segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Por que eles querem que o Brasil esqueça Lula?

Por Saul Leblon

Respira-se um cheiro azedo de fardas, togas e ternos empapados da sofreguidão nervosa que marca as escaladas de demolição do Estado de Direito nos solavancos da História.
Consulte os anos 30 na Alemanha, os 50 do macarthismo norte-americano, os 60 da ditadura brasileira, os 70 do massacre chileno...Há um clima de dane-se o pudor por parte das elites e da escória que a serve.

Faz parte desses crepúsculos institucionais a perda dos bons modos e a convocação das milícias, enquanto o jornalismo isento finge não ver a curva ascendente do arbítrio.  Com a mesma desenvoltura com que se anistia montanhas de dólares remetidos ao exterior,  classifica-se o MST como ‘movimento criminoso’.  Persegue-se e intimida-se estudantes secundaristas com lista de nomes exigindo que se delate endereços de colegas ocupantes ...  Invade-se a bala dependências e movimentos sociais e  de metralhadora em punho escolas tomadas por adolescentes que reclamam o direito de opinar sobre a própria educação.
 
Ensaios da orquestra.
 
Decibéis crescentes, afiados pelo mesmo diapasão ecoam de diferentes pontos do país.  Só não ouve quem não quer.
 
Há dinheiro, patrocínio e poder em jogo na incapacidade auditiva para ouvir os gritos da democracia sendo violada na sala ao lado de onde se discute a ‘reconstrução do Brasil’.  A conveniência reflete a insurgência que se esboça.  A resistência ao golpe escapa ao que se supunha ser o alvo isolado e triturado pela centrífuga da Lava Jato.  Adolescentes falam o que a vastidão dos votos nulos, brancos e abstenções cifraram nas urnas municipais, quando suplantaram os vitoriosos de São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Porto Alegre...  Se as duas vozes se fundirem num idioma único, o que acontecerá?
 
O cheiro azedo exalado das fardas, togas e ternos de corte fino, empapados da sofreguidão  nervosa, reflete essa esquina incerta da História para a qual caminha o país.  A truculência policial e midiática sobe rápido os degraus da exceção.  Essa é a hora diante da qual a resistência progressista não pode piscar.  Daí a importância da campanha lançada neste dia 10 de novembro para sacudir a hesitação em defesa do óbvio.
 
O óbvio hoje começa por defender Lula.  Porque sem defender Lula, não será possível defender mais ninguém, e mais nada, do galope   desembestado da ganância no lombo da violência fardada e da cumplicidade togada.  Por ninguém, entenda-se o Brasil assalariado e o dos mais humildes.  A imensa maioria da população.  Aquela que vive do trabalho, depende de serviços públicos, tem seu destino  atado ao do país, ao do pre-sal, ao da reindustrialização,  ao da democracia social, carece de cidadania, respira salário mínimo e enxerga na previdência o único amparo à velhice e ao infortúnio.
 
Lula é a espinha histórica das costelas de resistência que precisam se unir para conter a demolição em marcha disso tudo.  Desempenha essa função por uma razão muito forte.  Essa que o milenarismo gauche parece ter esquecido --ou hesita em saber que sabe--  enquanto aguarda o juízo final  de Moro para recomeçar do zero.  ‘Recomeçar do zero’ é a profilaxia recomendada pelos sábios do golpe em todas as frentes.  Desde a demolição dos direitos trabalhistas, à revogação da soberania no pre-sal, passando pela Constituição de 1988, o Prouni, a previdência ...  Mas, principalmente: recomeçar do zero esquecendo Lula.
 
Porque ele é  –ainda é Lula--   a inestimável  referência de justiça social na qual a imensa parcela dos  brasileiros de hoje e de ontem se reconhecem.  É dele a voz que quando  fala e é ouvida  no campo e nas cidades.  Mais que simplesmente ouvida: respeitada e compreendida.  A diferença dessa voz é que ela não carrega só palavras.  Carrega experiência, luta, erros, acertos, raiva, riso, derrotas, vitórias, cujo saldo são conquistas coletivas encarnadas em holerite, comida, emprego,  autoestima e esperança.
 
É como se Getúlio Vargas falasse.  Ou Allende para os chilenos.  Ou Perón para os argentinos.  Ou Cárdenas para os mexicanos.  Com a vantagem avassaladora que tanto incomoda a elite.  Lula está vivo.  Caçado, esfolado, picado e salgado.  Mas  vivo.  Mais que vivo: ele lidera todas as pesquisas de intenção de voto com as quais seus algozes testam a eficácia da chacina de reputação, a mais violenta desde Getúlio, que escandaliza a opinião jurídica e democrática do mundo.
 
Lula é a espinha dorsal de cuja destruição depende o êxito do torniquete implacável de interesses mobilizados contra a construção de uma democracia social na oitava maior economia do mundo, na principal referência da luta apelo desenvolvimento no espaço ocidental.
 
FHC disse em um debate no jornal O Globo, há cerca de quinze dias:   ‘Sem Lula o PT seria penas um partido médio; com ele torna-se um perigo nacional’.  No fundo quis dizer: ‘Sem Lula, o Brasil se torna uma nação média, humilde, bem comportada.  Com Lula, o Brasil se torna um gigante de soberania, com capacidade de aglutinação popular  e mundial em torno da justiça social –de consequências perigosas’. 

É claro como água de fonte.  Lula representa esse diferencial inestimável.  Ele fala com quem Malafaia  gostaria de falar sozinho.  Com o Brasil que os Marinhos gostariam de monopolizar sem dissonâncias.  Por isso o  milenarismo gauche que reage à ofensiva conservadora aceitando a pauta do juízo final de Moro,  flerta com a eutanásia.  ‘Recomeçar do zero’ é tudo o que o conservadorismo mais cobiça para quebrar o coração da resistência ao golpe.
 
O coração da resistência ao golpe consiste em não aceitar o fuzilamento sumário do legado de doze anos  de luta por um desenvolvimento mais justo e independente.  Ademais dos erros e equívocos cometidos inclusive por Lula  –que não podem ser subestimados e devem ser discutidos amplamente-- os acertos mostraram a viabilidade de se construir uma democracia social no Brasil do século XXI.
 
Não, isso não é pouco.  Olhe o mundo ao redor: isso é muito.  E, principalmente, tem lastro popular.  A sociedade marcada por uma das mais iníquas divisões de renda do planeta, referendou esse projeto por quatro eleições presidenciais sucessivas.  Duas com Lula; outras duas com Dilma, sendo Lula seu maior fiador e cabo eleitoral.
 
Sim, com erros, alguns grotescos.  Mas o fato é que a elevada probabilidade desse projeto ser revalidado em um quinto escrutínio presidencial, em 2018  --agora modificado pelo esgotamento do ciclo de alta nos preços das commodities, que lubrificou a resistência das elites aos avanços anteriores--  precipitou o golpe de 31 de agosto.  O milenarismo gauche quase esquece tudo isso enquanto aguarda o juízo final.  Nele, o juiz Moro e seus querubins  darão cabo de Lula e propiciarão aos sobreviventes o  único destino que lhes cabe: recomeçar do zero.  Ou até abaixo do zero.
 
Para quem sabe ter direito  –um dia— a mil anos de salvação individual e sobrenatural.  Milenaristas eram os pobres, os miseráveis brasileiros de Canudos.  Aqueles que aguardaram com Antônio Conselheiro a justiça divina sonegada pelo latifúndio e pela República que, afinal, destinou-os  à injustiça eterna.  É o que acontecerá de novo se o Brasil progressista aceitar a ideia de Moro de faxinar a história de sua ‘nódoa inaceitável’: Lula.
 
Se aceitar, o Brasil vai virar uma imensa Canudos, depois do massacre.

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