Por Wilson H. Silva
Os primeiros dados do Censo 2010 foram publicados na semana passada, revelando que o Brasil tem uma população oficial de 190.755.799 pessoas. De imediato, a informação que causou mais impacto foi a constatação de algo há muito conhecido, apesar de sempre negado: o Brasil é um país de maioria não-branca.
Contudo, para além do tema racial, o Censo revelou uma série de outras contradições que merecem ao menos serem citadas e comentadas sob uma perspectiva diferente da maioria que tem circulado pela grande mídia, onde analistas burgueses, membros do governo e setores dos movimentos sociais alinhados com o lulismo têm usado e abusado dos dados para se vangloriarem dos supostos feitos e avanços sociais da Frente Popular.
Antes de mais nada, é sempre bom lembrar que, quando nos referimos a pesquisas, números e estatísticas – para além das sempre possíveis manipulações – estamos num campo fértil para todo e qualquer tipo de interpretação, a começar pelos parâmetros de comparação.
Enquanto estava no governo, Lula nos cansou com discursos iniciados com a frase “nunca houve antes na história...”, para enfatizar os “avanços” de seu governo. Como toda frase de efeito, contudo, esta também só serve para mascarar realidades muito mais complexas.
Primeiro, porque, para um governo que se diz representante dos interesses do povo, não deveria haver muito o que se comemorar com a constatação das tímidas melhorias nas estáticas que revelam as condições de vida dos brasileiros em relação à história recente, marcada por uma ditadura, um presidente ladrão e seguidas administrações tucanas.
Segundo, porque a principal constatação do Censo é aquela que realmente revela o caráter do governo de Frente Popular, iniciado por Lula e continuado por Dilma: a manutenção dos privilégios de um punhado de burgueses, em detrimento da existência de milhões de miseráveis e despossuídos.
E por isso mesmo, o dado mais importante constatado pelo Censo (e que determina e relativiza todos os demais) é um dos que menos tem sido ressaltado pela grande mídia e seus analistas: independentemente de qualquer “avanço pontual” nos índices sociais, existem, rigorosamente, “dois brasis”, separados pela enorme abismo criado pela sociedade de classes.
Um abismo de classe
Exemplos disto não faltam, mas o mais escandaloso deles é o que revela que enquanto nada menos do que 60,5% das famílias brasileiras (ou seja, 34,7 milhões de domicílios) sobrevivem com até um salário mínimo per capita (ou seja, por membro da família), em 5,1% das casas cada um dos membros da família tem à sua disposição, por mês, mais de cinco salários (ou seja, no mínimo R$ 2.725, levando-se em consideração o atual salário mínimo, de R$ 545)
É verdade que a porcentagem das famílias que vivem abaixo da linha do já miserável salário mínimo diminuiu desde o último Censo, em 2000. Hoje a maioria está na faixa que tem renda per capita entre meio e dois salários mínimos (50,1% das famílias). E é isto que tem sido festejado por Dilma e pelos analistas burgueses como prova conclusiva do “milagre da nova classe média”.
No entanto, como é sempre bom desconfiar de “milagres”, o fato mais importante é que, além da tal redução ter sido de pífios 6,1%, ela só pode ser compreendida levando-se em consideração que, do outro lado do abismo, o mesmo punhado de endinheirados de sempre continua muitíssimo bem, e intocado.
Há dez anos, no início do governo Lula, as famílias que ganhavam de três a cinco salários mínimos per capita correspondiam a 5,1% da população. Em 2010, este grupo cresceu para 5,3%. Já no topo da pirâmide, nas famílias com renda per capita maior do que cinco salários mínimos, o abalo foi mínimo: em 2000, elas eram 5,2% da população; agora equivalem a apenas 5.1% das famílias brasileiras.
Essa enorme concentração da renda ainda esconde realidades ainda mais cruéis. Este é um país onde 4,3% das famílias vivem sem rendimento algum. Isso significa dizer que nada menos do que em 2,4 milhões de lares a sobrevivência depende exclusivamente de doações ou “bicos”.
E mais: nas regiões historicamente mais pobres, o tamanho do abismo é ainda maior. No Nordeste, o percentual de famílias que vivem com renda per capita inferior a um mínino é de impressionantes 80,3%; no Norte, 75,2%.
A desigualdade social em números
Todos os demais dados do Censo devem ser interpretados a partir dessa realidade. Algo que está evidente até mesmo para aqueles que ressaltam os avanços que ocorreram na última década, como o economista e sociólogo da Universidade de Brasília Marcelo Medeiros, que em entrevista para o jornal “O Globo”, de 30 de abril, ressaltou: “Apesar da melhora no mercado de trabalho e da queda da desigualdade, não houve uma mudança na estrutura. Continuamos com uma grande massa de população de baixa renda, separando-se de uma pequena elite muito rica”.
E é dentro desta grande massa que a miséria e as condições de vida literalmente desumanas ficam evidente em indicadores alarmantes, como os seguintes:
Metade das casas não tem esgoto: Dizer que os brasileiros têm, hoje, mais acesso à água tratada e coleta de esgotos do que tinham há 10 anos, é apenas parte da verdade, pois é necessário um tanto de cara de pau para festejar o fato de que, se há uma década 47,3% das casas tinham saneamento básico, hoje, pouco mais da metade da população, 55,5%, tem acesso a este serviço fundamental para a saúde e qualidade de vida. Um número que fica dramaticamente mais preocupante nas regiões historicamente mais exploradas. No Norte, a rede de esgotos cobre apenas, 13,9% das casas; no Nordeste, 33,9%. O que puxa a média para cima é a situação do Sudeste, onde a rede de esgoto atinge 81% das casas. E, quanto à qualidade da água consumida, vale lembrar que 5,7 milhões de famílias (10%) depende exclusivamente de poços para o consumo.
Milhões de casas sem banheiros: Além da falta de esgotos, a desigualdade social brasileira foi revelada por um índice ainda mais absurdo levantado pelo Censo: nada menos do que 3,5 milhões de domicílios brasileiros (6,2% do total) não têm sequer um único banheiro. Transformado em indicador bizarro da divisão de classes, a contagem dos números de banheiros revelou que do “outro lado”, a situação é bem distinta: um pouco mais de três milhões de famílias vivem em casas com três sanitários e outras 1,2 milhão têm quatro ou mais acomodações para desfazerem de suas necessidades fisiológicas.
800 mil famílias vivem nas trevas: No país que orgulha-se de ser a “sétima potência econômica do mundo”, 728.512 famílias vivem como se estivessem em plena “Idade das Trevas”, sem qualquer tipo de acesso à energia elétrica. A situação só não é pior porque outras 550 mil famílias (um número pra lá de subestimado) deu um “jeitinho”, fazendo “gatos” (instalações “ilegais) em suas residências.
14 milhões de analfabetos: O número de brasileiros com 15 anos ou mais que não sabem ler ou escrever (13,9 milhões) corresponde a 9,63% da população (em 2000 eram 13,64%). Mais uma vez, o Nordeste é a região com a pior situação (19,1%), seguida do Norte (11,2%), do Centro-Oeste (7,2%), do Sudeste (5.5%) e do Sul (5,1%). Na faixa dos que têm mais de 60 anos, a média nacional chega a 26,5%
Crianças que dirigem famílias: Um dos novos e mais alarmantes indicadores levantados pelo Censo 2010 é o número de domicílios que são “chefiados” por brasileirinhos entre 10 e 14 anos de idade. Os 132.033 domicílios encontrados nesta situação absurda certamente são apenas uma parcela da realidade. E, desta vez, é o Sudeste que lidera o “ranking da barbárie”: na região mais rica do país, 62.320 famílias dependem da renda de crianças. E mais: país afora, outras 661.153 famílias são dependentes do trabalho de jovens entre 15 e 19 anos.
O Brasil que queremos e precisamos
A existência como números como os acima, em pleno século 21 e quando o país se vende como a 7ª potência mundial, é sintomática do caráter de classe da sociedade brasileira. Um caráter fielmente preservado e defendido pelo lulismo.
Enquanto os pobres levam décadas para escalar míseros décimos nas estatísticas, os ricos se mantém confortavelmente nos seus altíssimos patamares, sem precisar fazer absolutamente nada, a não ser, evidentemente, manter os padrões de exploração e opressão de sempre. Tudo sob a benção do PT, PCdoB e seus braços nos movimentos sindical e popular.
Por isso mesmo, para reverter os números do censo é preciso mudar a lógica da sociedade, mexer na essência de sua estrutura, algo que pode ser feito com a revolução socialista. Esta é única forma de nos livrarmos de tantos problemas, pormos fim à barreira que separa os “dois brasis” e criarmos condições para que todos, absolutamente todos, tenham condições dignas de vida.
Wilson H. Silva é Jornalista da Opinião Socialista e membro da Secretaria Nacional de Negros e Negras do PSTU
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