Capital está vencendo, mas esquerda pode barrá-lo
Por Tarso Genro
A lenta, mas firme desagregação da esquerda européia depois da quebra
da URSS, está ancorada em fatores “objetivos”, tais como as mudanças no
padrão de acumulação capitalista -“pós-industrial” como já analisavam
alguns economistas há trinta anos - que atravessaram a sociedade de
alto a baixo. Estas mudanças alteraram as expectativas políticas, o
modo de vida, as demandas do mundo do trabalho e da constelação de
prestadores de serviços, dos técnicos das atividades da inteligência do
capital, dos sujeitos dos novos processos do trabalho e de amplos
contingentes da juventude. Estes, originários de famílias das classes
médias, que perderam o seus “status” social e o seu poder aquisitivo,
adquiridos na era de ouro da social-democracia. A social-democracia não
se renovou, nem o comunismo, para responder a estas transformações.
A
desagregação, todavia, também está ancorada na ausência de respostas -
fator “subjetivo” dominante -dos núcleos dirigentes da esquerda
comunista e social-democrata. Esta falta de formulação superior pode,
parcialmente, ser atribuída a uma ausência de “caráter” - pela
“acomodação” teórica e doutrinária dos seus dirigentes - mas este não é,
certamente, o fator preponderante: o vazio de respostas de esquerda à
nova crise do capital tem outras determinações mais fortes. Mesmo
aqueles que se jogaram para uma posição “movimentista” - mais, ou menos,
corporativa - aparentemente radical (ou os que se propuseram a
enfrentar o retrocesso com práticas de Governo ou com novas elaborações
no âmbito acadêmico) não conseguiram - nos seus respectivos espaços de
interferência - abrir novos caminhos que se tornassem hegemônicos.
A
adesão da social-democracia francesa, italiana, espanhola e portuguesa –
para exemplificar -aos remédios exigidos pela União Européia (leia-se
Alemanha), põe por terra as esperanças que algum governo europeu, num
futuro próximo, possa inspirar mesmo uma saída social-democrata novo
tipo à crise atual. Tudo indica que a recuperação da Europa capitalista
virá por um canal “social-liberal”, depois de um longo período de
reestruturação das classes em disputa. Teremos perdas significativas
para os trabalhadores do setor público e privado, para as micro,
pequenas e médias empresas, que são responsáveis pela maior parte da
oferta de empregos. A isso se agregará uma forte pressão sobre os
imigrantes e a crescente redução dos gastos públicos, destinados à
proteção social. Paralelamente a este desmantelamento tudo indica que
crescerão as alternativas nacionalistas de direita, de corte autoritário
e mesmo neo-fascistas, pois o vazio que gera desesperanças pode fazer
renascer o irracionalismo das utopias da direita extrema.
Se isso
é verdade, o nosso problema brasileiro é bem maior do que parece. A
contra-tendência instituída no Brasil, que criou dez milhões de empregos
no mesmo período em que foram destruídos mais de sessenta milhões de
postos de trabalho em todo o mundo, está sob assédio. O nome deste
assédio é a garantia do pagamento rigoroso - com juros elevados - da
dívida pública, para que o sistema financeiro global do capital possa
ter reservas destinadas a bancar as reformas e por em funcionamento um
novo ciclo de crescimento das economias do núcleo orgânico do
capitalismo global.
Cada uma das alternativas que sejam propostas
para o próximo período, visando desenvolver o país, combatendo as suas
desigualdades sociais e regionais - sejam elas de inspiração
neo-keinesiana ou socialista - só poderão ter efetividade e capacidade
de implementação política se mostrarem de maneira coerente como elas se
comunicam, acordam ou confrontam, com este cenário global. Ou seja: como
as alternativas poderão ser efetivas no território, numa situação de
domínio integral do capital financeiro sobre os cenários econômicos e
políticos do mundo.
O internacionalismo hoje é,
conjunturalmente, mais democrático e social do que propriamente
“proletário”, naquele sentido clássico que foi proposto pelo filósofo de
Trévèrs. As conquistas democráticas e sociais das nações estão bem mais
ameaçadas depois da crise que se iniciou com o “sub-prime”, pois os
governos são vítimas de uma pressão brutal para reduzir, ainda mais, a
sua autonomia política e assim integrar-se, pacificamente, nas
contaminações globais da crise. Apresentar soluções internas, portanto,
é também apresentar alianças de sustentação destas políticas no cenário
internacional, para que as propostas não sejam voluntaristas ou
demagógicas
Caso as formações políticas e os governos não
consigam apresentar alternativas aceitas pelo senso comum, dificilmente
terão apoio popular para governar. O seu fracasso - e o povo sabe disso -
terá reflexo imediato como aniquilamento das conquistas de inclusão
social, econômica e produtiva, que ocorreram no Brasil nos últimos dez
anos. Este é, na verdade – nos dias que correm - o dilema, tanto
demo-tucano e marino-campista, como do extremismo corporativista e
movimentista: ambos deveriam responder qual é, nos quadros da democracia
política, o efeito imediato na vida das famílias - especialmente das
chamadas “novas classes médias” e dos trabalhadores - dos seus projetos
concretos de Governo, demonstrando como é possível aplicá-los pela via
democrática.
Os ataques à Petrobras, que vem sendo modulados,
tanto pela direita neoliberal como pelas oposições anti-PT e anti-Lula -
de corte direitista e esquerdista - talvez sejam a síntese mais
representativa desta dificuldade. O ataque, turbinado pela grande
mídia, dá espaço para estes grupos políticos não dizerem, de forma
clara (se fossem eleitos), o que fariam com a economia e com as
funções públicas do Estado, no próximo período. Unidos, esquerdismo e
neoliberalismo, desta vez no ataque ao Estado - não somente ao Governo -
ficam absolvidos de fazerem propostas para dizerem como o país deverá
operar, gerando emprego e renda, ao mesmo tempo que se defende da
tutela do capital financeiro e das pressões da dívida pública.
A
desmoralização de um ativo público da dimensão da Petrobras, os ataques
ao seu “aparelhismo” político, a crítica aos gastos públicos excessivos
(programas sociais, na verdade), os ataques às políticas do BNDES - de
forma combinada com um permanente processo de identificação da corrupção
com o Estado e com os Partidos em geral - fecham um quadro completo do
cerco ao país: liquidem com a Petrobras e teremos o Estado brasileiro
pela metade; acabem com os gastos sociais e teremos uma crise social
mais profunda do que a das jornadas de junho; restrinjam o BNDES e o
crescimento – que já é pífio - se reduzirá ainda mais; desmoralizem os
partidos e a política e a técnica neoliberal substituirá o contencioso
democrático.
Como os militares estão aferrados às suas funções
profissionais e constitucionais e não estão para aventuras, o golpismo
pós-moderno vem se constituindo através da direita midiática. Esta, se
bem sucedida no convencimento a que está devotada, encarregaria um novo
Governo social-liberal da desmontagem do atual Estado Social
“moderado”, obtido no Brasil num cenário mundial adverso.
Lido
este cenário de refluxo da esquerda e de retomada dos valores do
neoliberalismo selvagem, que devasta as conquistas da social-democracia
européia, pode-se concluir que o debate verdadeiro no processo eleitoral
em curso - momento mais importante da nossa democracia republicana
concreta - é o seguinte: ou o projeto lulo-petista se renova, baseado no
muito que já fez e conquista novos patamares de confiança popular; ou o
refluxo direitista liberal, que assola a Europa, chegará em nosso país
pela via eleitoral, legitimado por eleições democráticas.
A
semeadura da insegurança, que precede as inflexões para direita, está em
curso em todos os níveis e para responder a esta sensação manipulada -
que vai da economia à segurança pública - é preciso dizer de maneira bem
clara quais os próximos passos contra as desigualdades e contra
perversão da política e das funções públicas do Estado. Chegamos a um
momento de defesa política de um modelo novo combinado com a velha luta
ideológica.
Recentemente o MST, no seu Congresso Nacional, deu
uma demonstração de acuidade política e clareza programática. Fez a
vinculação da questão agrária do país a um novo conceito de reforma:
vinculou as demandas particulares dos deserdados da terra à produção de
alimentos sadios para os cidadãos de todas as classes, numa verdadeira
rebelião agroecológica, que faz a disputa no terreno da produção e da
política. Particularmente ele se reporta àqueles que mais sofrem os
efeitos “fast-foods”, turbinados por agrotóxicos e por malabarismos
genéticos, cujos efeitos sobre a espécie humana ainda não são avaliáveis
na sua plenitude.
Trata-se, na verdade, da superação de uma
demanda particular de classe – uma reforma agrária baseada na mera
redistribuição da propriedade - para um plano universal de interesse da
totalidade do povo, sem a perda das suas raízes classistas. Belo exemplo
que vem do povo para ser absorvido e renovar a cultura política da
esquerda. O capital financeiro, no mundo, está vencendo, mas pode ser
barrado pela imaginação criadora de uma esquerda que seja consciente da
grandeza das suas tarefas nos momentos de refluxo. O MST deu um belo
exemplo. A esquerda o seguirá?
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-capital-esta-vencendo-Como-a-esquerda-pode-barra-lo-/4/30765
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