Por-Francisco Fonseca (*)
O Governo do prefeito Fernando Haddad vem promovendo algumas
importantíssimas reformas e transformações que não aparecem na grande
mídia, mas têm sido captadas pelo cidadão comum que vive e transita na
cidade de São Paulo. Torna-se fundamental compreender quais e como esses
avanços instituem políticas públicas transformadoras e incipientes
novas relações democráticas.
Embora se trate de um governo com
diversas ordens de problemas, tanto internos como derivados da draga do
sistema político brasileiro, pois marcado pela coalizão e de
financiamento privado, algumas grandes iniciativas merecem destaque,
nesse cerca de um ano e meio de governo.
Em primeiro lugar, o
destravamento da participação popular, embotada pelos obscurantistas
Governos Serra/Kassab. Várias iniciativas merecem destaque: a criação do
Conselho da Cidade, com mais de uma centena de membros, à luz do que
ocorre no Governo Federal, é claramente a sinalização de um governo que
quer ouvir a sociedade politicamente organizada. Mas destaque especial
deve ser dado à criação do Conselho de Representantes em cada
subprefeitura, pois se trata da mais significativa demonstração de apoio
à democracia representativa de base, em que o cidadão comum pode se
eleger e consequentemente participar, propor, vetar e fiscalizar ações
das subprefeituras.
Várias subprefeituras já começaram a
mobilizar seus representantes, assim como a ouvir suas demandas e as dos
cidadãos em diversas regiões – por metodologias diversas –, o que é
algo inteiramente inédito, em contraste ao obscurantismo simbolizado
pela indicação de coronéis nas gestões Serra/Kassab para comandar as
subprefeituras. Aliás, é fundamental lembrar que o então prefeito José
Serra entrou com liminar no STF, ainda hoje não apreciada, vetando o
Conselho de Representantes então aprovado pelo Plano Diretor da época.
Deve-se
notar, nesse contexto, o profundo esvaziamento das subprefeituras em
termos orçamentários, políticos, programáticos e de
elaboração/implementação de políticas públicas efetivado nesses tempos
sombrios do serrismo, o que torna essa iniciativa do Governo Haddad
fundamental tanto à participação popular como à sinalização de que a
descentralização – embora haja muito a avançar no próprio atual governo –
é a alternativa ao enfrentamento dos grandes desafios de uma cidade
como São Paulo.
Como aludido, algumas subprefeituras já têm
realizado interessantes e inovadores processos de reflexão sobre o
bairro – afinal, os conselheiros das subprefeituras atuam nos bairros – e
a cidade e sobre o próprio papel dos conselheiros. Esse momento
político democrático tem aberto espaço para a criação de métodos de
audição das demandas, interesses e desejos dos cidadãos, na perspectiva
“de baixo para cima”, isto é, sem pautas pré-definidas, o que implica a
priorização potencial, por subprefeitura, de temas prioritários de
debates e representação a partir dos próprios cidadãos, sendo, em
determinados casos, os conselheiros porta-vozes dessas demandas surgidas
na base da representação.
Por si só isso representa um rico
processo de construção daquilo que Archon Fung chamou de “minipúblicos”,
isto é, espaços de representação e deliberação relativamente autônomos
surgidos da base da sociedade. Embora, no caso dos conselhos das
subprefeituras, seja iniciativa do Poder Executivo municipal, há grande
espaço para autonomia, invenção e participação autônoma, cabendo, dessa
forma, o conceito de minipúblico em cada subprefeitura, uma vez que
decididamente descentralizado.
Mesmo que, reitere-se, a agenda
descentralizante – motivação para a criação das subprefeituras, em
substituição às então Regionais – tenha muito a avançar quanto à
autonomia orçamentária e administrativa e quanto à capacitação e
empoderamento voltados à formulação, implementação e monitoramento de
políticas públicas, entre outros aspectos, é alvissareira a retomada da
agenda participatória e descentralizante em São Paulo. Retomada em razão
de os únicos avanços nessa direção terem vindos das ex-prefeitas Luíza
Erundina e Marta Suplicy, e seguidamente embotados pelos antipopulares
Governos Maluf/Pitta e Serra/Kassab.
Ainda nessa linha, o
Conselho do Transporte (público) também foi criado e representa resposta
do poder público municipal às manifestações de junho/2013, abrindo pela
primeira vez a “caixa preta” das planilhas de custos do sistema de
transporte. Diversos outros conselhos têm sido criados nessa perspectiva
de incluir o cidadão comum, seja diretamente seja por meio de
representantes, na vida da cidade. Tem-se observado, nesse sentido, não
apenas vontade de participar, como o demonstram os números dos eleitos e
suas votações, dados num contexto de baixa divulgação e de quase
desprezo da grande mídia, como a preocupação do cidadão comum com um dos
aspectos mais drásticos das grandes cidades: a especulação imobiliária.
Mesmo sabendo-se não ser da competência legal dos representantes das
subprefeituras atuar num tema exclusivo de legislação parlamentar,
inúmeros conselheiros e, mais ainda, parcelas expressivas de cidadãos
comuns têm demonstrado preocupação com a tomada do Estado pelos
interesses do capital imobiliário: daí o tema da especulação imobiliária
ser uma espécie de símbolo da redemocratização atual da cidade e da
apropriação de seus espaços, pois vigorosamente esvaziados e travados
pelos Governos Serra/Kassab.
Do ponto de vista das políticas
públicas, a democratização do transporte é marcante, isto é, a
priorização do transporte público sobre o particular tem sido outro
aspecto fundamental de retomada, pelo Governo Haddad, de iniciativas
instauradas pelos Governos Erundina e Marta, agora com novas modalidades
que ampliam a utilização do bilhete único, mas sobretudo com a
implantação das faixas exclusivas para ônibus em toda a cidade. Trata-se
de medida com custos baixos, de efeito imediato e que aponta para a
criação de uma nova cidade, em que o espaço das vias públicas
progressivamente está sendo direcionado à esmagadora maioria dos
habitantes e transeuntes de São Paulo: os que se utilizam do transporte
público, notadamente do ônibus, que em São Paulo transporta cerca de
seis milhões de passageiros ao dia. Mais ainda, os indicadores
demonstram que a velocidade média dos ônibus tem aumentando
constantemente, e que em determinadas faixas chega a até 80% a mais.
Não
é por acaso que os 12% dos habitantes que se utilizam exclusivamente de
automóveis e que são – desproporcionalmente – representados pela grande
imprensa (jornais, revistas, rádios e televisões) têm no Governo Haddad
seu inimigo declarado. Igual destaque deve ser dado à criação dos
corredores de ônibus em locais estratégicos. Não é por acaso também que a
foi a Fiesp a instituição que conseguiu barrar, no Poder Judiciário,
outra iniciativa democratizando do Governo Haddad referente ao aumento
do IPTU progressivo, uma vez que democratizador de um dos principais
impostos municipais. Grande mídia, Fiesp e Poder Judiciário – sempre com
exceções honrosas – formam uma tríade elitista sempre disposta a barrar
políticas públicas e programas que revertam as históricas prioridades
governamentais em prol dos pobres na principal cidade do país.
Voltando
às inovações quanto ao transporte, o Projeto “CET no Seu Bairro” tem
feito também inédita reversão de prioridades, isto é, voltado suas ações
à mobilidade, além de atuar para além do centro expandido, isto é, em
direção às grandes periferias historicamente esquecidas. Trata-se de um
conjunto de intervenções, que vão desde a instalação das referidas
faixas exclusivas de ônibus que cortam a cidade até intervenções
urbanísticas na área de transporte, trânsito, acessibilidade,
sinalização e mobilidade, entre outras, que significam a presença do
Estado (municipal) nas áreas periféricas. Guardadas as devidas
proporções, simbolicamente há certa semelhança com a ocupação das
favelas do Rio de Janeiro pelos aparatos públicos, não apenas policiais,
uma vez que, reitere-se, o poder público no que tange ao
transporte/trânsito/mobilidade historicamente relegou a periferia a, de
fato, um lugar periférico também na agenda governamental.
Nunca é
demais assinalar o descaso com que os Governos Serra/Kassab e, antes,
Maluf/Pitta, trataram o amplo e majoritário universo periférico de São
Paulo: as poucas iniciativas inclusivas tiveram o tom ou de populismo
casuístico ou de mera vitrine eleitoral de programas ínfimos. Avanços na
área de participação e transporte colocam o Governo Haddad na linhagem
dos Governos Erundina e Marta, o que pode ser exemplificado pelas
aludidas revisões de prioridades, o que não é pouco para uma cidade
complexa e elitista como São Paulo.
Por fim, e também em
contraste com os governos conservadores da linhagem Maluf, Pitta, Serra e
Kassab, ressalte-se os vigorosos progressos na área de transparência e
combate à corrupção com a criação da Controladoria Geral do Município
(CGM). A partir da experiência de sua congênere federal, da qual o
controlador geral e outros membros provieram, a CGM tem desbarato máfias
poderosíssimas e com potencial lesivo bilionário: as máfias de
licenciamento de imóveis e do IPTU, sem contar a criação de mecanismos
de gestão capazes de cruzar dados de servidores públicos envolvidos com
fiscalização.
Nesse sentido, a suposta e autointitulada marca do
PSDB de “partido da gestão competente” se desfaz inteiramente, tendo em
vista o completo sucateamento dos mecanismos fiscalizatórios, dos
recursos humanos públicos – que na gestão Serra/Kassab tiveram aumentos
vexaminosos de 0,01% ao ano durante os dois mandatos – e da gestão
pública, uma vez que fortemente privatizada, terceirizada e
contratualizada e sem diretrizes e fiscalização programática e
financeira.
Não bastasse isso, o processo de transparência, por
meio seja da ampliação da participação popular, seja da criação da CGM e
de mecanismos de gestão fiscalizatórios afins, seja ainda da reversão
de prioridades com a participação das comunidades locais torna-se
claramente mais eficaz e eficiente, diferentemente do que prega a
cartilha neoliberal. Afinal, numa sociedade democrática os fins
(políticas públicas transformadoras) e os meios (formas pelas quais se
pretende atingir tais fins, notadamente pela gestão e pelo controle
social) devem ser consoantes.
Por todo esse contexto, do qual o
legado Serra/kassabisa é trágico – fins e meios –, a Gestão Haddad,
apesar de inúmeras fragilidades e problemas, é, sem qualquer dúvida,
infinitamente melhor aos pobres do que as de seus dois últimos
predecessores. Certamente seu até aqui um ano e meio é muito superior
aos oito anos de flagrante atraso dos Governos Serra/kassab.
A
expectativa dos setores populares e progressistas é que as medidas aqui
analisadas possam ser aprofundadas, e outras tantas criadas, tornando-se
a gestão na cidade de São Paulo um possível paradigma para outras
gestões progressistas nas macrometrópoles.
Falta, contudo, ao
Governo Haddad, melhorar significativamente sua comunicação com a
população – por meios diversos, sobretudo os populares –, saindo do
cerco elitista dos privilegiados que querem a priorização do automóvel
individual, o baixo valor de seus IPTUs nos bairros de classe média alta
e a cidade voltada aos negócios, ao capital e ao consumo. A batalha da
comunicação é uma batalha política, tal como as analisadas aqui.
Além
disso, a descentralização, por meio das subprefeituras, como dissemos
tem amplo potencial ainda pouco utilizado: caberia de fato ter um
projeto político de descentralização a ser implantado em curto prazo e,
para tanto, a experiência dos Conselhos de Representantes, paralelamente
aos movimentos sociais, é fundamental na construção desse histórico
projeto.
Por fim, a revisão do Plano Diretor é igualmente
alvissareira, embora – como não poderia deixar de ser – se dê em meio a
pressões assimétricas de todo tipo, a começar pelo impetuoso capital
especulativo. A relatoria do vereador Nabil Bonduki tem sido garantia de
um processo aberto e orgânico e sua própria visão de urbanista
contempla vastos interesses populares. A questão, como sempre, é a
capacidade da maioria dos cidadãos, constituída por pessoas pobres e sem
acesso à cidade – que cada vez é mais sitiada –, de pressionar o poder
público num sistema político pulverizado e de certa forma privatizado
pelo sistema eleitoral e pelo financiamento privado das campanhas.
Apesar
de todas as assimetrias, aliás históricas, os diversos avanços –
estrategicamente pouco divulgados pela mídia – do Governo Fernando
Haddad necessitam de divulgação e de ampliação com vistas a interceder
na correlação de forças sociais no município de São Paulo.
O que
tem sido feito nesse um ano e meio é um sinal de que o que se considera
“possível” é sempre relativo e depende de vontade política, de projeto
de governo, de apoios e de visão tática e estratégica do que está em
jogo a partir do município de São Paulo.
(*) Francisco
Fonseca, cientista político e historiador, é professor de ciência
política no curso de Administração Pública e Governo na FGV/SP.
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Os-grandes-e-pouco-divulgados-avancos-do-governo-Haddad/4/30759
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