quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Dar dinheiro aos mais ricos os torna "vagabundos"?

Por Leonardo Sakamoto


O caminho para transformar políticas de governo em políticas de Estado é
lento e difícil. Ao que parece, os partidos de oposição perceberam que
não conseguirão apoio das classes populares sem garantir que manterão
ou ampliarão determinados programas, como os de transferência de renda,
vinculados ou não à educação - que tiveram seu início na era FHC e
passaram por um processo de universalização no governo Lula. Programas
que contribuíram, e muito, para movimentar a economia em locais antes
estagnados.

Considerando que a renda de capital foi estratosfericamente maior que a
renda do trabalho e os recursos usados para o pagamento de juros foram
bem maiores que os usados para os programas sociais (em todos os
governos, de FHC a Lula), fico extremamente incomodado quando ouço
pessoas reclamando que "dar dinheiro aos pobres os torna vagabundos".

E o dinheiro que vai às classes mais abastadas, que investem em fundos
baseados na dívida pública federal? Em 2006, foram R$ 163 bilhões,
enquanto os programas sociais contavam com 13% disso (dados do Ipea).
Grosso modo, muito vai para poucos e pouco vai para muitos. E, mesmo
assim, sou obrigado a ouvir pérolas quase que diariamente, reclamando
dos programas de transferência de renda, não no sentido de melhorá-los,
mas de extingui-los. É claro que é importante avançar na construção de
"portas de saídas" para programas como o Bolsa-Família, gerando
autonomia econômica. Mas a raiva com a qual essas iniciativas vêm sendo
tratadas durante a eleição por algumas pessoas me surpreende.

E se eu dissesse que "dar dinheiro aos ricos os torna vagabundos?" Por
que usar a frase para os pobres é ser um "analista sensato da realidade"
e usar a frase aos ricos é ser um "$#@%# de um comunista safado"?

A conversa, abaixo, ocorreu recentemente em um local de trabalho de um
bairro rico da cidade de São Paulo. Uma menina de classe média alta
paulistana desabafou com sua interlocutora, recentemente integrada à
classe média baixa:

- Essas bolsas ficam alimentando vagabundo! É tudo bolsa-preguiça:
bolsa-escola, bolsa-faculdade, bolsa-família...

(O que ela não imaginava é que a outra pessoa era beneficiária do
programa federal que concede bolsas de estudos a estudantes de
graduação.)

- Bolsa-preguiça, não! Porque eu trabalho e tenho que dar dinheiro em
casa, além de tudo. Bolsa-preguiça é a mesada que seu pai te dá sem que
você tenha que botar a mão no bolso.

Depois disso, ainda tive que engolir um comentário de um terceiro para
quem mostrei essa conversa: "pô, a bolsista tinha que apelar? Pobre é
tudo mal educado mesmo." Não, não, não, não. Ele não estava fazendo uma
piada.

Dava para passar o dia discutindo o tema. Mas deixo isso para alguns
comentários vazios que são gerados na internet por visões distorcidas e
medos individuais, protegidos pelo anonimato covarde da tela de
computador. Afinal, este post não está criticando ou elogiando partidos
ou governos, mas tentando entender o que, além do preconceito, faz com
que um cidadão que tenha um pouco mais na conta bancária acredite que
pisar no andar de baixo é a solução para galgar ao andar de cima? E que
o futuro do país é feito uma Arca de Noé, com espaço para salvar pouca
gente do dilúvio iminente?

Para esse pessoal, é cada um por si e Deus - proporcionalmente ao
tamanho do dízimo deixado mensalmente - para todos. Fraternidade e
solidariedade são palavras que significam "doação de calças velhas para
vítimas de enchente", "brinquedos usados repassados a orfanatos no
Natal" ou "uma doaçãozinha limpa-conciência feita a alguma ONG". Nada
sobre um esforço coletivo de buscar a dignidade para todos, porque todos
(teoricamente, apenas teoricamente) nascem livres e iguais.


Leonardo Sakamoto é Jornalista, Cientista Político e Coordenador da Repórter Brasil
http://blogdosakamoto.uol.com.br/category/sem-categoria/

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