20/04/2014 - Diário do Amazonas
A Semana do Índio celebrada nas escolas do Brasil coincidiu
este ano com a Semana Santa, quando o mundo cristão rememora a paixão e
morte de Cristo. Em Brasília, na Esplanada dos Ministérios, a II Bienal
Brasil do Livro e da Leitura programou no sábado de aleluia, Dia do Índio,
o seminário Narrativas Contemporâneas da História do Brasil. Numa das
mesas, no Auditório Jorge Amado, a índia Fernanda Kaingang, advogada com
mestrado em Direito Público, debate as desigualdades sociais no Brasil
com Muniz Sodré, Afonso Celso e este locutor que vos
fala.
Qual é o índio celebrado cada
ano, em abril, que emerge nas narrativas da história do Brasil? O índio de
Pero Vaz de Caminha que permanece no imaginário dos brasileiros? Aquele
escravizado pelos bandeirantes ou o catequizado pelos missionários? O
índio da senadora Kátia Abreu e do agronegócio "obstáculo ao progresso"?
Ou o das descrições etnográficas dos antropólogos, que nos ensina que
outro mundo é possível? O "índio atrasado" ou o que acumulou sofisticados
saberes? A vítima do colonialismo ou o combatente que
resistiu?
Afinal, qual o pedaço de nós
que comemoramos no Dia do Índio? Ou ele não é parte de nós? No século XVI,
na polêmica com o advogado Sepúlveda, Bartolomeu De Las Casas afirmou que
durante todo o período colonial milhares de Cristos foram crucificados na
América, sem a esperança da ressurreição. Testemunha da dor, do sofrimento
e da resistência dos índios, Las Casas descreve o trajeto seguido por eles
carregando a cruz numa via sacra dolorosa, que vai do Pretório Ibérico até
o Calvário, de 1492 aos dias atuais.
As
Estações
Logo na 1ª Estação, o índio é
condenado à morte. Colombo e Cabral que aqui desembarcam com a cruz,
perguntam às Coroas Ibéricas: "O que faço com o índio?" Aqueles que querem
se apropriar das terras indígenas gritam: "Que o crucifiquem". Os reis
lavam as mãos e através de leis e ordenações do Reino, entregam o índio
aos seus súditos.
Despojado de suas terras,
escravizado, na 2ª Estação, o índio começa a carregar a cruz às costas,
num processo que não terminou. Las Casas registra a invasão das aldeias, o
massacre e a prisão dos índios nas chamadas 'guerras justas': "Oh!
Grande Deus e Senhor, como podiam ser escravizados de 'forma justa'
estando em suas próprias terras e em suas casas sem fazer mal a
ninguém?".
Na 3ª Estação, o índio cai pela
primeira vez, numa jornada de trabalho que dura até 18 horas diárias,
segundo Las Casas que detalha o recrutamento de menores e mulheres
gestantes, os acidentes de trabalho, os castigos físicos, as doenças, a
alimentação insuficiente: "E até mesmo as bestas costumam ter um
tempinho de liberdade para pastarem no campo e os nossos espanhóis nem
sequer isto concediam aos índios".
O encontro com a Mãe acontece
na 4ª Estação. A Mãe Terra, que dá vida aos seres do universo, símbolo da
fecundidade e da biodiversidade, tem sua alma transpassada por uma espada.
Matas devastadas, minas escavadas em busca de metais preciosos, rios
poluídos, animais, plantas e gente exterminados: a Mãe Terra é ferida de
morte. Acontece a maior catástrofe demográfica da histórica da humanidade:
nunca um continente foi esvaziado tão rapidamente como a América, escrevem
os demógrafos da Escola de Berkeley.
A cruz pesa em demasia. Na 5ª
Estação, os soldados obrigam Simão de Cirene, do Norte da África, a ajudar
a carregar a cruz, ao lado do Negro oriundo do mesmo continente. Com
o rosto ensanguentado, sujo, cansado e cheio de escarros, na 6ª Estação o
índio espera que apareça uma Verônica para enxugá-lo, para deixar a imagem
da coroa de espinhos gravada no lenço. Em vão. Como no poema "Los dados
eternos", de César Vallejo, vem a justificativa: "Tu no tienes Marias
que se ván".
Eliminar da
História
Na 7ª Estação o índio, esgotado, cai pela segunda vez, depois
das novas investidas dos bandeirantes, cujo modus operandi é
descrito por Raposo Tavares em depoimento ao padre Vieira “Nós damos uma descarga cerrada
de tiros: muitos caem mortos, outros fogem. Invadimos, então, a aldeia.
Agarramos tudo o que necessitamos e levamos para as nossas canoas. Se as
canoas deles forem melhores que as nossas, nós nos apropriamos delas, para
continuar a viagem”.
As mulheres de Belém estavam na
8ª Estação, ao
lado de Maria Quitéria de Jesus, a baiana heroína da Guerra da
Independência, que depois recebeu o título de Patrona dos Oficiais do
Exército Brasileiro. No encontro com o índio, as mulheres paraenses e até
Maria Quitéria, embora sendo de Jesus, não choraram por ele, mas por elas
mesmas e por seus filhos.
Na 9ª Estação, a terceira queda
sob o peso da cruz ocorre, quando Paulo de Frontin, presidente da Comissão
do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, em 1900, no seu discurso
oficial de abertura, declara:
“O Brasil não é o índio; os
selvícolas, esparsos, ainda abundam nas nossas magestosas florestas e em
nada differem dos seus ascendentes de 400 anos atrás; não são nem podem
ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe
assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los”.
As cinco últimas estações da
via sacra, a caminho do Calvário, se localizam já no Brasil republicano. O
índio despojado de sua língua, de seus saberes, é definitivamente
eliminado das narrativas sobre a história do Brasil.
Na 10ª Estação, o índio é
esbofeteado na comemoração do 5° Centenário, em
2000, quando o então Ministro da Cultura, Francisco Weffort, depois de
fazer uma apologia dos bandeirantes, propõe a criação do Museu Aberto do
Descobrimento, incompatível com a historiografia crítica e com o projeto
intelectual de renovação da cultura brasileira, numa vitória inequívoca do
obscurantismo intelectual.
Anos depois, já como
ex-ministro, Weffort publica o livro "Espada, Cobiça e Fé - As
Origens do Brasil". No desenho que faz do
nosso país, ele justifica o calvário dos índios, afirmando que os
bandeirantes faziam "parte de uma cultura na qual a violência na vida
cotidiana e o saqueio na guerra eram recursos habituais. (...)
Sei que os
bandeirantes foram brutais e violentos, mas conquistaram esta terra. Todos
temos uma dívida com eles. Então é preciso entendê-los".
Diakui
Abreu
Na 11ª Estação, o índio é ferido de
morte pelo escárnio da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO, viche, viche)
em artigo no Caderno Mercado da Folha de São Paulo - Cidadania, e não
apito. Presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária
(CNA), ela repete pela milésima vez que o calvário dos índios se deve
ao "difícil acesso à saúde e não à falta de terra", fingindo
não ver a relação entre uma e outra. Admite, no entanto, que "se o
problema consiste em terra, que sejam compradas a preço de mercado"
pelo Estado brasileiro "com seus próprios meios que são os impostos
extraídos de toda a populaçao brasileira".
Na 12 ª Estação, ela tenta
convencer o índio agonizante que gosta dele e, por isso, "minha
homenagem pessoal aos povos indígenas fiz a cada nascimento de meus filhos
que não por acaso se chamam Irajá, Iratã e Iana". Além das terras, a
senadora se apropria também dos nomes indígenas. Anunciará qualquer dia,
no Caderno Mercado, que vai ao Cartório mudar de Kátia para Diakui Abreu.
Na 13ª Estação, o deputado
federal Osmar Seraglio (PMDB - PR, viche, viche), relator da Proposta de
Emenda Constitucional - a PEC 215 - enfia uma lança no ventre do índio ao
justificar, em artigo na FSP (19/04/14) que o poder de demarcar terras
indígenas deve ser transferido do Executivo para o Congresso Nacional,
atendendo os interesses da bancada ruralista, que torna inviável qualquer
processo de demarcação.
O protagonista da 14ª e última
estação é o deputado federal Luis Carlos Heinze (PP- RS, viche, viche).
Ele apoia a Portaria do Ministério da Justiça que, antes mesmo da
aprovação da PEC 215, já permite a ingerência dos ruralistas nos estudos
sobre demarcação de terras indígenas. Na audiência realizada no município
de Vicente Dutra (RS), Heinze afirma que "índios, quilombolas, gays e
lésbicas são tudo o que não presta".
A partir daqui, a via sacra
continua,desdobrando a agonia lenta e inexorável em outras estações,
colocando em dúvida se um dia haverá ressurreição.
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