domingo, 31 de março de 2013

A dura vida dos ateus em um Brasil cada vez mais evangélico

Por Eliane Brum) O diálogo aconteceu entre uma jornalista e um taxista na última sexta-feira. Ela entrou no táxi do ponto do Shopping Villa Lobos, em São Paulo, por volta das 19h30. Como estava escuro demais para ler o jornal, como ela sempre faz, puxou conversa com o motorista de táxi, como ela nunca faz. Falaram do trânsito (inevitável em São Paulo) que, naquela sexta-feira chuvosa e às vésperas de um feriadão, contra todos os prognósticos, estava bom. Depois, outro taxista emparelhou o carro na Pedroso de Moraes para pedir um “Bom Ar” emprestado ao colega, porque tinha carregado um passageiro “com cheiro de jaula”. Continuaram, e ela comentou que trabalharia no feriado. Ele perguntou o que ela fazia. “Sou jornalista”, ela disse. E ele: “Eu quero muito melhorar o meu português. Estudei, mas escrevo tudo errado”. Ele era jovem, menos de 30 anos. “O melhor jeito de melhorar o português é lendo”, ela sugeriu. “Eu estou lendo mais agora, já li quatro livros neste ano. Para quem não lia nada...”, ele contou. “O importante é ler o que você gosta”, ela estimulou. “O que eu quero agora é ler a Bíblia”. Foi neste ponto que o diálogo conquistou o direito a seguir com travessões. - Você é evangélico? – ela perguntou. - Sou! – ele respondeu, animado. - De que igreja? - Tenho ido na Novidade de Vida. Mas já fui na Bola de Neve. - Da Novidade de Vida eu nunca tinha ouvido falar, mas já li matérias sobre a Bola de Neve. É bacana a Novidade de Vida? - Tou gostando muito. A Bola de Neve também é bem legal. De vez em quando eu vou lá. - Legal. - De que religião você é? - Eu não tenho religião. Sou ateia. - Deus me livre! Vai lá na Bola de Neve. - Não, eu não sou religiosa. Sou ateia. - Deus me livre! - Engraçado isso. Eu respeito a sua escolha, mas você não respeita a minha. - (riso nervoso). - Eu sou uma pessoa decente, honesta, trato as pessoas com respeito, trabalho duro e tento fazer a minha parte para o mundo ser um lugar melhor. Por que eu seria pior por não ter uma fé? - Por que as boas ações não salvam. - Não? - Só Jesus salva. Se você não aceitar Jesus, não será salva. - Mas eu não quero ser salva. - Deus me livre! - Eu não acredito em salvação. Acredito em viver cada dia da melhor forma possível. - Acho que você é espírita. - Não, já disse a você. Sou ateia. - É que Jesus não te pegou ainda. Mas ele vai pegar. - Olha, sinceramente, acho difícil que Jesus vá me pegar. Mas sabe o que eu acho curioso? Que eu não queira tirar a sua fé, mas você queira tirar a minha não fé. Eu não acho que você seja pior do que eu por ser evangélico, mas você parece achar que é melhor do que eu porque é evangélico. Não era Jesus que pregava a tolerância? - É, talvez seja melhor a gente mudar de assunto... O taxista estava confuso. A passageira era ateia, mas parecia do bem. Era tranquila, doce e divertida. Mas ele fora doutrinado para acreditar que um ateu é uma espécie de Satanás. Como resolver esse impasse? (Talvez ele tenha lembrado, naquele momento, que o pastor avisara que o diabo assumia formas muito sedutoras para roubar a alma dos crentes. Mas, como não dá para ler pensamentos, só é possível afirmar que o taxista parecia viver um embate interno: ele não conseguia se convencer de que a mulher que agora falava sobre o cartão do banco que tinha perdido era a personificação do mal.) Chegaram ao destino depois de mais algumas conversas corriqueiras. Ao se despedir, ela agradeceu a corrida e desejou a ele um bom fim de semana e uma boa noite. Ele retribuiu. E então, não conseguiu conter-se: - Veja se aparece lá na igreja! – gritou, quando ela abria a porta. - Veja se vira ateu! – ela retribuiu, bem humorada, antes de fechá-la. Ainda deu tempo de ouvir uma risada nervosa. A parábola do taxista me faz pensar em como a vida dos ateus poderá ser dura num Brasil cada vez mais evangélico – ou cada vez mais neopentecostal, já que é esta a característica das igrejas evangélicas que mais crescem. O catolicismo – no mundo contemporâneo, bem sublinhado – mantém uma relação de tolerância com o ateísmo. Por várias razões. Entre elas, a de que é possível ser católico – e não praticante. O fato de você não frequentar a igreja nem pagar o dízimo não chama maior atenção no Brasil católico nem condena ninguém ao inferno. Outra razão importante é que o catolicismo está disseminado na cultura, entrelaçado a uma forma de ver o mundo que influencia inclusive os ateus. Ser ateu num país de maioria católica nunca ameaçou a convivência entre os vizinhos. Ou entre taxistas e passageiros. Já com os evangélicos neopentecostais, caso das inúmeras igrejas que se multiplicam com nomes cada vez mais imaginativos pelas esquinas das grandes e das pequenas cidades, pelos sertões e pela floresta amazônica, o caso é diferente. E não faço aqui nenhum juízo de valor sobre a fé católica ou a dos neopentecostais. Cada um tem o direito de professar a fé que quiser – assim como a sua não fé. Meu interesse é tentar compreender como essa porção cada vez mais numerosa do país está mudando o modo de ver o mundo e o modo de se relacionar com a cultura. Está mudando a forma de ser brasileiro. Por que os ateus são uma ameaça às novas denominações evangélicas? Porque as neopentecostais – e não falo aqui nenhuma novidade – são constituídas no modo capitalista. Regidas, portanto, pelas leis de mercado. Por isso, nessas novas igrejas, não há como ser um evangélico não praticante. É possível, como o taxista exemplifica muito bem, pular de uma para outra, como um consumidor diante de vitrines que tentam seduzi-lo a entrar na loja pelo brilho de suas ofertas. Essa dificuldade de “fidelizar um fiel”, ao gerir a igreja como um modelo de negócio, obriga as neopentecostais a uma disputa de mercado cada vez mais agressiva e também a buscar fatias ainda inexploradas. É preciso que os fiéis estejam dentro das igrejas – e elas estão sempre de portas abertas – para consumir um dos muitos produtos milagrosos ou para serem consumidos por doações em dinheiro ou em espécie. O templo é um shopping da fé, com as vantagens e as desvantagens que isso implica. É também por essa razão que a Igreja Católica, que em períodos de sua longa história atraiu fiéis com ossos de santos e passes para o céu, vive hoje o dilema de ser ameaçada pela vulgaridade das relações capitalistas numa fé de mercado. Dilema que procura resolver de uma maneira bastante inteligente, ao manter a salvo a tradição que tem lhe garantido poder e influência há dois mil anos, mas ao mesmo tempo estimular sua versão de mercado, encarnada pelos carismáticos. Como uma espécie de vanguarda, que contém o avanço das tropas “inimigas” lá na frente sem comprometer a integridade do exército que se mantém mais atrás, padres pop star como Marcelo Rossi e movimentos como a Canção Nova têm sido estratégicos para reduzir a sangria de fiéis para as neopentecostais. Não fosse esse tipo de abordagem mais agressiva e possivelmente já existiria uma porção ainda maior de evangélicos no país. Tudo indica que a parábola do taxista se tornará cada vez mais frequente nas ruas do Brasil – em novas e ferozes versões. Afinal, não há nada mais ameaçador para o mercado do que quem está fora do mercado por convicção. E quem está fora do mercado da fé? Os ateus. É possível convencer um católico, um espírita ou um umbandista a mudar de religião. Mas é bem mais difícil – quando não impossível – converter um ateu. Para quem não acredita na existência de Deus, qualquer produto religioso, seja ele material, como um travesseiro que cura doenças, ou subjetivo, como o conforto da vida eterna, não tem qualquer apelo. Seria como vender gelo para um esquimó. Tenho muitos amigos ateus. E eles me contam que têm evitado se apresentar dessa maneira porque a reação é cada vez mais hostil. Por enquanto, a reação é como a do taxista: “Deus me livre!”. Mas percebem que o cerco se aperta e, a qualquer momento, temem que alguém possa empunhar um punhado de dentes de alho diante deles ou iniciar um exorcismo ali mesmo, no sinal fechado ou na padaria da esquina. Acuados, têm preferido declarar-se “agnósticos”. Com sorte, parte dos crentes pode ficar em dúvida e pensar que é alguma igreja nova. Já conhecia a “Bola de Neve” (ou “Bola de Neve Church, para os íntimos”, como diz o seu site), mas nunca tinha ouvido falar da “Novidade de Vida”. Busquei o site da igreja na internet. Na página de abertura, me deparei com uma preleção intitulada: “O perigo da tolerância”. O texto fala sobre as famílias, afirma que Deus não é tolerante e incita os fiéis a não tolerar o que não venha de Deus. Tolerar “coisas erradas” é o mesmo que “criar demônios de estimação”. Entre as muitas frases exemplares, uma se destaca: “Hoje em dia, o mal da sociedade tem sido a Tolerância (em negrito e em maiúscula)”. Deus me livre!, um ateu talvez tenha vontade de dizer. Mas nem esse conforto lhe resta. Ainda que o crescimento evangélico no Brasil venha sendo investigado tanto pela academia como pelo jornalismo, é pouco para a profundidade das mudanças que tem trazido à vida cotidiana do país. As transformações no modo de ser brasileiro talvez sejam maiores do que possa parecer à primeira vista. Talvez estejam alterando o “homem cordial” – não no sentido estrito conferido por Sérgio Buarque de Holanda, mas no sentido atribuído pelo senso comum. Me arriscaria a dizer que a liberdade de credo – e, portanto, também de não credo – determinada pela Constituição está sendo solapada na prática do dia a dia. Não deixa de ser curioso que, no século XXI, ser ateu volte a ter um conteúdo revolucionário. Mas, depois que Sarah Sheeva, uma das filhas de Pepeu Gomes e Baby do Brasil, passou a pastorear mulheres virgens – ou com vontade de voltar a ser – em busca de príncipes encantados, na “Igreja Celular Internacional”, nada mais me surpreende. Se Deus existe, que nos livre de sermos obrigados a acreditar nele. Original em http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2011/11/dura-vida-dos-ateus-em-um-brasil-cada-vez-mais-evangelico.html

Verdade: uma tentativa de compreensão

Esclarecimento: Esta conferência a pedido da Comissão Nacional da Verdade foi preparada no intuito de provocar uma reflexão e um debate em torno da questão da verdade. Entretanto, no dia da apresentação na Assembléia Legislativa de São Paulo, 25 de março de 2013, ela pareceu-me inadequada diante da emoção provocada pela memória dos sofrimentos de tantas mulheres vítimas da ditadura militar brasileira. Apesar dos limites, meu texto é oferecido a todas elas, especialmente a Inês Etienne Romeu, que através de sua vida cheia de coerência, sofrimentos, pequenas vitórias e alegrias testemunha que vale a pena lutar pela dignidade humana. Ivone Gebara Verdade: uma tentativa de compreensão Breve Introdução O que queremos dizer quando buscamos a verdade ou quando criamos uma Comissão Nacional da Verdade? Num primeiro momento podemos dizer que se estamos buscando a verdade é porque vivemos uma injustiça, um erro, um equivoco, uma mentira, uma situação dúbia, um engodo, uma falta de clareza que nos impedem de viver com dignidade e no respeito à nossa história. Nessa linha temos que perguntar quem é esse “nós” que vive nessa situação precisa? Há um nós pessoal, um nós grupal e um nós nacional mais amplo. Para cada caso é preciso enfrentar essa busca através de caminhos semelhantes e diferentes sendo que nenhum deles é isento das contradições e das motivações individualistas ou parciais que nos caracterizam. Quando se trata de um “nós” nacional parece que se quer corrigir uma história escrita e contada, se quer fazer aparecer o que não está presente na oficialidade contada em um tempo determinado, se quer lembrar o que permaneceu esquecido, embora vivo na memória e nos corpos de muitas e de muitos. E, nesse processo, queremos restaurar algo que chamamos verdade. Mas que verdade é esta? O que é essa verdade? A quem pertence? Haveria uma verdade para além dos fatos relatados, para além de nossas relações cotidianas sempre interpretadas segundo nossos critérios e as percepções de nossos corpos? Haveria algo que nos seria possível captar para além das muitas interpretações dos fatos e acontecimentos de nosso dia a dia? Haveria algo para além da história relatada nos jornais, divulgada pelos poderes estabelecidos, presente nos arquivos de muitas fontes ou narrada apenas por alguns? Haveria um valor talvez intrínseco aos acontecimentos que necessitasse aparecer e que pudesse ser chamado de “a verdade”? As perguntas se multiplicam, mas as respostas convincentes são escassas. Entretanto, o que fala mais alto é o sentimento de muitas/os de que há retificações, há novas informações que precisam ser dadas para sairmos de algumas das armadilhas nas quais nossa história coletiva dos tempos da ditadura militar no Brasil caiu. E, nessa história quero enfatizar de maneira particular algo da história das mulheres heroínas da liberdade e vítimas do obscurantismo do regime. A reflexão que proponho tenta de certa forma desatar alguns nós que a questão da verdade nos faz encontrar. O surpreendente é que ao tentar desatar um deles percebemos que seu interior é constituído por outros tantos nós menores de tal forma que acabamos nos convencendo que esse processo é sem fim. Entretanto, empreender tal caminho enche-nos de entusiasmo e de desejos de descobrir mais alguns fios ocultos do tecido humano que nos constitui, muito embora sempre deparemos com a maior complexidade da vida e de nossa história comum. Apesar delas, vale à pena adentrar um pouco mais nos múltiplos meandros daquilo que chamamos “verdade” para aprender algo mais de nossa própria humanidade. Nesse aprendizado conhecer algo da constituição etimológica de algumas palavras que usamos correntemente é uma vereda que poderá nos ajudar a entender a história do que buscamos. 2 Nesse sentido podemos dizer que a “verdade” tem história, e uma história sem fim na própria história da humanidade. 1. Buscando compreender a palavra “verdade” A palavra verdade vem do grego alethea que significa desvelamento, desocultamento. Mas, o que é desocultado ou desvelado? A palavra LETE constitutiva da palavra alethea = verdade, tem a ver com a mitologia grega. Lete é um dos rios do Hades e conta-se que aqueles que bebessem de suas águas ou mesmo as tocassem experimentariam o completo esquecimento de seus atos. O fato é que todos nós em porções maiores ou menores bebemos das águas de Lete e por isso mesmo Lete corre em nossas veias e é constitutivo de nosso corpo e de nossas ações. Encobrir, esquecer é próprio dos seres humanos. Entretanto, o esquecimento total nos aniquila como seres humanos e não nos permite sermos íntegros uns com os outros. Por isso apesar de sermos Lete somos mais do que isso, visto que o esquecimento ou o ocultamento dos nossos atos tem conseqüências sociais imensas. Algumas tradições míticas falam também de outro rio, o Mnemósine cujas águas frias eram propícias à memória. Beber delas fazia recordar coisas esquecidas e podia-se até alcançar a onisciência. Por isso podemos dizer que em todos os acontecimentos somos memória e esquecimento, somos Lete e Mnemósine. É nesse sentido que aletheia é a suspensão do esquecimento, é a lembrança daquilo que foi esquecido, é a reconstituição e recuperação dos pedaços de nossa história deixados de lado. Nesse sentido, creio que uma Comissão da Verdade tem que beber da Mnemósine coletiva, ou seja, da memória coletiva para finalmente tocar algo mais do mundo de alethea sempre em movimento, sempre sendo de novo interpretada, redescoberta por outras e outros, contada sempre de novo, pois ninguém é dono da totalidade de nossa história. Para além das muitas interpretações filosóficas sobre o que seria verdade, das múltiplas explicações subjetivas que damos a ela e das emoções que nos envolvem dependendo do que estamos vivendo, há alguns pontos que a meu ver permitem observar aspectos que poderiam ser chamados “objetivos”. Tomo a palavra “objetivo” num sentido bastante factual e pragmático sabendo das contradições que envolvem esse termo. Por exemplo, se houve um acidente de carro na rua e um morto exposto no chão. Antes de saber como foi o acidente, de quem é a culpa, se ele morreu por escolha ou por outra causa, vejo-me diante de um fato: há um morto na rua, vítima de um acidente. Este acontecimento não pode ser simplesmente negado e não é sem conseqüências para a sociedade. Para além das interpretações que podem envolver essa morte há um “objeto”, o cadáver que os passantes podem ver ou o cadáver exposto num salão funerário ou o cadáver do qual constatamos a existência, mas que desapareceu de nossos olhos. As testemunhas são as responsáveis primeiras para informar sobre o acontecimento e delinear assim sua interpretação. Para além de todas as interpretações econômicas, políticas e sociais da fome na Biafra ou em outro lugar do mundo há um fato observável e inegável: Pessoas morrem de fome! Trata-se de poder sentir com nosso corpo, ver com nossos olhos e ouvir com nossos ouvidos a destruição terrível de seres humanos que morrem por falta de alimento. Mais uma vez as testemunhas 3 falam disso e a elas nos fiamos quando somos convidadas a fazer algo. Há o fato envolto em meio às muitas interpretações. A proximidade do morto, do faminto, do humilhado através de nossos laços afetivos permite que sintamos essa “verdade da morte” ou a “verdade da fome” ou a “verdade da violência contra as mulheres” de forma mais envolvente e de certa forma mais aguda do que em outras situações. E, a partir desse envolvimento emocional as nossas razões de buscar a verdade se encontram de certa forma diante da impossível neutralidade diante dos fatos. Por essas razões, para além das muitas razões emocionais ou justificações racionais que damos a alguns atos violentos, sobretudo no momento em que são realizados temos que admitir certo caráter objetivo do mal para que a própria vida em sociedade seja viável. Este caráter significa que houve de alguma maneira diminuição da qualidade de vida, uma produção de sofrimento atroz, uma violência desmesurada de uns contra outros e isto pode ser constatável para além da atribuição das responsabilidades. É isso que chamo de caráter objetivo. Esse caráter objetivo é de certa forma anterior a qualquer julgamento ou qualquer juízo de valor ou qualquer merecimento ou responsabilidade pessoal visto que é uma exigência de convivência humana. Somos seres interiores e exteriores ao mesmo tempo. E, essa realidade me permite proclamar também certo caráter objetivo da verdade, embora inscrito nas mil e uma interpretações e justificações subjetivas. Este claro-escuro de nosso “estar no mundo” é manifestado na própria etimologia grega da palavra verdade e na diversidade de suas expressões nos vários campos da atividade humana. A partir dessa perspectiva gostaria de abrir nossa reflexão para o campo das relações entre verdade, cultura e religião visto que essa teve um papel fundamental não só no estabelecimento da ditadura como na luta contra ela. E, além disso, creio ser muito importante compreender como a religião contribuiu para o desenvolvimento de uma cultura da submissão e da naturalização de muitos comportamentos de maneira particular em relação às mulheres. 2. Verdade, Cultura e Religião Quando fazemos a relação entre verdade e religião as coisas se complicam dada a complexidade do fenômeno religioso. A religião, sobretudo a do Livro Sagrado, se pretende fundada em verdades de forma que os membros de uma ou outra instituição religiosa têm a convicção de que orientam suas vidas pela verdade ou ao menos por uma verdade. É como se afirmassem a existência de uma verdade pré-factual, para além dos acontecimentos embora, mostrando-se nos acontecimentos, uma verdade pré-existente e ao mesmo tempo revelada aos fiéis. Não posso entrar no caráter da verdade religiosa nesse espaço apesar de sua grande importância. Fico no tema das influencias que alguns conteúdos religiosos tiveram na história e política do período da ditadura militar seguindo as investigações da Comissão Nacional da Verdade. Dada a cultura religiosa brasileira de corte majoritariamente cristão muitas vezes cometemos o equivoco de pensar o período da ditadura militar apenas a partir da cumplicidade das autoridades religiosas. De fato não podemos negar certa cumplicidade, sobretudo quando desde o governo de João Goulart as igrejas cristãs temiam o avanço do que chamavam 4 comunismo. Tinham medo, sobretudo, que o comunismo ateu pudesse até banir as igrejas cristãs da vida do país. O cristianismo como parte constitutiva da cultura nacional tinha que ser preservado e mantido nas suas diferentes expressões históricas e na sua representação das forças sociais. Entende-se o medo de muitos e inclusive o espanto quando, por exemplo, operárias e empregadas domésticas católicas foram presas e acusadas de comunismo por pertencerem a JOC (Juventude Católica Operária). Elas, que também eram contra o comunismo foram ser acusadas de comunistas. As razões de sua prisão não eram claras e isso era parte do terrorismo do Estado ditatorial e da incompetência de seus funcionários. O que me parece importante lembrar é que muitos dos torturadores, dos delegados, dos militares em todos os escalões declaravam-se cristãos. E seu cristianismo tinha uma espécie de característica de cruzada ou de combate pela fé contra seus inimigos reais ou imaginários. Veja-se, por exemplo, a importância dos santos guerreiros na cultura popular brasileira como São Jorge e Santo Expedito. É nesse sentido que para muitos, os militares foram bem-vindos como defensores da fé cristã ou como um caminho importante para se combater o novo deicídio tramado pelas esquerdas do país com apoio de governos estrangeiros declaradamente ateus. Por isso, alguns consideraram as ditaduras militares como movimentos de restauração da cultura cristã ameaçada pelos novos infiéis do século XX. Nessa época não só a propriedade privada estava ameaçada, mas também os valores cristãos, a crença em um Deus criador e todo poderoso e especialmente a família. Isto explica em parte o sucesso da Cruzada do Rosário, fundada pelo padre irlandês radicado nos Estados Unidos – Patrick Peyton. Os que encabeçavam as manifestações de rua não eram apenas membros do clero católico, mas, sobretudo senhoras de classe média do Rio de Janeiro que bravamente empunhavam seu rosário e rezavam Ave - Maria enquanto João Goulart e Leonel Brizola discursavam. Queriam mostrar que o rosário da virgem era capaz de salvar a pátria das ameaças comunistas. Queriam mais uma vez mostra a importância do “Brasil para Cristo” lema tantas vezes repetido por diferentes movimentos religiosos. Essa cultura cristã católica é em certo sentido mais do que o nome de um arcebispo ou de um cardeal ou mesmo de um padre ou pastor muito embora não se possa diminuir a responsabilidade deles. Entretanto, quero sublinhar que a responsabilidade pelos crimes da ditadura é maior e mais ampla do que se pensa, especialmente no que se refere a nossa formação cultural cristã. Houve sem dúvida uma cultura da ordem e da obediência desenvolvida por um tipo de cristianismo católico romano e protestante que não apenas formou as elites capitalistas do país de forma a manter privilégios e hierarquias. Formou também o povão para igualmente manter as hierarquias e fazer respeitar a ordem estabelecida muitas vezes identificada à vontade divina. Isto explica por que funcionários do governo, militares, diretores e diretoras de escolas públicas, vigias e guardas privados foram obedientes às ordens e em alguns casos chegaram a denunciar “o mal” que descobriam nos colegas. Caso contrário não apenas perderiam seus cargos ou seu emprego, mas seriam considerados inimigos do regime e desobedientes às leis da Igreja. Estas afirmações me fazem lembrar um jovem torturador ao qual fui exposta quando minha amiga Carmen fora presa em 1970. No dia da prisão eu estava com ela e fomos do colégio estadual Giacomo Stávale na Freguesia do Ó, à sua casa com a polícia militar nos acompanhando. Um dos policiais, jovem ainda, que foi também seu torturador vasculhou na minha presença seu quarto. Encontrou em 5 uma das gavetas um crucifixo. Pegou-o com reverência e olhando para ele disse: “faço tudo por ele. É ele que me dá forças”. Para mim esse é um pequeno exemplo de que o espírito religioso é complexo e pode ter varias posturas segundo as convicções ideológicas de cada um. Não combate necessariamente a tortura infligida aos outros pelo simples fato de que este é um ato ilícito. Mas quando esse ato vem justificado como defesa da pátria, da família e de Deus muita coisa é permitida. Por isso não só os freqüentadores assíduos das igrejas são religiosos, mas há uma cultura religiosa da ordem e da submissão que impregna ainda hoje nossa cultura nacional. Esta é de certa forma responsável pela produção da violência simbólica e cultural que convive conosco. O presidente Pinochet do Chile era católico romano declarado. Nunca deixou de comparecer as missas privadas que eram celebradas em sua residência e foi valorizado por muitos fiéis e eclesiásticos por sua fé e, sobretudo quando declarou a Virgem Maria patrona do exército chileno. O símbolo feminino máximo do catolicismo romano tornara-se de certa forma cúmplice das ações do exército chileno na sua luta anticomunista. A Virgem Maria podia estar nos altares e ser venerada e exaltada. Mas as mulheres de carne e osso, estas continuavam submissas, violadas e aprisionadas. A distância entre o simbolismo religioso cultural e a vida cotidiana das mulheres é enorme. A cultura da obediência às hierarquias, o respeito às autoridades civis, militares e religiosas criou em nós também uma cultura de subserviência muitas vezes apenas formal, mas bastante forte, sobretudo por ocasião dos regimes ditatoriais. A delação e a culpabilização do chamado infrator ou infratora sem a verificação das causas de sua infração fizeram parte dessa cultura autoritária na qual ainda vivemos em parte. A autoridade quase sempre tem razão. Além disso, o apelo ao demônio e suas garras assim como a necessidade de estar sempre vigilantes foi uma constante na educação cristã. Mais uma vez, sem negar a necessidade de apontar os responsáveis mais diretos pelos crimes da ditadura e das muitas formas de autoritarismo social e cultural é preciso reconhecer os limites de nossa responsabilidade individual em muitas situações. Lembro-me do livro “Ressurreição” de Léon Tolstoi em que o personagem principal, o príncipe Niekhliudof observa prisioneiros/as levados aos trabalhos forçados na Sibéria em pleno verão russo. As condições físicas e psíquicas das centenas de presos, muitos dos quais sem clareza sobre seus pretensos crimes, eram bastante precárias. Alguns morreram pelo caminho antes de chegar ao seu destino. As condições de transporte eram incomodas e precárias faltando até água para saciar a sede dos prisioneiros. Niekhliudof se pergunta então sobre os responsáveis pelos assassinatos visto que ele mesmo conclui que essas pessoas mantidas nessas condições estavam sendo literalmente assassinadas. Quem as está assassinando? Teria sido o responsável por assinar a sentença condenatória, teriam sido os policiais da prisão, a guarda responsável pelo traslado, os funcionários do trem, o imperador... Mas todos individualmente pareciam ser pessoas boas, dóceis, cordiais, bons chefes de família. Nenhum deles poderia ser acusado pelo crime e nenhum assumia que era também um criminoso. No entanto os mortos e os moribundos estavam ali. Quem os matou e quem os estava matando? De fato podemos dizer que os governos são os responsáveis, mas não só. A cultura hierárquica da obediência, a valorização dos que têm poder econômico, político e religioso, a crença numa divindade toda 6 poderosa são também formadores desta cultura de violência e privilégios. São capazes de gerar regimes que torturam: homens que torturam homens, homens que violam mulheres, mulheres que enganam homens, acusações vazias, crenças vazias e violência plena. Essa dimensão coletiva da construção social e cultural na linha da espiral da violência com todas as conseqüências criminosas não pode ser esquecida. Vivemos numa sociedade onde apesar das responsabilidades mais diretas, todos nós, somos igualmente responsáveis na medida em que apenas cumprimos ordens sem nos interessarmos pela vida daquelas e daqueles a quem estas ordens estão dirigidas. A máquina administrativa privada, pública e religiosa quer apenas funcionar bem e guardar privilégios. Por isso qualquer compaixão, quaisquer atos de misericórdia precisam ser esquecidos ou simplesmente eliminados das leis que regem as instâncias punitivas da sociedade. O Cristianismo como instituição religiosa oficial na sua pluralidade social e política quase sempre esteve do lado dos reis, príncipes, imperadores, ditadores. Permaneceu do lado da chamada ordem social vigente sendo assim legitimadores dessa ordem através das crenças religiosas e do “poder espiritual” que detinham. Entretanto, também houve os párias cristãos, aquelas e aqueles que intuíram algo diferente na experiência do Movimento de Jesus. Intuíram que os grandes poderes se equivalem e que são capazes de tirar a vida, sobretudo dos pequenos. Por isso seu deus não está nas alturas, mas na carne múltipla da terra e no corpo da humanidade. Por essa fé e essa aposta na vida reinterpretaram a tradição do Movimento de Jesus reinventando-o segundo o sentido que encontravam na sua vida e na história. Propuseram-se a fermentar a massa, a curar corações feridos, a ajudar os prisioneiros a desatar suas correntes. E seguem até hoje no anonimato da grande história. Esse/as párias também atuaram de forma anônima nos tempos da ditadura. Lembro-me de Ir Catarina (da Congregação de S. Vicente de Paulo) que trabalhava como enfermeira no Hospital Militar do Recife. Através de sua maneira de ser conseguia descobrir os nomes dos presos hospitalizados e até mandar mensagens de suas famílias para alguns. 3. Verdade e Política Idealmente podemos falar da importância do bem comum e entendê-lo como cuidado dos cidadãos e cidadãs na manutenção de relações justas e igualitárias. Esse ideal é também o objetivo da política, ou seja, a arte de organizar a convivência comum nos diferentes setores da vida humana garantindo aos cidadãos e cidadãs o direito a uma vida digna. Entretanto, quando saímos desse ideal de reconhecida importância, dessa espécie de horizonte que nos ajuda a caminhar na história, deparamos com a realidade cotidiana das relações humanas e com a dificuldade de explicá-las e entendê-las. Deparamos com a transgressão das leis, a mentira nas relações sociais mais amplas, a competição entre poderes fruto da busca de benefícios pessoais e do conhecido egoísmo humano. Essa é uma história bem conhecida muito embora cada vez que a constatamos no nosso hoje nos surpreenda como se fosse uma grande novidade.7 Em grandes rasgos quero retomá-la em relação à responsabilidade política coletiva que temos, sobretudo nesse momento de restauração da verdade dos sofrimentos e esperanças de tantas pessoas vítimas da insanidade da ditadura militar. Creio que há uma ilusão em pensarmos que se pode chegar à verdade como se chega ao final de uma rua. O mesmo acontece quando se fala da justiça e do amor. É fácil ouvir as pessoas dizerem “queremos a verdade dos fatos”, “queremos que a verdade apareça” ou “queremos justiça” ou “a solução é amar”, sobretudo quando o leite já foi derramado. Mas o que buscamos a partir desses desejos genéricos? Suspeito que cada grupo tem a sua versão da verdade e que embora para alguns ela seja uma mentira, ela não deixa de ser objeto de lutas e litígios para a manutenção dessa mentira. O conflito entre as muitas versões da verdade política têm a ver com o caráter ideológico partidário que se move entre os interesses das elites donas do poder, da classe média querendo usufruir dos benefícios e da grande maioria em situação de pobreza querendo aceder aos benefícios que a sociedade poderia lhes oferecer. Não há inocentes muito embora se possa falar de diferença de responsabilidades. Entretanto esse esquema parece ser cada vez mais simplista quando nos enfrentamos aos sujeitos atuantes em nossa história e mais especialmente quando se trata de crimes políticos. A justificativa dada pelo poder estabelecido em relação aos crimes políticos tem quase sempre a ver com o caminho necessário para a defesa do povo, a defesa dos princípios morais de uma nação, a necessidade de manutenção da ordem contra intervenções estrangeiras ou contra aventureiros que querem se apossar do poder do país. E esta justificativa tende a revestir-se de um caráter pretensamente ético em vista do bem da maioria como se o bem de uma elite significasse o bem de toda a população. Entretanto, infelizmente a grande maioria das pessoas entra nos jogos do poder, pois se extasiam diante daquilo que ele pode oferecer. Acolhe a versão da oficialidade quase como uma crença misturada com o medo e o desejo de auto-conservação da vida. E, se possível até desenvolvem o anseio de aceder a uma situação de vida como aquela que os bem nascidos ou os bem sucedidos usufruem. Podem, entretanto duvidar no seu foro íntimo da retidão das políticas das elites, mas o enfrentamento real do povão é muitas vezes coibido pelo medo à repressão ou pelo medo de perder os poucos privilégios que têm e em parte pelo desejo íntimo de ser favorecido por algum benefício concedido pelos poderosos. Isso explica como certos conhecimentos de pessoas influentes e até a propina funcionou e funciona para abrandar certos julgamentos de crimes contra a nação. A verdade do jogo de poderes, sobretudo econômicos, não consegue ser totalmente desvendada, não aparece à luz do dia como um jogo de forças desiguais e interesses opostos. Alguns possuem os poderes de repressão e outros de saquear, roubar, matar a luz do dia de diferentes formas. A cumplicidade entre esses poderes e funções é cada vez maior. Basta lembrar-se dos altos salários que recebem deputados, juízes e outros funcionários dos governos. Por isso podem se permitir reservar parte de seus benefícios à instituição da propina e à corrupção daqueles dos quais necessitam para manter seu segredo de enriquecimento ilícito vestido de árduo trabalho em favor da população. E nem falo dos crimes das empresas de serviço público e de suas políticas tecnológicas que acabam impedindo a continuação de uma reivindicação justa e vencendo as pessoas pelo cansaço. A morosidade no atendimento, as longas esperas, as distâncias a percorrer inviabilizam cada vez mais o acesso dos menos favorecidos aos bens e 8 direitos disponíveis. A burocratização das relações e dos serviços é uma nova ditadura que impede a vivência do direito e da liberdade. Este é o poder dos que se mantém no poder com seus múltiplos privilégios e benefícios. Por outro lado aparecem os criminosos/as políticos. Quem são eles e elas? A história dos povos nos ensina que foram tecidos de várias classes sociais e de várias formações culturais e religiosas movidos pelo ideal de mudar as regras do jogo de privilégios. Dele participaram pessoas as mais diferentes com desejos políticos diferentes, com paixões conflituosas, mas que num momento histórico preciso uniram forças para lutar contra quem julgavam ser o inimigo maior do povo. Eram tomados pela chama da liberdade e ela embora os motivasse e impulsionasse não os impedia de viver em contradições individuais flagrantes. Basta ver o tratamento sexista que movimentos de esquerda da década de 1960 e 1970 davam às mulheres e as publicações posteriores sobre esse período. Havia uma imagem dos revolucionários que povoava a esquerda latino-americana e brasileira. Eram os jovens barbudos parecidos com Che Guevara que habitavam os sonhos revolucionários inclusive das mulheres. Sobre o período da ditadura se falava do movimento estudantil, sobre os presos políticos e as lutas do povo no masculino como se quisesse ainda uma vez invisibilizar a ação e a vida de tantas mulheres. O resgate dessa memória feminina revolucionária é uma conquista de nosso século. Mas, a grande questão é que estas pessoas, homens e mulheres, eram consideradas criminosas políticas porque se organizavam de diferentes maneiras para defender os interesses populares muito embora não tivessem diretamente o apoio das massas populares. Despertavam ódio dos donos do poder e no tempo da ditadura militar no Brasil foram perseguidas, presas, torturadas e mortas como inimigas do bem da pátria. Os criminosos/as políticos foram idealistas convencidos da possibilidade de instaurar relações justas entre as pessoas e os povos. E seus ideais também os levaram a excessos que lhes permitiram usar as mesmas armas dos que oprimiam o povo. Mediram forças e sucumbiram na tomada do poder. Entretanto, foram vitoriosos na história da inspiração dos grandes humanismos que caracterizam a história humana. Os poderes estabelecidos criam as situações de intolerância e são intolerantes com os que os criticam como formas de manter seu poder. A contaminação desses vícios de poder é tremenda, de forma que a corrupção pequena ou grande passa a ser uma moeda de troca para se viver mais ou menos bem na sociedade. Hoje, apesar de alguns avanços, ainda é assim. Inventamos formas mais sutis, porém mais eficazes de dominação e adormecimento das consciências. E é ainda nesse meio que outros modelos de “criminosos /as políticos” nos vários setores da sociedade continuam levantando suas vozes para proclamar o amor da humanidade pela humanidade apesar dos crimes, traições e assassinatos do passado e do presente. Nós mulheres tivemos e temos um papel de grande importância nessa “criminalidade política” e luta contra os sistemas de naturalização dos comportamentos. Essa criminalidade é sem dúvida às avessas porque na realidade é uma luta por nossa dignidade que se manifesta de diferentes maneiras e especialmente a partir de uma nova maneira de compreender as relações entre os seres humanos. Sem dúvida falar de criminalidade pode induzir a equívocos. Entretanto ao menos provisoriamente quero manter a expressão equivocada para indicar essa 9 mistura de razões e irracionalidades de nossa história e do necessário discernimento diante dela. 4. Verdade e Gênero Tentar falar das relações entre verdade e gênero no final dessa reflexão é intencional visto que gostaria de chamar a nossa atenção para um problema que passa quase sempre despercebido pela maioria das pessoas. É que a verdade histórica quer na sua relação com as coisas simples da vida cotidiana, quer na religião, na política e nos cárceres é marcada pelas relações de poder entre mulheres e homens. Relações de gênero são relações de poder que atravessam o conjunto de nossa história em diferentes direções e intensidades. Essas relações são expressas através de comportamentos, valores e práticas culturais que de certa forma foram naturalizadas. Em outros termos foram interpretadas como sendo próprias da natureza feminina ou da natureza masculina e, por isso mesmo, consideradas quase imutáveis. Por exemplo, se fala das necessidades sexuais dos homens como algo evidente enquanto as necessidades sexuais das mulheres como algo secundário. De forma que se vai permitir aos homens uma prática sexual que mesmo sendo desrespeitosa poderá ser justificada pela necessidade que a natureza lhes impôs. O mesmo em relação ao exercício do poder político, antes considerado como prerrogativa da natureza masculina. Essa concepção naturalista tenta a desculpar os homens de eventuais deslizes e culpabilizar as mulheres por comportamentos semelhantes. No processo de dês-velamento próprio da realidade factual que é o mesmo processo da manifestação pública do que chamamos “verdade” no ser humano, há um nó que em geral foi esquecido pelos principais analistas das ditaduras militares da América latina. Trata-se da questão de gênero nos processos repressivos e nos processos de restauração da verdade. Falar da questão de gênero nos processos repressivos é indicar a presença de uma relação particular entre mulheres vítimas e homens torturadores ou inquisidores. Poderia ser o contrário também, mas creio que isto aconteceu bem pouco nos calabouços da ditadura brasileira. O mais comum foi as mulheres sofrerem sevícias sexuais especialmente nas áreas mais sensíveis de sua genitalidade, nos seus seios e mamilos ou serem testemunhas de sevícias feitas as suas crianças. A primeira coisa que gostaria de chamar a atenção é o fato de que a presença das mulheres nas lutas contra a ditadura, nas organizações clandestinas e nas prisões ter sido considerada uma espécie de aberração. Nós mulheres, pela simples participação nessas lutas já estávamos fugindo do destino doméstico que a natureza nos reservou. Pelo simples fato de estarmos lutando já éramos consideradas “desnaturadas” ou traidoras da natureza, desobedientes aos papéis sociais aos quais deveríamos obedecer. Estar ali era de certa forma querer igualar-se a um macho, era simbolicamente querer subir de categoria antropológica e social metendo-nos num lugar que não poderia ser o nosso. Éramos simplesmente intrusas. Por isso, despertávamos uma raiva irracional quase incontida por parte de muitos homens. Quantas mulheres presas não ouviram de seus algozes: “Puta você está aqui porque quer” ou “Puta 10 você saiu do fogão e agora paga”. Muitas de nós fomos penalizadas porque ocupamos lugares considerados impróprios às mulheres porque eram possessões masculinas garantidas pela natureza. Sem dúvida uma concepção patriarcal de natureza que ainda subsiste em muitos meios. Além disso, continuamos a ser objetos de prazer fácil mesmo nas situações trágicas de uma sessão de tortura. Quantas mulheres testemunharam a masturbação dos algozes diante de seus corpos nus! Quantas não se sentiram usadas pelas palavras e gestos obscenos que reduziam seus corpos a objetos de consumo imediato! Até nas prisões os corpos femininos continuaram a ser utilizados como objetos de prazer, uma forma de prazer que denuncia as zonas obscuras de algumas masculinidades perversas. Não é aqui o lugar de enumerarmos as muitas formas desses crimes, mas de refletir como e porque os corpos femininos tiveram um tratamento diferenciado visto que não foram apenas torturados para extrair deles confissões políticas ou como castigo por pertenceram a algum grupo político contra a ditadura dominante. Uma forma de perversão e de ódio se manifestou igualmente. Um ódio e uma atração quase ancestral em relação ao corpo feminino. Uma vontade de possuir e destruir para além dos motivos aparentes alegados. Chamo de ódio e atração ancestral a um comportamento cultural verificado por algumas estudiosas desse fenômeno de agressão do masculino contra o feminino nas situações as mais inusitadas. Para além da reconhecida simetria entre os seres humanos, há uma assimetria fundamental entre feminino e masculino que permite a agressão da genitalidade especialmente da vagina, o orifício visível condutor de vida. É a vagina que é penetrada tantas vezes, sangrada, ferida como se o agressor quisesse destruir algo que o incomoda, algo que tem a ver com a força vital feminina e com a própria história biológica masculina. Sem dúvida, a agressão não é pensada. Irrompe como um impulso animal agressor, defensor de si e capaz de destruir os fantasmas e mitos contidos na vagina. A agressão se dá como um impaciente desejo de ver a outra reduzida a pedaços, entregue, submissa, gemendo quase sem vida. Nesse sadismo assassino há como que a experiência da vitória não sobre a mentira ou a falta de liberdade, mas a vitória mórbida contra a raiva ancestral que parece enfim acalmada pelo derramamento de sangue fruto das mãos masculinas. São elas que as fazem sangrar e isto lhes provoca uma complexa mistura de poderes e sentimentos. A outra, a mulher violada frente ao violador deixa de ser um ser humano semelhante e diferente. Deixa de ser parecida com a mãe, a esposa ou a filha para tornar-se coisa, objeto a ser subjugado e contido à força. Nesse particular a arte cinematográfica trouxe às telas muitos filmes em que esse tipo de violência e suas conseqüências foram mostrados de forma contundente. Denunciar os crimes cometidos contra as mulheres nas prisões da ditadura é denunciar ao mesmo tempo uma cultura hierárquica da superioridade masculina que continua presente em nossa sociedade, na política e nas religiões. É denunciar não só o tráfico continuado de corpos, mas a demarcação da territorialidade do poder masculino através da posse das mulheres, sobretudo das jovens. Tal comportamento já foi inúmeras vezes denunciado, sobretudo, nos 11 meios populares onde cada traficante quer ser o rei. Por essa razão denunciar essa cultura de dominação é começar sempre de novo a introduzir processos educativos para que a sexualidade humana não seja o campo de batalha onde uns parecem ser os ganhadores, pois se vingando de corpos sagrados pensam afirmar sua pretensa superioridade. O ódio ancestral é também uma construção cultural que pode ser desconstruída e lentamente substituída pelo respeito ao corpo alheio, à sua intimidade e verdade. Há muito caminho a andar para que nossa humanidade se torne húmus criador uns para os outros. Breve conclusão Tudo isso me leva a uma breve conclusão talvez dissonante em relação ao conjunto acima, talvez como expressão de uma voz em mim meio caótica e obscura, mas que quando a ouço me ajuda a avançar em meio as muitas pedras do caminho. Tenho um sentimento de que muita coisa do que fazemos para restaurar alguns fatos em nome do que chamamos verdade não leva de fato a que nos tornemos melhores ou mais misericordiosos uns com os outros. Às vezes tenho a impressão que corremos o risco de cumprir um formalismo ético ou uma vingança escondida sem avaliar as conseqüências reais do que estamos fazendo, sobretudo em relação aos processos educativos sociais que deveriam ser prioritários. O investimento nacional de uma “Comissão da Verdade” deveria conter não apenas a restauração de aspectos de nossa história passada, mas criar condições mais efetivas para que as diferentes instâncias sociais participem da atual construção nacional de forma mais respeitosa. Essa construção tem em vista o presente, ou seja, a preocupação real com as novas formas de violência em vigor hoje, formas de eliminação sumária de pessoas, conflitos de poderes desde os campos de futebol até os mendigos e homossexuais assassinados nas ruas das grandes cidades, desde os jogos violentos de computação que incitam o virtual a transformar-se em realidade até o tráfico de drogas e de seres humanos. O processo da “aletheia” ou de descobrimento e memória dos fatos só vale na medida em que servir para que o nosso hoje possa ser construído com mais dignidade e que a compaixão possa de fato fazer morada em nossos corações e em nossas políticas locais e nacionais. E isso como ingrediente fundamental que deve estar presente em todas as instâncias sociais e políticas, em todas as religiões e instituições educativas, em todos os hospitais e prisões desse país. Pensar a verdade é apenas um convite para vivê-la no cotidiano de nossas vidas, no enfrentamento conosco mesmas e no enfrentamento com as instituições que construímos e mantemos. Por isso a Comissão Nacional da Verdade mesmo terminando seu trabalho em 2014 deve continuar vivendo em nós como memória e imaginação de um futuro de dignidade para todas e todos nós que vivemos e construímos esse extraordinário país. Ivone Gebara Escritora,filósofa e teóloga feminista. Março 2013. Original em http://www.cnv.gov.br/images/pdf/texto_ivone_gerbara.pdf

sábado, 30 de março de 2013

As empregadas e a escravidão

Por: Urariano Mota Por caminhos tortos, Joaquim Nabuco teve uma das suas iluminações quando escreveu: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Sim, por caminhos tortos, porque depois de uma frase tão magnífica, de gênio do futuro, Joaquim Nabuco sem pausa continuou, num encanto que esconde a crueldade: “Ela (a escravidão) espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor...”. Penso na primeira frase de Nabuco, a da escravidão como característica do Brasil, nestes dias em que o Congresso dá um primeiro passo para a superação da herança maldita. Não quero falar aqui sobre as conquistas legais para as empregadas domésticas, da nova lei sobre a qual os jornais tanto têm falado como num aviso: “patroas, cuidado, domésticas agora têm direitos”. Falo e penso nas empregadas que vi e tenho visto no Recife e em São Paulo. No aeroporto de Guarulhos eu vi Danielle Winits, a famosa atriz da Globo, muito envolvida com o seu notebook, concentradíssima, enquanto o filhinho de cabelos louros berrava. Para quê? A sua empregada, vestida em odioso e engomado uniforme, aquele que anuncia “sou de outra classe”, cuidava para que a perdida beleza da atriz não fosse importunada. Tão natural... os fãs de telenovelas não viam nada de mais na mucama no aeroporto, pois faziam gracinhas para o bobinho lindinho. Em outra ocasião, numa terça-feira de carnaval à noite, vi no Recife uma jovem à minha frente, empenhada em ver a passagem de um maracatu. Tão africano, não é? Junto a ela uma senhora – desta vez sem uniforme, mas carregando no rosto e modos a servidão – abrigava nos braços um bebê. Os tambores, as fantasias, eram de matar qualquer atenção dirigida à criança, que afinal estava bem cuidada, sob uma corda invisível que amarrava a empregada. Então eu, no limite da raiva, oferecei o meu lugar à sua escrava sobrevivente, com a frase: “a senhora, por favor, venha com o seu filho aqui para a frente”. A empregada quis se explicar, coitada, morta de vergonha, enquanto a doce mamãe não entendia o chamamento irônico, pois me olhava como se eu fosse um marciano. Espantada, parecia me dizer: “como o meu filho pode ser dessa aí?”. O desconhecimento de direitos elementares às empregadas domésticas, como privacidade, respeito, a falta de atenção para ver nelas uma pessoa igual aos patrões, creio que sobreviverá até mesmo à nova lei. É histórico no Brasil, atravessa gerações e atinge até mesmo os mais jovens e pessoas que se declaram à esquerda. É como se estivesse no sangue, como se fosse genético, de um caráter irreprimível. Até antes delas vão a democracia e a igualdade. A partir delas é outra história. Quantas vezes vemos nos restaurantes jovens casais com suas lindas crias, tendo ao lado as escravas, que nem sequer têm direito a provar da bebida e da comida? Isso nos domingos e feriados, pois esses são os dias das patroazinhas se divertirem. É justo, não é? O feminismo se faz para que mulheres sejam cidadãs, mas a cidadania só alcança os iguais, é claro. Em todas as situações desconfortáveis, se ousamos estranhar, ou agir com pelo menos um olhar atravessado para essa infâmia, recebemos a resposta de que as domésticas são pessoas da família. Parentes fora do sangue, apenas separadas por deveres, notamos. É o que se pode chamar de uma opressão disfarçada em laços afetivos. A ex-escrava é considerada como um bem amoroso, íntimo, mas que por ser da casa come na cozinha e se deita entre as galinhas do quintal. O que, afinal, é mais limpo que se deitar com os porcos no chiqueiro. Não estranhem, porque não exagero. Não faz muito tempo no Recife era assim. E por que estranhar esse tratamento? Olhem os grandes e largos e luxuosos apartamentos do Rio e de São Paulo, abram os olhos para os minúsculos quartinhos de empregadas, entrem nos seus banheiros, que Millôr dizia serem a prova de que no Brasil empregadas não têm sexo no WC. Não posso concluir sem observar que os pobres copiam os ricos, e que o tratamento dado às domésticas se estende em democracia para todas as classes sociais. Menos para as empregadas, é claro. "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, dizia Nabuco. Urariano Mota é jornalista, escritor, poeta e colaborador do Vermelho. Original em http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=209566&id_secao=10

sexta-feira, 29 de março de 2013

“Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro”

Entrevista com Giorgio Agamben “O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro”, afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Peppe Salvà e publicada por Ragusa News, 16-08-2012. Giorgio Agamben é um dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, foi definido pelo Times e pelo Le Monde como uma das dez mais importantes cabeças pensantes do mundo. Pelo segundo ano consecutivo ele transcorreu um longo período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista. Segundo ele, “a nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governabilidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas”. Assim, “a tarefa que nos espera consiste em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”, afima Agamben. A tradução é de Selvino J. Assmann, professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC [e tradutor de três das quatro obras de Agamben publicadas pela Boitempo]. *** O governo Monti invoca a crise e o estado de necessidade, e parece ser a única saída tanto da catástrofe financeira quanto das formas indecentes que o poder havia assumido na Itália. A convocação de Monti era a única saída, ou poderia, pelo contrário, servir de pretexto para impor uma séria limitação às liberdades democráticas? “Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. “Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional. Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a ideia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas. A crise econômica que ameaça levar consigo parte dos Estados europeus pode ser vista como condição de crise de toda a modernidade? A crise atravessada pela Europa não é apenas um problema econômico, como se gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da relação com o passado. O conhecimento do passado é o único caminho de acesso ao presente. É procurando compreender o presente que os seres humanos – pelo menos nós, europeus – são obrigados a interrogar o passado. Eu disse “nós, europeus”, pois me parece que, se admitirmos que a palavra “Europa” tenha um sentido, ele, como hoje aparece como evidente, não pode ser nem político, nem religioso e menos ainda econômico, mas talvez consista nisso, no fato de que o homem europeu – à diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos americanos, para quem a história e o passado têm um significado completamente diferente – pode ter acesso à sua verdade unicamente através de um confronto com o passado, unicamente fazendo as contas com a sua história. O passado não é, pois, apenas um patrimônio de bens e de tradições, de memórias e de saberes, mas também e sobretudo um componente antropológico essencial do homem europeu, que só pode ter acesso ao presente olhando, de cada vez, para o que ele foi. Daí nasce a relação especial que os países europeus (a Itália, ou melhor, a Sicília, sob este ponto de vista é exemplar) têm com relação às suas cidades, às suas obras de arte, à sua paisagem: não se trata de conservar bens mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se, isso sim, da própria realidade da Europa, da sua indisponível sobrevivência. Neste sentido, ao destruírem, com o cimento, com as autopistas e a Alta Velocidade, a paisagem italiana, os especuladores não nos privam apenas de um bem, mas destroem a nossa própria identidade. A própria expressão “bens culturais” é enganadora, pois sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e por à venda a própria identidade. Há muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa nascente, Alexandre Kojève, afirmava que o homo sapiens havia chegado ao fim de sua história e já não tinha nada diante de si a não ser duas possibilidades: o acesso a uma animalidade pós-histórica (encarnado pela american way of life) ou o esnobismo (encarnado pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas cerimônias do chá, esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar a todo conteúdo histórico, a Europa poderia oferecer a alternativa de uma cultura que continua sendo humana e vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se com a sua própria história na sua totalidade e capaz de alcançar, a partir deste confronto, uma nova vida. A sua obra mais conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação entre poder político e vida nua, e evidencia as dificuldades presentes nos dois termos. Qual é o ponto de mediação possível entre os dois pólos? Minhas investigações mostraram que o poder soberano se fundamenta, desde a sua origem, na separação entre vida nua (a vida biológica, que, na Grécia, encontrava seu lugar na casa) e vida politicamente qualificada (que tinha seu lugar na cidade). A vida nua foi excluída da política e, ao mesmo tempo, foi incluída e capturada através da sua exclusão. Neste sentido, a vida nua é o fundamento negativo do poder. Tal separação atinge sua forma extrema na biopolítica moderna, na qual o cuidado e a decisão sobre a vida nua se tornam aquilo que está em jogo na política. O que aconteceu nos estados totalitários do século XX reside no fato de que é o poder (também na forma da ciência) que decide, em última análise, sobre o que é uma vida humana e sobre o que ela não é. Contra isso, se trata de pensar numa política das formas de vida, a saber, de uma vida que nunca seja separável da sua forma, que jamais seja vida nua. O mal-estar, para usar um eufemismo, com que o ser humano comum se põe frente ao mundo da política tem a ver especificamente com a condição italiana ou é de algum modo inevitável? Acredito que atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além do desencanto e da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o planeta inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical das categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas. E que este modelo seja, do ponto de vista do poder, mais econômico e funcional é provado pelo fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas através da mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade as próprias decisões com a violência. As formas da política por nós conhecidas – o Estado nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Elas continuam vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste, portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”. O estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de soberania, hoje em dia parece assumir o caráter de normalidade, mas os cidadãos ficam perdidos perante a incerteza na qual vivem cotidianamente. É possível atenuar esta sensação? Vivemos há decênios num estado de exceção que se tornou regra, exatamente assim como acontece na economia em que a crise se tornou a condição normal. O estado de exceção – que deveria sempre ser limitado no tempo – é, pelo contrário, o modelo normal de governo, e isso precisamente nos estados que se dizem democráticos. Poucos sabem que as normas introduzidas, em matéria de segurança, depois do 11 de setembro (na Itália já se havia começado a partir dos anos de chumbo) são piores do que aquelas que vigoravam sob o fascismo. E os crimes contra a humanidade cometidos durante o nazismo foram possibilitados exatamente pelo fato de Hitler, logo depois que assumiu o poder, ter proclamado um estado de exceção que nunca foi revogado. E certamente ele não dispunha das possibilidades de controle (dados biométricos, videocâmeras, celulares, cartões de crédito) próprias dos estados contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje que o Estado considera todo cidadão um terrorista virtual. Isso não pode senão piorar e tornar impossível aquela participação na política que deveria definir a democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por videocâmeras não é mais um lugar público: é uma prisão. A grande autoridade que muitos atribuem a estudiosos que, como o senhor, investigam a natureza do poder político poderá trazer-nos esperanças de que, dizendo-o de forma banal, o futuro será melhor do que o presente? Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta a Ruge: “a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”. Podemos fazer-lhe uma pergunta sobre a aula que o senhor deu em Scicli? Houve quem lesse a conclusão que se refere a Piero Guccione como se fosse uma homenagem devida a uma amizade enraizada no tempo, enquanto outros viram nela uma indicação de como sair do xeque-mate no qual a arte contemporânea está envolvida. Trata-se de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli, pequena cidade em que moram alguns dos mais importantes pintores vivos. A situação da arte hoje em dia é talvez o lugar exemplar para compreendermos a crise na relação com o passado, de que acabamos de falar. O único lugar em que o passado pode viver é o presente, e se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, o museu e a arte, que daquele passado é a figura eminente, se tornam lugares problemáticos. Em uma sociedade que já não sabe o que fazer do seu passado, a arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis da mercantilização. E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo que são os museus de arte contemporânea, as duas coisas coincidem. Duchamp talvez tenha sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se meteu. O que faz Duchamp quando inventa o ready-made? Ele toma um objeto de uso qualquer, por exemplo, um vaso sanitário, e, introduzindo-o num museu, o força a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente – a não ser o breve instante que dura o efeito do estranhamento e da surpresa – na realidade nada alcança aqui a presença: nem a obra, pois se trata de um objeto de uso qualquer, produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de forma alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista, porque aquele que assina com um irônico nome falso o vaso sanitário não age como artista, mas, se muito, como filósofo ou crítico, ou, conforme gostava de dizer Duchamp, como “alguém que respira”, um simples ser vivo. Em todo caso, certamente ele não queria produzir uma obra de arte, mas desobstruir o caminhar da arte, fechada entre o museu e a mercantilização. Vocês sabem: o que de fato aconteceu é que um conluio, infelizmente ainda ativo, de hábeis especuladores e de “vivos” transformou o ready-made em obra de arte. E a chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp, enchendo com não-obras e performances em museus, que são meros organismos do mercado, destinados a acelerar a circulação de mercadorias, que, assim como o dinheiro, já alcançaram o estado de liquidez e querem ainda valer como obras. Esta é a contradição da arte contemporânea: abolir a obra e ao mesmo tempo estipular seu preço. Giorgio Agamben nasceu em Roma em 1942. É um dos principais intelectuais de sua geração, autor de muitos livros e responsável pela edição italiana das obras de Walter Benjamin. Deu cursos em várias universidades europeias e norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York University em protesto à política de segurança dos Estados Unidos. Foi diretor de programa no Collège International de Philosophie de Paris. Mais recentemente ministrou aulas de Iconologia no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (Iuav), Publicado em 31/08/2012 em http://blogdaboitempo.com.br/2012/08/31/deus-nao-morreu-ele-tornou-se-dinheiro-entrevista-com-giorgio-agamben/

sexta-feira, 8 de março de 2013

A morte de um revolucionário de Nuestra América

Por Renán Vega Cantor Tradução: Joaquim Lisboa Neto “A morte não é verdade quando se cumpriu bem a obra da vida” José Martí A terça-feira 5 de março de 2013 ficará na história deste continente como o dia em que faleceu o comandante Hugo Chávez Frías, presidente constitucional da Venezuela, um revolucionário dignamente integral de Nuestra América, cuja imagem, ideal e projeto já formam parte da legendária constelação de lutadores anti-imperialistas e anticapitalistas deste lado do planeta. Nesta hora de profunda dor para os lutadores do mundo, é necessário recordar o caráter revolucionário da vida e obra deste líder da Venezuela, com independência das incertezas políticas que o futuro imediato lhe depare a este país e a toda América Latina, pelo precoce desaparecimento físico deste notável personagem. 1 Sem pretender ser exaustivo em momentos em que a tristeza nubla o pensamento, basta mencionar algumas de suas contribuições revolucionárias. Para começar, a figura e o projeto de Hugo Chávez emergiram quando o neoliberalismo – isto é, o capitalismo realmente existente – se vangloriava vaidoso por Nuestra América e pelo mundo, sem desafios nem obstáculos à vista, enceguecido pelas falácias do “fim da história” e do “choque de civilizações”, propagados pelo imperialismo estadunidense e seus súditos locais. Este neoliberalismo vinha acompanhado da retórica da globalização, como uma suposta realidade irreversível ante a qual nada se podia fazer e à qual deviam se submeter os países, o que significava na prática aceitar o domínio das Empresas Transnacionais e suportar como algo normal o saqueio dos recursos naturais. Eram os momentos de embriaguez, euforia e esplendor da “nova ordem mundial”, que havia sido proclamada por George Bush pai, logo após a Primeira Guerra do Golfo [1990-1991] e a dissolução da União Soviética [1991] e que havia conduzido nos Estados Unidos ao apogeu da “nova economia” durante o governo de Bill Clinton [1993-2001], e a supor que essa efêmera prosperidade especulativa, baseada na bolha punto.com, ia ser eterna. Pois bem, para o imperialismo, essa embriaguez se converteu numa amarga ressaca quando na Venezuela se começaram a produzir notáveis mudanças a partir de 1998, ano em que Hugo Chávez ganhou as eleições e convocou uma Assembleia Constituinte que pôs fim ao domínio partidarista do punto fijismo e questionou o modelo neoliberal que havia afundado na miséria a maior parte dos venezuelanos. A primeira contribuição revolucionária de Hugo Chávez se apóia, então, em ter nadado contra a corrente, em instantes em que ninguém se atrevia a fazê-lo, e todos aceitavam como evidente o fundamentalismo de mercado, a globalização e o Consenso de Washington. Questionar o neoliberalismo e embarcar num projeto diferente, visto em perspectiva histórica, se converteu num feito revolucionário porque rompeu águas em meio à aceitação submissa da ordem existente. Isso supôs, na prática, que desde Venezuela se impulsionaram propostas encaminhadas, por exemplo, a reorganizar a Organização de Países Exportadores de Petróleo [OPEP], o que envolveu a recuperação do preço do cru para os países petroleiros, algo que até esse momento se considerava como herético, porque supostamente os preços das matérias-primas não poderiam subir, porque assim o determinava o “mercado”. 2 Em segundo lugar, e acompanhando ao anterior, o discurso e a prática de Hugo Chávez assumiram uma postura anti-imperialista, porque rapidamente se evidenciou que os Estados Unidos – em concordância com sua vocação histórica de considerar nosso continente como seu “pátio traseiro” – não tolera nenhuma política nacionalista, soberana e independente e está disposto a fazer tudo o que seja para liquidar os líderes e governos que se atrevam a questionar sua hegemonia. E, efetivamente, na medida em que o projeto bolivariano na Venezuela projetava uma recuperação da soberania nacional e energética e propunha políticas redistributivas de tipo interno, imediatamente os interesses coligados das classes dominantes locais e dos Estados Unidos começaram a operar para impedir a consolidação desse projeto, como se evidenciou durante estes 15 anos, porém cujos fatos mais evidentes foram o fracassado golpe de Estado de 2002 e a paralisação petroleira de PDVSA, entre fins do mesmo ano e inícios de 2003. O anti-imperialismo de Chávez se manifestou nos mais diversos cenários onde, diferentemente de todos os sipaios pró-estadunidenses [como os da União Europeia ou da América Latina], falou claro e chamou ao pão, pão, e ao vinho, vinho. Foi dos poucos que, no mundo, se atreveu a criticar os crimes imperialistas em Iraque e Afeganistão, assim como as ações genocidas de Israel contra os palestinos ou contra o Líbano, um feito notável em meio à aceitação desses crimes por parte da maior parte dos governos latino-americanos. Porém, o mais significativo, quanto a conquistas desta luta anti-imperialista, se manifestou no enterro do projeto imperial da ALCA, que feneceu em 2004 nas terras de Argentina, e que não pôde ser imposto ao continente na forma original, como havia sido concebido pelos Estados Unidos, que buscava ter um mercado aberto à sua disposição para seus investimentos, que cobriria desde o norte do México até a Patagônia. O fracasso da ALCA está diretamente relacionado com a decisiva atuação de Hugo Chávez, quem se encarregou não só de denunciá-la, como também em propor outras formas de integração para o continente. 3 Justamente, este é um terceiro aporte revolucionário de Hugo Chávez, porque recuperou o legado integracionista de Simón Bolívar, José Martí, José Artigas, César Augusto Sandino e outros lutadores de Nuestra América. Esses projetos de integração, que antes eram simples ideias, começaram a converter-se em realidade [como a ALBA e o MERCOSUL] graças à decisiva participação do governo bolivariano da Venezuela e a seu propósito de buscar outros caminhos diferentes à falsa integração neoliberal hegemonizada pelos Estados Unidos. Evidentemente, isto se baseou na atualização do ideal bolivariano de uma pátria grande, na qual os povos se ajudem mutuamente, algo que Chávez fez efetivo com o estabelecimento de mecanismos comerciais solidários, como os que efetuou com Cuba e com outros países do Caribe. Se poderá dizer que essa integração está engatinhando e que não avançou tanto como devia, porém esse fato certo não pode ignorar que no continente latino-americano se voltou a falar de um tema tabu para as classes dominantes de cada país, que é o da integração mais além dos Estados Unidos e sem os Estados Unidos. 4 Em quarto lugar, Chávez voltou a pôr sobre o tapete de discussão e reflexão o horizonte do socialismo, porque se atreveu a propor, contra as correntes dominantes, inclusive no seio de uma esquerda temente e submissa ao capitalismo, que era necessário construir outro tipo de sociedade, diferente da de hoje imperante em nível mundial. A esse projeto ele denominou de o “socialismo do século XXI”, com o qual resgatou uma palavra que havia sido esquecida no mundo após o colapso da URSS nos inícios da década dos 1990 e quando se pensava que esse assunto havia desaparecido de qualquer agenda política, ante o que se considerava como um irreversível triunfo do capitalismo. Ainda que se alegue que nem na Venezuela nem em outros países da região se tenha avançado na construção de tal socialismo, não se pode desconhecer a importância de voltar a perguntar-se, como o fez o falecido presidente venezuelano, se o capitalismo é eterno e imodificável e se as lutas que contra ele se empreendam não podem projetar outro tipo de sociedade. Isto faz parte do abc de qualquer programa revolucionário anticapitalista desde o século XIX, que se acreditava sepultado, porém que na Venezuela foi recuperado e novamente aparece no imaginário de importantes lutadores e pensadores anticapitalistas da América e do mundo. Na raiz desta recuperação conceitual de tipo político, setores da esquerda voltaram a falar em voz alta e sem temores da necessidade de construir outra ordem, que vá mais além do capitalismo, que aprenda das experiências negativas do século XX, sem renegar o caráter igualitário e democrático de um projeto anticapitalista. 5 Em quinto lugar, socialismo quer dizer, em sentido profundo, lutar pela igualdade – que não é sinônimo de homogeneização e erradicação das diferenças –, uma palavra que quase havia desaparecido da conceitualização política e inclusive do léxico corrente, e que foi substituída por um vocábulo que tem sido intoxicado pelo neoliberalismo – via Banco Mundial –, que é o de equidade. Este termo, nesta lógica mercantil, não tem nada a ver com a igualdade, senão que é o reconhecimento das desigualdades como algo natural, em nome do qual se afirma que se devem proporcionar iguais oportunidades na competição – entre um gerente de uma multinacional e um trabalhador assalariado, para assinalar um caso, para que ambos concorram nas mesmas condições para ocupar um lugar na classe executiva de um avião transcontinental. Como encarnação de um projeto socialista, Chávez enfrentou a desigualdade na Venezuela, com resultados positivos quanto à diminuição da pobreza nesse país, por ter permitido o acesso à educação, à saúde, ao lazer e à cultura importantes setores da população, antes excluídos de todos esses direitos. Com suas políticas redistributivas, Chávez voltou a evidenciar a importância do Estado como um ator fundamental da sociedade, o que levou a impulsionar o gasto público na direção das maiorias sociais, em momentos em que os países europeus, onde tanto se presumia de haver construído sociedades de bem-estar mais ou menos igualitárias, assumem a fundo o projeto neoliberal e aumentam as desigualdades, ao tempo em que privatizam a saúde e a educação. A luta pela igualdade levou a que na Venezuela importantes setores da população, até há pouco tempo subjugados por sua condição de classe e de “raça”, tenham adquirido consciência de seus direitos, de sua força coletiva e de seu poder de decisão, já que foram os suportes essenciais dos 14 triunfos eleitorais de Hugo Chávez, e os que impediram que se consolidasse o golpe de Estado de abril de 2002. Daí o grande carisma e ascendência de Chávez entre esses setores invisíveis e esquecidos pelo capitalismo periférico venezuelano, que nos últimos anos – desde o caracazo de 1989 – emergiram como o sujeito social mais importante da história contemporânea desse país. E daí também o ódio visceral que contra eles manifestam as classes dominantes e as classes médias da Venezuela e do resto do mundo, porque finalmente o que não se aceita e se despreza é que os pobres, os cafuzos, os afros, os indígenas, as mulheres pobres tenham direitos e se proclamem como iguais aos “brancos” pró-imperialistas. Este mesmo fato explica essa grande onda internacional de racismo desfechada contra o comandante Hugo Chávez na autodenominada “imprensa livre” do mundo, na qual se incluem a rádio, a televisão e os meios impressos, que nos últimos 15 anos bateram todos os recordes de sevícia desinformativa, de mentiras e intrigas, quando de falar de Venezuela e de seu presidente se trata. Esta campanha forma parte já da história universal da infâmia, na qual sicários e criminosos, com microfone e com processador de palavras, recorreram a todas as mentiras para enlamear a vida de Chávez e para qualificá-lo como “ditador”, “tirano” e outros epítetos, entre os quais aparecem denominações racistas, que não vamos recordar aqui, por sua baixeza moral. 6 Hugo Chávez foi um personagem notável na política venezuelana e latino-americana por seu carisma, sua influência popular, sua capacidade discursiva, sua vivacidade, sua originalidade, sua inventiva, seus dotes histriônicos, porém, sobretudo por atuar como um educador e pedagogo prático. Este é outro de seus aportes revolucionários, que já se evidenciou desde quando participou num mal-sucedido golpe de Estado contra o regime neoliberal de Carlos Andrés Pérez em 1992, porque as palavras pronunciadas no momento de render-se tiveram grande impacto na população, e fizeram-no conhecido ante a Venezuela e o mundo. Desse momento adiante, as milhares de reuniões, assembleias, conversas e conferências nas quais participou se converteram em eventos de tipo educativo, que conferiram um caráter revolucionário a sua ação e a sua palavra, isto é, foram dardos contundentes contra as evidências estabelecidas como verdades inquestionáveis sobre o capitalismo, o neoliberalismo e a globalização. Para entender este assunto, é bom recordar que os políticos contemporâneos se desempenham como se fossem bonecos amestrados, como os apresentadores de televisão, que se limitam a repetir sempre o mesmo discurso, frio, aborrecido, sem alma e sem vida, sem abandonar o roteiro preestabelecido e entoando sempre seu insuportável vocabulário neoliberal. Chávez rompeu com tudo isso ao empregar uma linguagem simples, descomplicada, direta, sem usar eufemismos e atrevendo-se a chamar os criminosos por seu nome [como fez com George Bush na ONU ou com um ex-presidente colombiano ao qual qualificou, como o que é, de mafioso], porque se baseava na máxima atribuída a José Gervasio Artigas, e que lhe agradava citar, “com a verdade nem ofendo nem temo”. Porém, há outra contribuição revolucionária de Hugo Chávez em suas alocuções e conferências: a reivindicação da leitura. Isto é importante recordar num momento em que ninguém lê nada, começando pelos presidentes e funcionários governamentais – ou acaso alguém com dois dedos além do nariz crê seriamente que alguma vez leram um livro personagens tão “cultos” como Carlos Menem, Álvaro Uribe Vélez, Juan Manuel Santos, José María Aznar, Juan Carlos de Bourbón, George Bush ou Mariano Rajoy?–. Nas conversações e encontros que Chávez realizava, costumava citar e fazer alusões a autores diversos da tradição socialista e revolucionária de Nuestra América e do mundo, e vale recordar suas menções a Eduardo Galeano, István Mészaros, León Trotsky, Noam Chomsky, entre alguns. E, ao mesmo tempo que em suas conversas mencionava livros e autores, também anunciava a necessidade de difundi-los, coisa que efetivamente se fez, porque na Venezuela se tem editado milhões de exemplares a baixos preços de clássicos do pensamento revolucionário universal. 7 Sem esgotar o assunto nesta nota, tais são alguns dos principais aportes revolucionários de Hugo Chávez, cuja figura e realizações já formam parte da história do continente e, sobretudo, da história dos esquecidos e dos vencidos. Chávez, como o proclamava sabiamente José Martí, foi um homem de seu tempo e de todos os tempos, porque soube encarnar no momento adequado um projeto antineoliberal e anti-imperialista para enfrentar o que se concebia como inatacável em seu país e no continente. Ele soube entender as necessidades mais sentidas do povo venezuelano, empobrecido e humilhado pelo capitalismo neoliberal e, nesse esforço por afrontar a miséria que esse sistema gera, fez contribuições reais ao ideário anticapitalista do mundo. Como alguma vez disse Jorge Plekhanov, ao analisar o papel do indivíduo na história: “Um grande homem, o é não porque suas particularidades individuais imprimam uma fisionomia individual aos grandes acontecimentos históricos, mas sim porque está dotado de particularidades que lhe convertem no indivíduo mais capaz de servir às grandes necessidades sociais de sua época”. E isso se aplica cabalmente ao caso de Chávez, que serviu às necessidades sociais não só do povo venezuelano como também dos povos de todo o continente. Certamente, Chávez foi, como todos nós, um ser humano de carne e osso, com suas próprias contradições e limitações, tanto em suas formulações como em suas realizações práticas. É elementar que os revolucionários são seres humanos e não deuses, em razão do que acertam e se equivocam, porém justamente são revolucionários, porque maiores são seus acertos que seus erros, porque estão convencidos da importância de lutar contra a ordem estabelecida, em troca do qual dão tudo, até a própria vida, e porque com sua luta deixam um esplendor de exemplo e dignidade, que os engrandece ante seus contemporâneos e serve de legado a outras gerações. Chávez foi um formidável revolucionário – um vocábulo que não tem nada a ver com as capelas de iluminados de todas as seitas de esquerda –, que brindou mais aportes reais à luta por outra sociedade que centenas de doutrinados puristas, que, tanto hoje como ontem, o qualificaram como “populista”, “caudilho” ou coisas pelo estilo. E seu caráter de revolucionário fica evidenciado nestes momentos se nos fixamos em quem são os que choram por ele e os que se alegram por sua morte. Choram-no os pobres de seu país e muitos pobres de outros lugares do mundo. Choram os que entendem o que significa a perda de um valioso líder da esquerda internacional. Choram-no os que na Venezuela e em outros países sentiram o que significa a solidariedade, em instantes em que se impôs como se fosse parte da natureza humana o egoísmo e o individualismo neoliberal. Estes são os que nos importam, enquanto as bestas carniceiras da morte [encabeçadas pelo Partido Republicano dos Estados Unidos] se lambem de felicidade pela morte de um perigoso inimigo, como o expressam sem estardalhaço, através de seus pornográficos meios de incomunicação, chamem-se El País, Clarín, El Tiempo, CNN, Caracol, RCN ou como seja. Chávez já é um patrimônio dos revolucionários do mundo e seu nome permanecerá na memória não somente do povo venezuelano, mas também dos povos de Nuestra América e isto deve orgulhar aos revolucionários, por dolorosa e dura que seja sua partida, e pelas difíceis e incertas que sejam as lutas que se avizinham. Enquanto isso, todos os seus detratores e seus inimigos do capitalismo e do imperialismo, entre esses muitos pigmeus morais e insignificantes indivíduos que se desempenham como presidentes de muitos países – representantes incondicionais dos exploradores e das classes dominantes – não ficarão sequer no cesto de lixo da história e mais rápido do que previsto serão esquecidos. Porque, como disse com intensidade César Vallejo em seu vibrante poema Masa, que parafraseamos: “Não morras comandante, te queremos tanto”, e cujo belo texto é uma alegoria da maneira como a memória do revolucionário Hugo Chávez permanecerá em Nuestra América: Ao fim da batalha, e morto o combatente, veio para ele um homem e lhe disse: “Não morras, te amo tanto!” Porém o cadáver, ai!, seguiu morrendo. Dois dele se aproximaram e repetiram: “Não nos deixes! Coragem! Volte à vida!” Porém o cadáver, ai!, seguiu morrendo. Acorreram a ele vinte, cem, mil, quinhentos mil, clamando: “Tanto amor, e não poder nada contra a morte!” Porém o cadáver, ai!, seguiu morrendo. Cercaram-no milhões de indivíduos, com uma súplica comum: “Fica, irmão!” Porém o cadáver, ai!, seguiu morrendo. Então, todos os homens da Terra cercaram-no; viu-lhes, o cadáver, triste, emocionado; incorpora-se lentamente abraçou o primeiro homem; lançou-se a andar... (*) Renán Vega Cantor é historiador. Professor titular da Universidad Pedagógica Nacional, de Bogotá, Colômbia. Autor e compilador dos livros Marx y el siglo XXI (2 volúmenes), Editorial Pensamiento Crítico, Bogotá, 1998-1999; Gente muy Rebelde, (4 volúmenes), Editorial Pensamiento Crítico, Bogotá, 2002; Neoliberalismo: mito y realidad; El Caos Planetario, Ediciones Herramienta, 1999; entre outros. Prêmio Libertador, Venezuela, 2008.

sábado, 2 de março de 2013

As finanças secretas e caóticas da Igreja Católica

Marcelo Justo(Carta Maior) A investigação por lavagem de dinheiro do Banco do Vaticano, as indenizações pelos escândalos sexuais e o número decrescente de fieis e doações são alguns dos problemas que o próximo pontífice herdará. Em entrevista à Carta Maior, o jornalista Jason Berry, fala sobre as finanças secretas da Igreja Católica, tema que foi objeto de sua investigação nos últimos 25 anos. Essa história, segundo ele, remonta à guerra fria e à massiva injeção de dinheiro da CIA no Vaticano para neutralizar a ameaça do Partido Comunista Italiano. A reportagem é de Marcelo Justo. Marcelo Justo Londres - O Papa Bento XVI abandona o barco em meio a sérios problemas financeiros. A investigação por lavagem de dinheiro do Banco do Vaticano, as indenizações pelos escândalos sexuais e o número decrescente de fieis e doações são alguns dos problemas que o próximo pontífice herdará. Ninguém sabe exatamente quanto gasta a Igreja Católica em nível mundial, mas segundo uma investigação da revista inglesa The Economist, publicada no ano passado com base em dados de 2010, a cifra rondaria os 170 bilhões de dólares. Em um livro sobre as finanças secretas da Igreja Católica, o jornalista Jason Berry, que investigou o tema nos últimos 25 anos, afirma que a estrutura financeira da igreja é “caótica” e “opaca”. Em entrevista à Carta Maior, Berry falou das dificuldades econômicas do Vaticano que, para ele, remetem à guerra fria e à massiva injeção de dinheiro da CIA no Vaticano para neutralizar a ameaça do Partido Comunista Italiano, então o mais poderoso da Europa ocidental. Carta Maior: Como é a estrutura financeira da Igreja Católica em nível mundial? Jason Berry: A Igreja Católica é muito hierárquica, monárquica eu diria, com o Papa como líder e dioceses dirigidas por arcebispos e bispos em todo o globo. Mas, em virtude de seu próprio tamanho, é internamente caótica e ingovernável. Cada bispo trabalha em sua diocese como se estivesse comandando um principado. CM: O que sabemos de concreto sobre a riqueza do Vaticano? JB: Há uma absoluta opacidade nas contas. Quando o Vaticano declara suas rendas e gastos anuais não inclui o Instituto para as Obras de Religião, o IOR, mais popularmente conhecido como o Banco do Vaticano, cujos fundos são estimados em cerca de 2 bilhões de dólares. O IOR tem sido administrado em um clima de absoluta falta de transparência, o que o converteu em um veículo perfeito para o trânsito de todo tipo de fundos. Mas agora, com a investigação do Banco Central da Itália sobre lavagem de dinheiro, isso está mudando. CM: Segundo algumas informações, o Vaticano tem interesses em uma empresa de espaguete, no setor financeiro, aviação, propriedades e uma companhia cinematográfica. Diz-se, inclusive, que controla entre 7 e 10% da economia italiana. Mas, dada a opacidade de suas contas, até onde é possível confirmar essas informações? JB: Há informação disponível a instituições que nos permite saber onde está o dinheiro do Vaticano. Na Itália, o Vaticano investiu muito no Banco de Roma, que foi fundamental na reconstrução da Itália depois do “Risorgimento” no século XIX. Também tem negócios na área dos transportes públicos. A isso deve-se somar propriedades na própria Itália, na Europa e nos Estados Unidos. O Vaticano chegou a ser um dos proprietários do edifício Watergate, do famoso escândalo que provocou a renúncia de Richard Nixon. O grande tema hoje em dia é averiguar até onde prestou serviços a clientes que o utilizam como um banco “off shore”. CM: Que impacto econômico os escândalos sexuais tiveram nas finanças da igreja? JB: Nos Estados Unidos esse impacto foi muito forte. As dioceses e ordens religiosas pagaram mais de dois bilhões de dólares. Em muitas cidades tiveram que fechar igrejas. Los Angeles, Chicago e Boston, três das mais importantes arquidioceses, tiveram um rombo médio de 90 milhões de dólares em seus fundos de pensão. CM: Em seu livro “Vows of Silence” você fala do fundador dos Legionários de Cristo, o mexicano Marcial Maciel que chegou a controlar um império de 650 milhões de dólares e contou com a proteção do Papa João Paulo II, apesar das denúncias de abusos sexuais. Maciel teve fortes vínculos com o governo de Pinochet no Chile e com os governos da América Central. Há alguma figura equivalente na igreja de hoje? JB: Maciel foi o mais bem sucedido coletor que a igreja teve. Começou no final dos anos 40 buscando apoio de milionários católicos no México, Venezuela e Espanha durante a perseguição dos padres no México e pouco depois da guerra civil espanhola. Com este dinheiro, Maciel formou sua própria base de poder em Roma e se converteu no porta-voz do setor mais conservador e militante da igreja. Assim como fez com Franco, se vinculou muito com Pinochet no Chile. Nos Estados Unidos o próprio diretor da CIA durante os anos Reagan, William Casey, fez uma doação de centenas de milhares de dólares aos legionários. Maciel comportava-se como um político que viajava pelo mundo arrecadando fundos para fazer avançar a causa do catolicismo conservador e a agenda política conservadora. Mas a verdade era que toda sua ideologia encobria um delinquente sexual com poderosos contatos. Apesar de ter sido acusado de abusar de seminaristas, o Vaticano não o investigou até 2004, a pedido do cardeal Ratzinger, quando João Paulo II estava morrendo. Graças a isso sabemos que teve filhos com duas mulheres no México e que manteve ambos os lares com dinheiro da Legião de Cristo. O escândalo é que o Vaticano demorou tanto para investigá-lo e deixou que ele se transformasse em um Frankenstein. Não há hoje uma figura equivalente no que diz respeito à arrecadação de fundos. CM: Há uma longa história de escândalos nas finanças do Vaticano. Nos anos 80 houve o escândalo do Banco Ambrosiano e seu presidente, Roberto Calvi, que apareceu enforcado debaixo da ponte de Blackfriars em Londres. Calvi tinha fortes vínculos com o então presidente do Banco do Vaticano, o arcebispo estadunidense Paul Marcinkus. Há uma continuidade entre esses escândalos e os atuais problemas do banco? JB: Creio que na realidade é preciso retroagir à Segunda Guerra Mundial quando a CIA começou a transferir grandes somas para o Banco do Vaticano. Em 1948, foi a primeira eleição na qual o Partido Comunista italiano, convertido no mais importante da Europa, buscava o poder. Neste momento houve uma grande campanha nos Estados Unidos, patrocinada pelo governo, da qual participou Frank Sinatra, para financiar a democracia cristã. Este foi o começo da história do dinheiro que círculos dos serviços de inteligência estadunidenses para o Vaticano. Uma geração depois, com Roberto Calvi e Marcinkus, o banco havia se convertido em uma via muito lucrativa para a passagem de dinheiro. No final dos anos 80, o banco teve que pagar uma multa de 250 milhões de dólares. Já ali o banco funcionava como uma “off shore” para seus clientes privilegiados. Mas ainda falta muito por documentar sobre essa história. Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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