domingo, 11 de setembro de 2011

Anotações sobre um domingo e a memória de dois setembros

Eric Nepomuceno*

1. Dez anos depois de 2001, o dia onze de setembro cai num domingo. Naquele ano, caiu numa terça-feira.
De lá para cá o mundo nunca mais foi o mesmo, e com as ações desatadas por um fundamentalista iracundo chamado George W. Bush, tendo como justificativa as ações de Osama Bin Laden, tudo mudou – para pior. Os Estados Unidos, o país mais bélico da história da humanidade, o país que necessita permanentemente viver em pânico, sentir-se ameaçado, e que quando não há ameaça logo inventa alguma, pois esse país se deu uma vez mais o luxo de invadir e avassalar ao seu bel prazer outros países, outros povos, destroçar outras culturas. Esparramar a paranóia do terror mundo afora, encarar alegremente a tortura, a sevícia e a humilhação como instrumentos lícitos para obter confissões.

2. Trinta e oito anos depois de 1973, o dia onze de setembro cai num domingo. Naquele ano, caiu numa terça-feira. Trágica coincidência.
De lá para cá a América Latina, que já padecia uma longa e persistente era de violência, mudou, e mudou em dois tempos. Num primeiro tempo, ao que já havia de mau em seu mapa somou-se a tragédia do Chile. E boa parte do pouco que havia sobrado de bom perdeu-se em labirintos tenebrosos, sonhos e esperanças viraram nuvens perdidas, caravanas de nômades buscaram algum oásis onde pernoitar pelas longas noites do exílio, e pairou um silêncio cúmplice ou culpado de quem não quis ver o que se passava nas masmorras da tortura e do esmagamento de parte da sua melhor juventude. Num outro tempo, em anos mais recentes, a América Latina soube se reconciliar com a democracia, a aceitar sua diversidade, a resgatar tempos perdidos ou roubados.
Amargas costumam ser as ironias da história, ao menos neste pedaço do mundo. Para que em 1973 os militares chilenos lançassem fogo e metralha sobre seu país, para que com um golpe cruel interrompessem a trajetória de um homem bom e digno chamado Salvador Allende, que preferiu acabar com a própria vida a ser humilhado por quem o traiu, foram essenciais o apoio e a intervenção dos Estados Unidos. Os mesmos Estados Unidos que, vinte e oito anos mais tarde, quando o Chile havia reencontrado a democracia, sofreram no coração de seu símbolo maior, a Nova York que se pretendia a Capital do Mundo, o mesmo horror que espalham mundo afora há décadas.

3. Trago comigo nítidas, na memória, as imagens dessas duas terças-feiras de setembro. Trago a imagem de aflição de Nova York em 2001, da mesma forma que trago a certeza de que jamais acabará de cicatrizar em mim a dor pelo que aconteceu em Santiago do Chile em 1973.
Do dia 11 de setembro de 2001, lembro perfeitamente de onde estava, de como vi na televisão o segundo avião explodindo contra uma das Torres Gêmeas, e pensei que era uma reprise do que alguém me disse ter visto minutos antes, e levei um átimo de tempo que parecia um tempo imenso para entender que era um segundo avião, e lembro das imagens de pessoas correndo desamparadas por ruas que conheci e conheço. Lembro a imagem do desespero, um homem saltando de ponta-cabeça, indo de uma altura absurda rumo ao chão. Lembro disso e de muito mais.

Da mesma forma que lembro perfeitamente meu assombro e meu desconcerto na terça-feira 11 de setembro de 1973, num tempo em que não havia telefone celular nem internet nem nada que permitisse uma comunicação rápida. Eu tinha 25 anos, amigos chilenos, e estava em Córdoba, no interior da Argentina. Havia chegado de Buenos Aires, onde morava, um dia antes. Vi na porta de um sindicato uma fila formada por jovens, e essa fila aumentava veloz, e perguntei a alguém o que estava acontecendo e ouvi que todos ali queriam se apresentar como voluntários para ir ao Chile defender o presidente Salvador Allende e lutar em defesa da democracia. Assim eu soube do golpe. Allende já estava morto, e a democracia chilena, assassinada. Mas ninguém ali sabia disso. Eu não sabia, ninguém sabia.
Eu não sabia, ninguém sabia que naquele instante parte de nossas melhores esperanças jaziam calcinadas em Santiago do Chile, a cidade das grandes alamedas. Nem que parte de nossos anos jovens começavam a morrer naquela terça-feira de frio em Córdoba, interior da Argentina, enquanto do outro lado da cordilheira um céu opaco e um sol negro se instalavam sobre o país que Allende quis mais justo, mais generoso, mais digno.

4. O domingo, 11 de setembro de 2011, me encontra empapado das imagens dessas duas terças-feiras de horror. Uma, a de 2001, com o povo norte-americano como vítima. Outra, a terça-feira 11 de setembro de 1973, com os Estados Unidos como algozes. Sim, são trágicas as ironias da história.
O Chile soube reencontrar sua democracia – ainda frágil, ainda imperfeita, ainda com um longo caminho pela frente.
E o país que tanto colaborou para a tragédia dos chilenos, terá sabido entender a sua? Terá entendido o que fez ao mundo depois de padecer sua própria terça-feira de horror?
Essa a pergunta que atordoa minha dolorida memória desses dois setembros.



*Eric Nepomuceno:
Jornalista e escritor. Foi correspondente pelo Jornal da Tarde na Argentina e pela Veja na Espanha e México. Trabalhou na Rede Globo como editor e foi cronista do Caderno B, do Jornal do Brasil. Seus livros de contos e de não-ficção ganharam vários prêmios, inclusive o Jabuti pela tradução de autores de língua espanhola. Escreveu roteiros em co-produção com a TV Espanhola e produtoras da Holanda e Inglaterra; autor do texto final do documentário: Vinícius, de Miguel Faria Jr. Atualmente, escreve artigos e reportagens no Brasil, Espanha, México e Uruguai e em jornais como: El País, de Madrid, e Página 12, de Buenos Aires. Lançado em 2007 o livro O Massacre sobre a tragédia de Eldorado dos Carajás lhe rendeu o segundo lugar na categoria livro reportagem no Jabuti 2008.

http://www.youtube.com/watch?v=0N4_wjKrsao&feature=related

Um comentário:

  1. Salvador Allende, de onde estás, dá-mos força para destruirmos qualquer possibilidade de haver outros 11 de setembro!

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