Por- Saul Leblon
A desabalada defesa da Petrobrás --motivada pelo prejuízo que a operação
Pasadena trouxe à estatal-- revelou um zelo pelo interesse nacional que
o país desconhecia.
A síntese arrematada da novidade é o
empenho do presidenciável Aécio Neves em encaixar uma CPI sobre o tema
no calendário eleitoral de 2014.
A política, como se sabe, não é o
reino da linha reta. Política é economia concentrada, contém o conjunto
das contradições da sociedade. Seguir uma reta num pântano é missão
para santidades, não para pecadores.
Aécio ou Lênin não podem ser julgado por atos isolados.
Para
que não se firme, porém, a impressão de que a política é o inferno da
hipocrisia convém dar aos eventos a ponderação da coerência histórica,
cotejada pela correlação de forças determinante em cada época.
Tomados
esses cuidados, o ambiente político adicionalmente turvado pelas
disputas eleitorais deixa de passar a falsa impressão de que todos os
gatos são pardos.
Quando se afunila a visão, ao contrário, estamos a um passo do moralismo.
Não importa que ele venha entrecortado de bem intencionados sustenidos radicais.
O moralismo traz no DNA a prostração política encarnada nas legendas redentoras do ‘tudo ou nada’.
O ‘nada’ muito frequentemente tem saído vitorioso nessa prática de dar a história o tratamento de uma roleta de cassino.
Ou
não será nisso que o conservadorismo aposta para levar a eleição de
outubro a um segundo turno do tipo ‘todos contra o bando do PT’?
O
incentivo quase paternal aos protestos contra a Copa do Mundo
dimensiona o valor elevado que o jornalismo isento atribui a essa
aposta.
É nesse ponto, quando o alarido do presente embaça a
percepção do futuro, que a balança crítica deve escrutinar o saldo da
coerência no prato da direita e no da esquerda.
Um exemplo
extremo, à esquerda, a título de ilustração, foi a política de
capitalismo de Estado, adotada por Lênin, em março de 1921, com amplas
concessões ao capital privado.
Quando a NEP (nova política
econômica) foi instaurada, a Rússia revolucionária sangrava ferida de
fome, desabastecimento, desemprego e colapso na infraestrutura.
A NEP regenerou práticas capitalistas contras as quais se fez a revolução.
Por
exemplo: o investimento privado do capital estrangeiro foi liberado no
setor varejista ( o comércio atacadista foi preservado em mãos do
Estado).
Enquanto avançava a criação de cooperativas no campo,
a NEP proibia novas expropriações de indústrias nas cidades; a
nacionalização de fábricas só poderia ocorrer após minuciosa avaliação
do governo revolucionário.
Não só.
Foi restaurada a livre contratação de mão de obra.
O salário igualitário foi suprimido.
O critério de produtividade foi reposto no cálculo das folhas.
E
mais: a população passou a pagar pelos serviços de água, transportes,
moradia, jornais, correio e eletricidade, gratuitos no início da
revolução.
A ninguém ocorre carimbar em Lênin o epíteto de
‘covarde’ por ter cedido espaços ao capital quando a alternativa era
perder tudo.
Pode-se (deve-se) discutir exaustivamente os gargalos e erros que levaram a experiência de 1917 a desaguar na queda de 1989.
Carta
Maior tem opiniões claras sobre isso: uma delas remete à natureza
indissociável entre socialismo e participação direta da sociedade na sua
construção.
É impossível, porém, negar à biografia de Lênin a
coerência por ter reagido como reagiu ao risco de uma metástase do
regime, em 1921.
Feito esse entrecho à esquerda, voltemos à
coerência de Aécio Neves e assemelhados na defesa, algo tardia, que
fazem agora da Petrobrás.
Avulta aqui o oposto na balança.
Não há qualquer coerência entre o que se diz no presente, o que se praticou no passado e o que se promete consumar no futuro .
Alguém
duvida que entre as ‘medidas impopulares’, das quais o tucano se jacta
de ser um portador destemido, encontra-se a quebra do regime de partilha
do pré-sal, que hoje garante a redistribuição da renda petroleira na
forma de educação, saúde e infraestrutura aos nossos filhos e aos filhos
que um dia eles terão?
Não estamos falando de um detalhe tangencial à luta pelo desenvolvimento brasileiro.
O
pré-sal, é forçoso repetir quando tantos preferem esquecer, mudou o
peso geopolítico do Brasil ao adicionar à sua riqueza uma reserva da
ordem de 50 bilhões de barris de óleo.
A preços de hoje isso significa algo como US$ 5 trilhões.
É
como se o Brasil ganhasse dois anos de PIB --sob controle político da
sociedade-- para se recuperar das mazelas seculares incrustradas em
seu tecido social.
Não se trata tampouco de um futuro remoto.
O pré-sal já alterou a curva de produção da Petrobras.
A estatal, que levou 60 anos para chegar à extração de dois milhões de barris/dia, vai dobrar essa marca em apenas sete anos.
A ignorância tudo pode, mas quem desdenha dessa mutação em curso sabe muito bem o que está em jogo.
Dez sistemas de produção do pre-sal entram em operação até 2020.
Hoje, os novos reservatórios já produzem 400 mil barris/dia.
Em 2020 serão mais dois milhões de barris/dia.
A curva é geométrica.
Para
reter as rendas do refino na economia brasileira, a capacidade de
processamento da Petrobras crescerá proporcionalmente: de pouco mais de
dois milhões de barris/dia hoje, alcançará 3,6 milhões de barris/dia em
seis ou sete anos.
O conjunto requer US$ 237 bilhões em investimentos até 2017.
É o maior programa de investimento de uma petroleira em curso no mundo.
Seus desdobramentos não podem ser subestimados.
A
infraestrutura é o carro-chefe do investimento nacional nesta década.
Mais de 60% do total de R$ 1 trilhão a ser gasto na área estará
associado à cadeia de óleo e gás.
Objetivamente: nenhuma agenda
política relevante pode negligenciar aquela que é a principal fronteira
crível do desenvolvimento brasileiros nas próximas décadas.
Mas
foi exatamente esse sugestivo lapso que o agora patriótico Aécio Neves
cometeu em dezembro de 2013, quando lançou sua agenda eleitoral como
presidenciável do PSDB.
Em oito mil e 17 palavras encadeadas em
um jorro espumoso do qual se extrai ralo sumo, o candidato tucano não
mencionou uma única vez o trunfo que mudou o perfil geopolítico do país,
o pré-sal.
A omissão fala mais do que consegue esconder.
Seu
diagnóstico sobre o país, e a purga curativa preconizada a partir dele,
são incompatíveis com a existência desse incômodo cinturão estratégico
a encorajar a construção de uma democracia social , ainda que tardia,
por essas bandas.
Ao abstrair o pré-sal a agenda de Aécio para o
Brasil mais se assemelha a uma viagem de férias à Brazilândia do
imaginário conservador, do que à análise do país realmente existente
–com seus gargalos e trunfos.
Só se concebe desdenhar dessa
janela histórica –como o fez o agora empedernido defensor da CPI -- se a
concepção de país embutida em seu projeto negligenciar deliberadamente
certas urgências.
Por exemplo, a luta pela reindustrialização
brasileira, da qual as encomendas do pré-sal podem figurar como
importante alavanca, graças aos índices de nacionalização consagrados no
regime de partilha.
Mais que isso: se, ao contrário, a alavanca
acalentada pelo tucano, para devolver dinamismo à economia, for como
ele gosta de papagaiar aos ouvidos do dinheiro grosso, o chamado
‘choque de competitividade’.
Do que consta?
Daquilo que a emissão conservadora embarcada na mesma agenda alardeia como inevitável dia sim, o outro também.
O
velho recheio inclui ingredientes tão intragáveis que se recomenda
dissimular em um contexto eleitoral, a saber: ajuste fiscal drástico,
com os custos sociais sabidos; ampla abertura comercial –com a
contrapartida imaginável de desindustrialização adicional e desemprego;
livre movimento de capitais; privatização do que sobrou das estatais
(quando Aécio fala em ‘estatizar’ a Petrobrás é a novilíngua, em ação
beligerante contra a inteligência nacional); cortes de direitos
trabalhistas e de poder aquisitivo real dos salários –para reduzir o
custo Brasil e tornar o país ‘atraente’ ao capital estrangeiro.
Por último, ressuscitar a lógica da Alca e atrelar a diplomacia do Itamaraty aos interesses norte-americanos.
Em resumo, um neoliberalismo requentado, indiferente ao prazo de validade vencido na crise de 2008.
Reconheça-se, não é fácil pavimentar o percurso oposto, como vem tentando o Brasil desde então.
Com a maturação da curva do pre sal as chances de êxito aumentam geometricamente nos próximos anos.
Não é uma certeza, é uma possibilidade histórica.
Os efeitos virtuosos desse salto no conjunto da economia exigem uma costura de determinação política para se efetivarem.
Algo que a agenda eleitoral do PSDB omite, renega e descarta.
Em
nome da coerência, Aécio Neves deveria adicionar ao seu pedido de CPI
uma explicação ao país sobre o destino reservado ao pre-sal, caso as
urnas de outubro deem a vitória a quem assumidamente se propõe a ser uma
réplica do governo FHC em Brasília.
http://www.cartamaior.com.br/?/Editorial/Lenin-Aecio-e-a-coerencia-historica/30746
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