada de “transtorno desafiador opositivo (TDO, em Inglês) e define-a como ”um padrão contínuo de comportamento desobediente, hostil e desafiador," com sintomas que incluem o questionamento á autoridade, desacato, e argumentatividade facilmente perturbada.
Este manual é utilizado pelos médicos norte americanos para identificar a doença mental e cada questão deverá aumentar substancialmente o número de doenças mentais, que questiona se o indivíduo está com problemas mentais ou encontra-se cada vez mais difícil de ser mentalmente saudável.
Os médicos dizem que é porque agora podemos mais facilmente identificar esses distúrbios, o que também significa que pode tratar mais pessoas e mantê-los em instituições para doentes mentais.
Esta nova doença criada e classificada por eles seria um transtorno do pensamento desafiador, que pode ser usado de forma política, como um método de regulação que vale a pena pensar em uma sociedade automatizada e evitar a geração e comunicação de pensamento em conformidade com os valores tradicionais da sociedade.
Infelizmente meus amigos, essa é a grande realidade: a Psiquiatria moderna tem se tornado em um dos ramos da Indústria da Morte, e que poderá ser constatada por qualquer pesquisador sério e comprometido com a verdade e liberdade individual. Exitem diversos vídeos na internet, onde se pode obter mais informações sobre o tema, sendo que alguns deles reproduziremos para ilustração desse artigo. Há uma enorme denúncia surgindo a partir de um organismo em Los Angeles, pela defesa dos Direitos Humanos (?), de que a psiquiatria é uma indústria de introdução de remédios nas pessoas, que não as tratam, tampouco curam, embasados numa teoria de que os transtornos mentais devem originar-se de uma possível desordem química no cérebro (teoria esta que nunca foi pesquisada, muito menos comprovada, mas foi apropriada pelos psiquiatras logo que lançadas, porque sempre atuaram na contramão da pesquisa científica típica - eles queriam tratar das doenças mentais e por isso precisavam de alguma teoria científica que corroborasse sua prática).
Original em http://midiaglobal-2012.blogspot.com.br/2011/07/os-perigos-da-manipulacao-psiquiatrica.html
domingo, 31 de março de 2013
A dura vida dos ateus em um Brasil cada vez mais evangélico
Por Eliane Brum)
O diálogo aconteceu entre uma jornalista e um taxista na última sexta-feira. Ela entrou no táxi do ponto do Shopping Villa Lobos, em São Paulo, por volta das 19h30. Como estava escuro demais para ler o jornal, como ela sempre faz, puxou conversa com o motorista de táxi, como ela nunca faz. Falaram do trânsito (inevitável em São Paulo) que, naquela sexta-feira chuvosa e às vésperas de um feriadão, contra todos os prognósticos, estava bom. Depois, outro taxista emparelhou o carro na Pedroso de Moraes para pedir um “Bom Ar” emprestado ao colega, porque tinha carregado um passageiro “com cheiro de jaula”. Continuaram, e ela comentou que trabalharia no feriado. Ele perguntou o que ela fazia. “Sou jornalista”, ela disse. E ele: “Eu quero muito melhorar o meu português. Estudei, mas escrevo tudo errado”. Ele era jovem, menos de 30 anos. “O melhor jeito de melhorar o português é lendo”, ela sugeriu. “Eu estou lendo mais agora, já li quatro livros neste ano. Para quem não lia nada...”, ele contou. “O importante é ler o que você gosta”, ela estimulou. “O que eu quero agora é ler a Bíblia”. Foi neste ponto que o diálogo conquistou o direito a seguir com travessões.
- Você é evangélico? – ela perguntou.
- Sou! – ele respondeu, animado.
- De que igreja?
- Tenho ido na Novidade de Vida. Mas já fui na Bola de Neve.
- Da Novidade de Vida eu nunca tinha ouvido falar, mas já li matérias sobre a Bola de Neve. É bacana a Novidade de Vida?
- Tou gostando muito. A Bola de Neve também é bem legal. De vez em quando eu vou lá.
- Legal.
- De que religião você é?
- Eu não tenho religião. Sou ateia.
- Deus me livre! Vai lá na Bola de Neve.
- Não, eu não sou religiosa. Sou ateia.
- Deus me livre!
- Engraçado isso. Eu respeito a sua escolha, mas você não respeita a minha.
- (riso nervoso).
- Eu sou uma pessoa decente, honesta, trato as pessoas com respeito, trabalho duro e tento fazer a minha parte para o mundo ser um lugar melhor. Por que eu seria pior por não ter uma fé?
- Por que as boas ações não salvam.
- Não?
- Só Jesus salva. Se você não aceitar Jesus, não será salva.
- Mas eu não quero ser salva.
- Deus me livre!
- Eu não acredito em salvação. Acredito em viver cada dia da melhor forma possível.
- Acho que você é espírita.
- Não, já disse a você. Sou ateia.
- É que Jesus não te pegou ainda. Mas ele vai pegar.
- Olha, sinceramente, acho difícil que Jesus vá me pegar. Mas sabe o que eu acho curioso? Que eu não queira tirar a sua fé, mas você queira tirar a minha não fé. Eu não acho que você seja pior do que eu por ser evangélico, mas você parece achar que é melhor do que eu porque é evangélico. Não era Jesus que pregava a tolerância?
- É, talvez seja melhor a gente mudar de assunto...
O taxista estava confuso. A passageira era ateia, mas parecia do bem. Era tranquila, doce e divertida. Mas ele fora doutrinado para acreditar que um ateu é uma espécie de Satanás. Como resolver esse impasse? (Talvez ele tenha lembrado, naquele momento, que o pastor avisara que o diabo assumia formas muito sedutoras para roubar a alma dos crentes. Mas, como não dá para ler pensamentos, só é possível afirmar que o taxista parecia viver um embate interno: ele não conseguia se convencer de que a mulher que agora falava sobre o cartão do banco que tinha perdido era a personificação do mal.)
Chegaram ao destino depois de mais algumas conversas corriqueiras. Ao se despedir, ela agradeceu a corrida e desejou a ele um bom fim de semana e uma boa noite. Ele retribuiu. E então, não conseguiu conter-se:
- Veja se aparece lá na igreja! – gritou, quando ela abria a porta.
- Veja se vira ateu! – ela retribuiu, bem humorada, antes de fechá-la.
Ainda deu tempo de ouvir uma risada nervosa.
A parábola do taxista me faz pensar em como a vida dos ateus poderá ser dura num Brasil cada vez mais evangélico – ou cada vez mais neopentecostal, já que é esta a característica das igrejas evangélicas que mais crescem. O catolicismo – no mundo contemporâneo, bem sublinhado – mantém uma relação de tolerância com o ateísmo. Por várias razões. Entre elas, a de que é possível ser católico – e não praticante. O fato de você não frequentar a igreja nem pagar o dízimo não chama maior atenção no Brasil católico nem condena ninguém ao inferno. Outra razão importante é que o catolicismo está disseminado na cultura, entrelaçado a uma forma de ver o mundo que influencia inclusive os ateus. Ser ateu num país de maioria católica nunca ameaçou a convivência entre os vizinhos. Ou entre taxistas e passageiros.
Já com os evangélicos neopentecostais, caso das inúmeras igrejas que se multiplicam com nomes cada vez mais imaginativos pelas esquinas das grandes e das pequenas cidades, pelos sertões e pela floresta amazônica, o caso é diferente. E não faço aqui nenhum juízo de valor sobre a fé católica ou a dos neopentecostais. Cada um tem o direito de professar a fé que quiser – assim como a sua não fé. Meu interesse é tentar compreender como essa porção cada vez mais numerosa do país está mudando o modo de ver o mundo e o modo de se relacionar com a cultura. Está mudando a forma de ser brasileiro.
Por que os ateus são uma ameaça às novas denominações evangélicas? Porque as neopentecostais – e não falo aqui nenhuma novidade – são constituídas no modo capitalista. Regidas, portanto, pelas leis de mercado. Por isso, nessas novas igrejas, não há como ser um evangélico não praticante. É possível, como o taxista exemplifica muito bem, pular de uma para outra, como um consumidor diante de vitrines que tentam seduzi-lo a entrar na loja pelo brilho de suas ofertas. Essa dificuldade de “fidelizar um fiel”, ao gerir a igreja como um modelo de negócio, obriga as neopentecostais a uma disputa de mercado cada vez mais agressiva e também a buscar fatias ainda inexploradas. É preciso que os fiéis estejam dentro das igrejas – e elas estão sempre de portas abertas – para consumir um dos muitos produtos milagrosos ou para serem consumidos por doações em dinheiro ou em espécie. O templo é um shopping da fé, com as vantagens e as desvantagens que isso implica.
É também por essa razão que a Igreja Católica, que em períodos de sua longa história atraiu fiéis com ossos de santos e passes para o céu, vive hoje o dilema de ser ameaçada pela vulgaridade das relações capitalistas numa fé de mercado. Dilema que procura resolver de uma maneira bastante inteligente, ao manter a salvo a tradição que tem lhe garantido poder e influência há dois mil anos, mas ao mesmo tempo estimular sua versão de mercado, encarnada pelos carismáticos. Como uma espécie de vanguarda, que contém o avanço das tropas “inimigas” lá na frente sem comprometer a integridade do exército que se mantém mais atrás, padres pop star como Marcelo Rossi e movimentos como a Canção Nova têm sido estratégicos para reduzir a sangria de fiéis para as neopentecostais. Não fosse esse tipo de abordagem mais agressiva e possivelmente já existiria uma porção ainda maior de evangélicos no país.
Tudo indica que a parábola do taxista se tornará cada vez mais frequente nas ruas do Brasil – em novas e ferozes versões. Afinal, não há nada mais ameaçador para o mercado do que quem está fora do mercado por convicção. E quem está fora do mercado da fé? Os ateus. É possível convencer um católico, um espírita ou um umbandista a mudar de religião. Mas é bem mais difícil – quando não impossível – converter um ateu. Para quem não acredita na existência de Deus, qualquer produto religioso, seja ele material, como um travesseiro que cura doenças, ou subjetivo, como o conforto da vida eterna, não tem qualquer apelo. Seria como vender gelo para um esquimó.
Tenho muitos amigos ateus. E eles me contam que têm evitado se apresentar dessa maneira porque a reação é cada vez mais hostil. Por enquanto, a reação é como a do taxista: “Deus me livre!”. Mas percebem que o cerco se aperta e, a qualquer momento, temem que alguém possa empunhar um punhado de dentes de alho diante deles ou iniciar um exorcismo ali mesmo, no sinal fechado ou na padaria da esquina. Acuados, têm preferido declarar-se “agnósticos”. Com sorte, parte dos crentes pode ficar em dúvida e pensar que é alguma igreja nova.
Já conhecia a “Bola de Neve” (ou “Bola de Neve Church, para os íntimos”, como diz o seu site), mas nunca tinha ouvido falar da “Novidade de Vida”. Busquei o site da igreja na internet. Na página de abertura, me deparei com uma preleção intitulada: “O perigo da tolerância”. O texto fala sobre as famílias, afirma que Deus não é tolerante e incita os fiéis a não tolerar o que não venha de Deus. Tolerar “coisas erradas” é o mesmo que “criar demônios de estimação”. Entre as muitas frases exemplares, uma se destaca: “Hoje em dia, o mal da sociedade tem sido a Tolerância (em negrito e em maiúscula)”. Deus me livre!, um ateu talvez tenha vontade de dizer. Mas nem esse conforto lhe resta.
Ainda que o crescimento evangélico no Brasil venha sendo investigado tanto pela academia como pelo jornalismo, é pouco para a profundidade das mudanças que tem trazido à vida cotidiana do país. As transformações no modo de ser brasileiro talvez sejam maiores do que possa parecer à primeira vista. Talvez estejam alterando o “homem cordial” – não no sentido estrito conferido por Sérgio Buarque de Holanda, mas no sentido atribuído pelo senso comum.
Me arriscaria a dizer que a liberdade de credo – e, portanto, também de não credo – determinada pela Constituição está sendo solapada na prática do dia a dia. Não deixa de ser curioso que, no século XXI, ser ateu volte a ter um conteúdo revolucionário. Mas, depois que Sarah Sheeva, uma das filhas de Pepeu Gomes e Baby do Brasil, passou a pastorear mulheres virgens – ou com vontade de voltar a ser – em busca de príncipes encantados, na “Igreja Celular Internacional”, nada mais me surpreende.
Se Deus existe, que nos livre de sermos obrigados a acreditar nele.
Original em http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2011/11/dura-vida-dos-ateus-em-um-brasil-cada-vez-mais-evangelico.html
Verdade: uma tentativa de compreensão

sábado, 30 de março de 2013
As empregadas e a escravidão
Por: Urariano Mota
Por caminhos tortos, Joaquim Nabuco teve uma das suas iluminações quando escreveu: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”.
Sim, por caminhos tortos, porque depois de uma frase tão magnífica, de gênio do futuro, Joaquim Nabuco sem pausa continuou, num encanto que esconde a crueldade:
“Ela (a escravidão) espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor...”.
Penso na primeira frase de Nabuco, a da escravidão como característica do Brasil, nestes dias em que o Congresso dá um primeiro passo para a superação da herança maldita. Não quero falar aqui sobre as conquistas legais para as empregadas domésticas, da nova lei sobre a qual os jornais tanto têm falado como num aviso: “patroas, cuidado, domésticas agora têm direitos”. Falo e penso nas empregadas que vi e tenho visto no Recife e em São Paulo. No aeroporto de Guarulhos eu vi Danielle Winits, a famosa atriz da Globo, muito envolvida com o seu notebook, concentradíssima, enquanto o filhinho de cabelos louros berrava. Para quê? A sua empregada, vestida em odioso e engomado uniforme, aquele que anuncia “sou de outra classe”, cuidava para que a perdida beleza da atriz não fosse importunada. Tão natural... os fãs de telenovelas não viam nada de mais na mucama no aeroporto, pois faziam gracinhas para o bobinho lindinho.
Em outra ocasião, numa terça-feira de carnaval à noite, vi no Recife uma jovem à minha frente, empenhada em ver a passagem de um maracatu. Tão africano, não é? Junto a ela uma senhora – desta vez sem uniforme, mas carregando no rosto e modos a servidão – abrigava nos braços um bebê. Os tambores, as fantasias, eram de matar qualquer atenção dirigida à criança, que afinal estava bem cuidada, sob uma corda invisível que amarrava a empregada. Então eu, no limite da raiva, oferecei o meu lugar à sua escrava sobrevivente, com a frase: “a senhora, por favor, venha com o seu filho aqui para a frente”. A empregada quis se explicar, coitada, morta de vergonha, enquanto a doce mamãe não entendia o chamamento irônico, pois me olhava como se eu fosse um marciano. Espantada, parecia me dizer: “como o meu filho pode ser dessa aí?”.
O desconhecimento de direitos elementares às empregadas domésticas, como privacidade, respeito, a falta de atenção para ver nelas uma pessoa igual aos patrões, creio que sobreviverá até mesmo à nova lei. É histórico no Brasil, atravessa gerações e atinge até mesmo os mais jovens e pessoas que se declaram à esquerda. É como se estivesse no sangue, como se fosse genético, de um caráter irreprimível. Até antes delas vão a democracia e a igualdade. A partir delas é outra história. Quantas vezes vemos nos restaurantes jovens casais com suas lindas crias, tendo ao lado as escravas, que nem sequer têm direito a provar da bebida e da comida? Isso nos domingos e feriados, pois esses são os dias das patroazinhas se divertirem. É justo, não é? O feminismo se faz para que mulheres sejam cidadãs, mas a cidadania só alcança os iguais, é claro.
Em todas as situações desconfortáveis, se ousamos estranhar, ou agir com pelo menos um olhar atravessado para essa infâmia, recebemos a resposta de que as domésticas são pessoas da família. Parentes fora do sangue, apenas separadas por deveres, notamos. É o que se pode chamar de uma opressão disfarçada em laços afetivos. A ex-escrava é considerada como um bem amoroso, íntimo, mas que por ser da casa come na cozinha e se deita entre as galinhas do quintal. O que, afinal, é mais limpo que se deitar com os porcos no chiqueiro. Não estranhem, porque não exagero. Não faz muito tempo no Recife era assim. E por que estranhar esse tratamento? Olhem os grandes e largos e luxuosos apartamentos do Rio e de São Paulo, abram os olhos para os minúsculos quartinhos de empregadas, entrem nos seus banheiros, que Millôr dizia serem a prova de que no Brasil empregadas não têm sexo no WC.
Não posso concluir sem observar que os pobres copiam os ricos, e que o tratamento dado às domésticas se estende em democracia para todas as classes sociais. Menos para as empregadas, é claro. "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, dizia Nabuco.
Urariano Mota é jornalista, escritor, poeta e colaborador do Vermelho.
Original em http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=209566&id_secao=10
sexta-feira, 29 de março de 2013
“Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro”
Entrevista com Giorgio Agamben
“O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro”, afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Peppe Salvà e publicada por Ragusa News, 16-08-2012.
Giorgio Agamben é um dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, foi definido pelo Times e pelo Le Monde como uma das dez mais importantes cabeças pensantes do mundo. Pelo segundo ano consecutivo ele transcorreu um longo período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista.
Segundo ele, “a nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governabilidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas”. Assim, “a tarefa que nos espera consiste em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”, afima Agamben.
A tradução é de Selvino J. Assmann, professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC [e tradutor de três das quatro obras de Agamben publicadas pela Boitempo].
***
O governo Monti invoca a crise e o estado de necessidade, e parece ser a única saída tanto da catástrofe financeira quanto das formas indecentes que o poder havia assumido na Itália. A convocação de Monti era a única saída, ou poderia, pelo contrário, servir de pretexto para impor uma séria limitação às liberdades democráticas?
“Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. “Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional.
Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a ideia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas.
A crise econômica que ameaça levar consigo parte dos Estados europeus pode ser vista como condição de crise de toda a modernidade?
A crise atravessada pela Europa não é apenas um problema econômico, como se gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da relação com o passado. O conhecimento do passado é o único caminho de acesso ao presente. É procurando compreender o presente que os seres humanos – pelo menos nós, europeus – são obrigados a interrogar o passado. Eu disse “nós, europeus”, pois me parece que, se admitirmos que a palavra “Europa” tenha um sentido, ele, como hoje aparece como evidente, não pode ser nem político, nem religioso e menos ainda econômico, mas talvez consista nisso, no fato de que o homem europeu – à diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos americanos, para quem a história e o passado têm um significado completamente diferente – pode ter acesso à sua verdade unicamente através de um confronto com o passado, unicamente fazendo as contas com a sua história.
O passado não é, pois, apenas um patrimônio de bens e de tradições, de memórias e de saberes, mas também e sobretudo um componente antropológico essencial do homem europeu, que só pode ter acesso ao presente olhando, de cada vez, para o que ele foi. Daí nasce a relação especial que os países europeus (a Itália, ou melhor, a Sicília, sob este ponto de vista é exemplar) têm com relação às suas cidades, às suas obras de arte, à sua paisagem: não se trata de conservar bens mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se, isso sim, da própria realidade da Europa, da sua indisponível sobrevivência. Neste sentido, ao destruírem, com o cimento, com as autopistas e a Alta Velocidade, a paisagem italiana, os especuladores não nos privam apenas de um bem, mas destroem a nossa própria identidade. A própria expressão “bens culturais” é enganadora, pois sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e por à venda a própria identidade.
Há muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa nascente, Alexandre Kojève, afirmava que o homo sapiens havia chegado ao fim de sua história e já não tinha nada diante de si a não ser duas possibilidades: o acesso a uma animalidade pós-histórica (encarnado pela american way of life) ou o esnobismo (encarnado pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas cerimônias do chá, esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar a todo conteúdo histórico, a Europa poderia oferecer a alternativa de uma cultura que continua sendo humana e vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se com a sua própria história na sua totalidade e capaz de alcançar, a partir deste confronto, uma nova vida.
A sua obra mais conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação entre poder político e vida nua, e evidencia as dificuldades presentes nos dois termos. Qual é o ponto de mediação possível entre os dois pólos?
Minhas investigações mostraram que o poder soberano se fundamenta, desde a sua origem, na separação entre vida nua (a vida biológica, que, na Grécia, encontrava seu lugar na casa) e vida politicamente qualificada (que tinha seu lugar na cidade). A vida nua foi excluída da política e, ao mesmo tempo, foi incluída e capturada através da sua exclusão. Neste sentido, a vida nua é o fundamento negativo do poder. Tal separação atinge sua forma extrema na biopolítica moderna, na qual o cuidado e a decisão sobre a vida nua se tornam aquilo que está em jogo na política. O que aconteceu nos estados totalitários do século XX reside no fato de que é o poder (também na forma da ciência) que decide, em última análise, sobre o que é uma vida humana e sobre o que ela não é. Contra isso, se trata de pensar numa política das formas de vida, a saber, de uma vida que nunca seja separável da sua forma, que jamais seja vida nua.
O mal-estar, para usar um eufemismo, com que o ser humano comum se põe frente ao mundo da política tem a ver especificamente com a condição italiana ou é de algum modo inevitável?
Acredito que atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além do desencanto e da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o planeta inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical das categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas. E que este modelo seja, do ponto de vista do poder, mais econômico e funcional é provado pelo fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas através da mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade as próprias decisões com a violência. As formas da política por nós conhecidas – o Estado nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Elas continuam vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste, portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”.
O estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de soberania, hoje em dia parece assumir o caráter de normalidade, mas os cidadãos ficam perdidos perante a incerteza na qual vivem cotidianamente. É possível atenuar esta sensação?
Vivemos há decênios num estado de exceção que se tornou regra, exatamente assim como acontece na economia em que a crise se tornou a condição normal. O estado de exceção – que deveria sempre ser limitado no tempo – é, pelo contrário, o modelo normal de governo, e isso precisamente nos estados que se dizem democráticos. Poucos sabem que as normas introduzidas, em matéria de segurança, depois do 11 de setembro (na Itália já se havia começado a partir dos anos de chumbo) são piores do que aquelas que vigoravam sob o fascismo. E os crimes contra a humanidade cometidos durante o nazismo foram possibilitados exatamente pelo fato de Hitler, logo depois que assumiu o poder, ter proclamado um estado de exceção que nunca foi revogado. E certamente ele não dispunha das possibilidades de controle (dados biométricos, videocâmeras, celulares, cartões de crédito) próprias dos estados contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje que o Estado considera todo cidadão um terrorista virtual. Isso não pode senão piorar e tornar impossível aquela participação na política que deveria definir a democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por videocâmeras não é mais um lugar público: é uma prisão.
A grande autoridade que muitos atribuem a estudiosos que, como o senhor, investigam a natureza do poder político poderá trazer-nos esperanças de que, dizendo-o de forma banal, o futuro será melhor do que o presente?
Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta a Ruge: “a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.
Podemos fazer-lhe uma pergunta sobre a aula que o senhor deu em Scicli? Houve quem lesse a conclusão que se refere a Piero Guccione como se fosse uma homenagem devida a uma amizade enraizada no tempo, enquanto outros viram nela uma indicação de como sair do xeque-mate no qual a arte contemporânea está envolvida.
Trata-se de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli, pequena cidade em que moram alguns dos mais importantes pintores vivos. A situação da arte hoje em dia é talvez o lugar exemplar para compreendermos a crise na relação com o passado, de que acabamos de falar. O único lugar em que o passado pode viver é o presente, e se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, o museu e a arte, que daquele passado é a figura eminente, se tornam lugares problemáticos. Em uma sociedade que já não sabe o que fazer do seu passado, a arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis da mercantilização. E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo que são os museus de arte contemporânea, as duas coisas coincidem.
Duchamp talvez tenha sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se meteu. O que faz Duchamp quando inventa o ready-made? Ele toma um objeto de uso qualquer, por exemplo, um vaso sanitário, e, introduzindo-o num museu, o força a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente – a não ser o breve instante que dura o efeito do estranhamento e da surpresa – na realidade nada alcança aqui a presença: nem a obra, pois se trata de um objeto de uso qualquer, produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de forma alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista, porque aquele que assina com um irônico nome falso o vaso sanitário não age como artista, mas, se muito, como filósofo ou crítico, ou, conforme gostava de dizer Duchamp, como “alguém que respira”, um simples ser vivo.
Em todo caso, certamente ele não queria produzir uma obra de arte, mas desobstruir o caminhar da arte, fechada entre o museu e a mercantilização. Vocês sabem: o que de fato aconteceu é que um conluio, infelizmente ainda ativo, de hábeis especuladores e de “vivos” transformou o ready-made em obra de arte. E a chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp, enchendo com não-obras e performances em museus, que são meros organismos do mercado, destinados a acelerar a circulação de mercadorias, que, assim como o dinheiro, já alcançaram o estado de liquidez e querem ainda valer como obras. Esta é a contradição da arte contemporânea: abolir a obra e ao mesmo tempo estipular seu preço.
Giorgio Agamben nasceu em Roma em 1942. É um dos principais intelectuais de sua geração, autor de muitos livros e responsável pela edição italiana das obras de Walter Benjamin. Deu cursos em várias universidades europeias e norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York University em protesto à política de segurança dos Estados Unidos. Foi diretor de programa no Collège International de Philosophie de Paris. Mais recentemente ministrou aulas de Iconologia no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (Iuav),
Publicado em 31/08/2012 em http://blogdaboitempo.com.br/2012/08/31/deus-nao-morreu-ele-tornou-se-dinheiro-entrevista-com-giorgio-agamben/
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