quinta-feira, 6 de outubro de 2016

"Nos vemos dentro de 10.000 muertos" disse Alfonso Cano em Tlaxcala, México, 1992.



Escrito por Enrique Santiago Romero

O surpreendente resultado do Plebiscito celebrado no domingo passado em Colômbia, onde o ‘Não’ ao Acordo de Paz subscrito entre o Governo e as FARC-EP se impôs por uma estreita margem de 56.000 votos entre mais de 12 milhões e meio depositados, situa ao concluído processo de Paz que se adiantou em Havana desde o ano de 2012 num delicado transe. O problema que este resultado criou é eminentemente político, em nenhum caso é um grave problema jurídico.

O Acordo Final para a terminação do conflito e o estabelecimento de uma paz estável e duradoura, alcançado a 24 de agosto de 2016 em Havana, mantém sua validade jurídica apesar do resultado do plebiscito. Isso por várias razões. Em primeiro lugar, porque o artigo 22 da Constituição Política colombiana reza: “A paz é um direito e um dever de obrigatório cumprimento”. Em segundo, porque a sentença da Corte Constitucional colombiana que se pronunciou no mês de julho passado sobre a lei de convocatória do plebiscito estabeleceu que o resultado deste não tinha nenhum efeito jurídico em relação ao Acordo de Paz, se bem que implicava uma obrigação política para o presidente da Colômbia, quem decidiu unilateralmente convocá-lo sem ter obrigação de fazê-lo.

E, em terceiro lugar, porque o Acordo Final já tem força jurídica própria conforme o direito internacional, toda vez que foi subscrito como Acordo Especial –figura jurídica de obrigatório cumprimento prevista nas Convenções de Genebra de 1949- e depositado pelas partes ante o organismo depositário das Convenções de Genebra, dando assim legitimidade a seus conteúdos.

As FARC-EP, se bem que no mês de junho passado aceitaram a realização do plebiscito três anos de discrepância argumentada, vinham se opondo à celebração deste por vários motivos: porque a Constituição colombiana configura o direito à paz como um direito fundamental, e portanto como um direito “contramajoritário”, isto é, um direito intrínseco à dignidade humana que não pode ser submetido a consulta, e que, submetendo-se, seu resultado não teria efeito jurídico algum.

Se trata de um direito indisponível consubstancial à dignidade da pessoa, igual que o direito à vida ou à liberdade de qualquer ser humano, direitos fundamentais cujos conteúdos e configuração não dependem da opinião de terceiros, salvo que se opte por violar a Declaração Universal de Direitos Humanos ou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ademais da própria Constituição colombiana.
Mais além da tristeza que preenche a qualquer pessoa ao contemplar como um país desaproveita a oportunidade de acabar com um conflito que se iniciou pelo menos 30 anos antes de que existissem as FARC-EP –Lei de Terras 200 de 1936-, sem dúvida, o resultado do plebiscito tem um efeito político muito grave, e portanto a Colômbia tem um problema político que deve resolver de forma urgente, por meios exclusivamente políticos, não jurídicos.


Os argumentos da campanha do Não
Existe um importante setor da população que entendeu erroneamente que o efeito do Acordo de Paz seria pernicioso para o país, porque [ao atender aos argumentos essenciais da campanha do Não] provocaria a instauração de um regime político “castro chavista” onde se cerceariam as liberdades individuais; porque provocaria uma subida de impostos; porque instauraria uma sociedade governada por interesses de ‘gênero’, que se associam a comportamentos “feministas” e “homossexuais”; e porque suporia a impunidade dos crimes cometidos durante o conflito, senão dos delitos e infrações ao Direito Internacional Humanitário que a guerrilha das FARC-EP teria causado.

Tais argumentos, ademais de abusivamente grosseiros e simplistas, carecem de sustentação alguma à vista das 297 páginas do Acordo Final, paciente e cuidadosamente elaboradas durante quatro anos de trabalho, observando os direitos de todas as vítimas do conflito e recolhendo suas inquietudes e opiniões. Longe de instaurar um regime “castro chavista”, o Acordo Final fortalece o direito à propriedade privada dos pequenos e médios campesinos, ao blindá-los contra as práticas de despojo –mais de 7 milhões de hectares usurpados violentamente- que têm padecido historicamente por conta de grandes proprietários e seus exércitos privados –paramilitares-, os quais unicamente defendem o direito à propriedade privada se a terra é para eles.

Em Colômbia, 53% da terra aproveitável está em mãos de 2.300 pessoas. Nada incomoda mais a esses grandes proprietários que ouvir falar dos 10 milhões de hectares que, segundo o Acordo de Paz, vão ser entregues e titulados a campesinos pobres sem-terra. E isso porque o Acordo de paz contempla como pouco provável que sejam devolvidos a seus proprietários originais uma parte significativa dos 7 milhões de hectares despojados durante o conflito.

O Acordo de paz supõe também a eliminação de um gasto diário em conceitos de guerra de entre 7 e 8 milhões de dólares, quantidade que o Estado poderá remanejar para inversões sociais, infraestruturas, saúde ou educação se assim o consideram as instituições, sem necessidade de subir impostos.

Que tenha sido o primeiro acordo de paz alcançado no mundo no qual existiu e interveio uma “comissão de gênero” –revisou todos os acordos a partir da perspectiva dos direitos de mulheres e pessoas de diversa orientação sexual- sustentou o surpreendente argumento, surgido nas igrejas evangélicas mais conservadoras e não desmentido pela igreja católica, de que o acordo de paz generalizaria as relações afetivas homossexuais no país, assim como possibilitaria uma espécie de “ditadura social feminista”.

O mais disparatado e interessado dos argumentos do Não à paz é o da suposta impunidade que os acordos provocam, apesar de se ter construído um modelo de Justiça que foi saudado por instituições internacionais e organizações de vítimas de forma praticamente unânime. Somente Uribe, o muito conservador ex-procurador Ordoñez e a ONG estadunidense Human Rights Watch mantiveram uma posição beligerante contra o acordo de Jurisdição Especial para a Paz [JEP], acordo que pretende processar penalmente centenas de milhares de condutas criminais que provocaram vítimas e estão em absoluta impunidade.

Pelo contrário, é a primeira vez que num processo de paz, seja em Colômbia ou em qualquer outro país do mundo, e sem intervenção da comunidade internacional, as partes numa mesa de conversações acordaram um sistema integral de justiça e oferecimento de verdade –outra palavra não do gosto dos poderosos- ante o qual todos os intervenientes no conflito, combatentes e também não combatentes –integrantes de coletivos políticos, de grupos econômicos, agentes de governos estrangeiros e outros- deverão comparecer para prestar conta de suas responsabilidades, se as tiveram.

Integrantes de coletivos políticos e econômicos que nunca vestiram um uniforme nem pisado o barro de uma trincheira, porém que intervieram e/ou utilizaram a guerra em seu proveito político ou econômico, desde cômodos gabinetes em Bogotá, desfrutando estruturalmente de impunidade, são agora os que clamam contra uma suposta “impunidade guerrilheira” que a JEP permitiria. A Promotoria Geral da Colômbia tem preparadas mais de 55.000 acusações contra as FARC -responsáveis, junto a outras guerrilhas, por não mais de 15% da vitimização causada no conflito, segundo dados da Unidade de Vítimas do Governo-, ademais das milhares de condenações já impostas a guerrilheiros. No entanto, são apenas 3.000 as acusações preparadas pela Promotoria contra agentes do Estado –responsáveis por 25% das vitimizações- e nenhuma contra organizadores, financiadores ou instigadores de grupos paramilitares, responsáveis por mais de 50% da vitimização havida durante o conflito.

Mais de 2.000 “compulsações de cópias” [acusações derivadas de um tribunal não competente para investigar] contra financiadores e organizadores de grupos paramilitares, percorrem distintas instâncias judiciais colombianas desde a aprovação pelo então presidente Uribe da Lei de Justiça e Paz em 2005, sem que nenhuma instituição as processe. Os argumentos do Não sobre a suposta impunidade que o denominado “Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e garantias de Não Repetição” acordado em Havana provocaria não se referem em nenhum momento ao tratamento penal diferenciado que para os agentes do Estado se contempla no dito Sistema, tratamento que previsivelmente será utilizado como moeda de troca numa hipotética renegociação, objetivando manter os habituais nichos de impunidade civis.

Olhar para o futuro

A respeito do peso político do resultado do plebiscito, a diferença de 56.000 votos entre o Sim e o Não é mínima num universo de mais de 12,5 milhões de votantes e 32 milhões de eleitores. Não puderam votar muitos colombianos, por falta de prévia abertura de censos eleitorais num país onde boa parte da população campesina carece de documentação, havendo além disso mais de 4 milhões de colombianos no exterior –muitos deles exilados políticos-, a imensa maioria sem recensear. Como se isso fosse pouco, a passagem do furacão Mathew pela região Caribe colombiana no dia da votação provocou uma altíssima abstenção numa região onde massivamente as pesquisas davam o Sim como ganhador, e onde efetivamente este venceu, apesar das centenas de milhares de pessoas que se viram impossibilitadas de ir votar.

Após o inesperado resultado, todos os setores implicados se pronunciaram por continuar o processo de paz: o Governo, as FARC e os defensores do Não, se bem que estes últimos podem pretender se converter em oráculos que pretendam interpretar o que é que deve ser modificado do Acordo de Paz para que este supostamente se corresponda com a vontade expressada pelos votantes do Não.

E já verão os leitores como o oráculo uribista interpretará o que são os acordos sobre Jurisdição Especial para a Paz, desmantelamento do paramilitarismo e Reforma Rural Integral, os quais devem ser modificados, ou melhor ainda, “desmantelados”. Não para que os guerrilheiros não possam usufruir de uma impunidade inexistente na justiça ordinária colombiana ou no Sistema Integral definido nos acordos –a Promotoria da Corte Penal Internacional afirmou em seu informe sobre a Colômbia de novembro de 2015 que as guerrilhas em Colômbia são o único ator do conflito que não tem desfrutado de impunidade, devido à implacável e constante perseguição do Estado contra elas e seus supostos colaboradores- mas sim para excluir da competência da JEP a políticos, empresários, ou em geral a civis organizadores, financiadores ou instigadores dos muitos grupos armados paramilitares que existiram ou existem em Colômbia. Seu objetivo não é outro que continuar, pelos séculos dos séculos, desfrutando da impunidade a que estão acostumados e que tão abundantes benefícios lhes proporcionou.

Na segunda-feira 3 de outubro, tal e como haviam solicitado os defensores do Não, o presidente Santos convocou todas as forças políticas a uma reunião para abordar a situação criada. A totalidade dos partidos políticos, salvo o Centro Democrático de Uribe, vinham apoiando o processo de paz. O único partido político que não acorreu a essa reunião foi o Centro Democrático. Ausência que não pode se dever mais que à falta de vontade de alcançar um acordo político para salvar o processo de paz, ou a que nem eles sabem neste momento como gestionar o Não à paz que tão irresponsavelmente provocaram.

As propostas apresentadas pelo agora senador Uribe no Senado, no dia seguinte ao plebiscito, para supostamente salvar o processo de paz [cessar-fogo, outorgar anistias imediatas e proteger a vida dos chefes das FARC] já estavam incluídas no Acordo de Paz e no caso do cessar-fogo, em vigor desde 29 de agosto passado, já se havendo iniciado o processo de Deixação de Armas pelas FARC no dia 30 de setembro passado.
Na ampla convocatória ao diálogo político efetuada pelo Governo deveria incluir-se, por justiça e coerência, as organizações de vítimas, legítimas representantes dos que padecem ou padeceram diretamente na guerra, e que talvez por isso tenham apoiado massivamente o Sim à paz. Sem sua presença, se excluiria do diálogo nacional àqueles em cujo nome todos os partidos políticos dizem falar, sem que nenhum deles haja recebido nunca expressamente a referida representação. A presença das vítimas no diálogo é imprescindível, porque não parece provável que o mesmo “estabelecimento” colombiano que em quase cem anos não foi capaz de acabar nem com a violência política nem com a guerra, possa agora alcançar um acordo político para salvar uma paz que já estava acordada com as FARC até que suas infelizes políticas –Uribe, Santos e a ambição- fizeram-na saltar pelos ares.

“Nos vemos dentro de 10.000 mortos”, disse indignado e esgotado [Alfonso Cano em Tlaxcala em 1992] a um negociador do Governo após fracassar o segundo dos quatro processos de paz havidos entre o Estado e as FARC. Desta vez, entre todos e todas vamos preservar e proteger a paz, para que não tenha que voltar a se ver dentro de nenhum morto mais. E esta tarefa, sem dúvida, é uma obrigação da Comunidade Internacional
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Tradução: Joaquim Lisboa Neto


http://www.eldiario.es/tribunaabierta/vemos-dentro-muertos-Tlaxcala-Mexico_6_565953403.html

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