segunda-feira, 22 de setembro de 2014

É Clara Rojas uma vítima das FARC-EP?

Fonte: Equipe Editorial Resistencia


“A proposta de Ingrid foi de que tirassem o menino de Clara, porque, a seu ver, apesar de ser sua mãe, ou o deixava morrer ou saía matando-o”, diz a guerrilheira Diana num extenso relato sobre os acontecimentos da acompanhante de Ingrid Betancourt durante a retenção na selva.

O relato é uma bomba política porque traz ao mundo novos elementos até agora inéditos. ANNCOL reproduz aqui a versão, desta vez da guerrilheira Diana, que esteve por todo o tempo com Clara Rojas.

“A aventura foi grande, porém pudemos cumprir com nossa missão, conduzindo todos os prisioneiros a salvo”.


Apresentação

Desde o momento em que Alberto Martínez, uma experiente autoridade do Estado-Maior do Bloco Oriental, assumiu o comando da Companhia encarregada da segurança dos prisioneiros de guerra, Diana, sua companheira sentimental, se somou também à missão. Em suas próprias palavras, registramos boa parte de suas lembranças daqueles dias.

Vale fazer notar que na guerrilha, por conta da transmissão oral, se conhecem muitas coisas da vida coletiva, mesmo que sucedam a centenas de quilômetros. O Mono Jojoy dedicava uma hora diária, sagradamente, a dar uma palestra informativa ao pessoal de sua companhia de guarda. Era quase rotineiro que à referida palestra assistisse também o pessoal de três, quatro ou mais companhias da área circundante, às quais ele ordenava recolher com esse mero propósito. Desse modo, o pessoal conhecia em primeira mão as incidências do restante das unidades das FARC-EP.

É assim como a situação dos prisioneiros de guerra era amplamente conhecida por boa parte dos guerrilheiros dos Blocos Oriental e Sul. Assim como também quem era destinado às unidades sob cuja responsabilidade se encontravam esses prisioneiros, terminava informando-se, pelo relato dos demais, das diferentes circunstâncias vividas com eles nos dias e meses anteriores. Dali que a veracidade do relato por Diana esteja quase por fora de qualquer dúvida.

Desde logo que existem versões diferentes, fornecidas pelos desertores da organização que decidiram pôr-se a serviço do inimigo. São as menos críveis, porque perseguem o propósito fundamental, exigido ademais pelos serviços de inteligência militar, de enlamear o mais possível a causa, as intenções e as atuações dos integrantes de nossa organização, com o expresso propósito de desprestigiar-nos. Essas versões passam a fazer parte das chamadas operações psicológicas, uma arma de guerra ensinada pelos manuais de contra insurgência elaborados nos Estados Unidos. Sua credibilidade é zero. Quanto às versões dos prisioneiros em liberdade, todas procuram destacar a própria atuação pessoal, na contramão da realidade, esforçando-se por fazer de seus captores uns monstros, em concordância com a chamada correção política: ninguém que se expresse em bons termos sobre a guerrilha pode ser respeitável. A grande imprensa e a pressão das chamadas forças ocultas se encarregarão de fazer-se entender aos que pretendam colocá-lo em dúvida. Essa opressão se torna mais terrível que a que se teria podido sofrer na selva, porque é aberta e silenciosa, clandestina e pública ao mesmo tempo, e se pratica no próprio entorno social do afetado. Corrói, destrói integridades econômicas e morais. Ninguém quer assumir esse risco.

Equipe Editorial Resistencia

Relatado pela guerrilheira Diana

Em meio ao desenvolvimento do Plano Patriota, orientado e dirigido por Álvaro Uribe, demos cumprimento ao plano emanado pelo Secretariado Nacional do Estado-Maior Central das FARC-EP: Preservar a vida dos prisioneiros de guerra.

A retenção de Ingrid Betancur e Clara Rojas foi cumprida na área do Bloco Sul. Nesse momento já se havia dado aviso aos políticos em campanha presidencial para que não marcassem presença na área da antiga zona evacuada. Ingrid Betancur decidiu desafiar as FARC, viajando a San Vicente, o qual termina em sua longa apreensão. Ela viajava com o chofer, Clara e creio que um segurança. Ao explicar-lhes que é ela a que fica retida, que os demais podem ir embora, Clara Rojas recusa-se a ir e, por sua própria determinação, decide ficar com Ingrid. Afirma que qualquer coisa que suceda a Ingrid também deve ocorrer com ela. Nesse momento parece um gesto de lealdade pessoal para com sua amiga e companheira de política, no que insiste de modo enfático. Mais adiante se saberia que era muito mais que isso. Tanto insistiu que acabou ficando. Por sua condição de mulheres e sua extração social, os comandos acordaram um trato preferencial para elas. As duas gozavam de algumas liberdades no acampamento, jamais estiveram atadas. Isso permitiu que em duas ocasiões tentassem fugir, sendo recapturadas pelo pessoal que saía em sua busca. Enquanto permaneceram no Bloco Sul, aconteceu a gravidez de Clara. Ali ela conheceu ao papai do menino, um dos guerrilheiros que atuava como guarda. A questão é simples, se gostaram e passou o que passou, às escondidas, claro, esse tipo de relações não é permitido na guerrilha, nem creio que em nenhum exército do mundo. Para que falar mais disso? Clara se entregou a ele por sua livre vontade. Ainda que talvez se arrependesse depois.

O Mono repetiria em muitas palestras que, de acordo com a versão de Clara, ela só havia conhecido dois homens em sua vida. Ao primeiro, que a tinha decepcionado completamente, e agora ao rapaz que a engravidou. Até então, a relação sentimental que ela sustentava com Ingrid desde muito antes de sua captura, havia se mantido dentro das dificuldades normais que se produzem nesse tipo de relações. Ingrid chegou a se queixar várias vezes do excessivo assédio de Clara, até expressar que não queria mais dormir com ela. Porém a notícia da gravidez de Clara causou sérias diferenças entre elas. Ingrid não entendia que ela tivesse se enamorado do papai do menino. Aquilo as levou a discutir, a romper sua relação. Ingrid durou um bom tempo sem voltar a dirigir-lhe a palavra.

Quando foram postas à disposição do Bloco Oriental, o encarregado da unidade era Martín Sombra, o hoje renegado das FARC. Quando de sua captura, Martín Sombra se encontrava desertado das FARC, depois de muitíssimos anos de militância guerrilheira. Ele havia sido desses que se chamaram bandoleiros, liberais dos anos ’50, uma pessoa com muitas deformações em sua cabeça que, a pesar disso, conseguiu sobreviver e permanecer nas FARC. Sempre se lhe conheceu aqui como um mitomaníaco, um mentiroso de vocação, ao qual só o Mono ou o Camarada Manuel [Marulanda] conseguiam manter sob controle. Velho e doente decidiu renunciar à luta, em troca de usufruir a grande vida que nunca pôde ter aqui. Hoje, mimam-no os do governo e do Exército. Porém, nesses dias, seguro que por sua antiguidade nas fileiras, se lhe encarregou dos prisioneiros. Ele, por sua própria conta, continuou deixando Ingrid e Clara soltas no acampamento, violando as orientações do Mono, quem, informado do comportamento delas no Bloco Sul, tinha ordenado mantê-las mais controladas. Ingrid e Clara se comportavam bem, faziam tortas de chocolate para celebrar os aniversários, não só delas ou dos prisioneiros como também dos guerrilheiros da guarda. Porém, um bom dia, tentaram escapar quando tomavam banho de rio. Ingrid é uma boa nadadora e, estando distantes da margem, combinou submergir com Clara, ambas nadando até sair bem abaixo. Quando os guardas se deram conta, nenhuma das duas aparecia por nenhuma parte. Enviou-se a buscá-las e lhes encontraram facilmente no trilho. Era inverno e havia barro.

Daí em diante se decidiu pôr fim às regalias com elas, simplesmente as introduziu no interior de um cárcere. Sombra, tal e como costumavam, havia violado as ordens, agora se viu obrigado a cumpri-las. Os demais prisioneiros não levaram a mal a gravidez de Clara. Quando se informaram, se puseram bem contentes e começaram a fazer roupinha, brinquedos feitos de potes usados de Neofungina [o talco que se lhes dava para os pés], sapatinhos, gorros, tudo necessário para um bebê. A própria Ingrid terminou fazendo um carregador para ele. A maioria dos prisioneiros fabricou objetos para o menino, assim como os guerrilheiros.

Penso que o tratamento recebido pelos prisioneiros foi o mais adequado desde o ponto de vista humano. A vida na guerrilha pode tornar demasiado dura e primitiva para as pessoas da cidade, mais ainda se encontram habituadas a certas comodidades muito superiores às da maioria do povo.
Nós estivemos sempre no meio da selva, às vezes a dezenas e até centenas de quilômetros de qualquer lugar povoado onde se poderia conseguir as coisas necessárias para um grupo humano tão considerável. Ademais, há que levar em conta que nosso abastecimento devia ser efetuado na clandestinidade, para evitar ser localizados. Isso impõe desafios muito difíceis, ao tempo que certa prioridade na satisfação das necessidades. Há que aprender a privar-se de muitas coisas elementares que não resultam tão vitais. Na selva não há rodovias nem estradas, talvez veredas para mulas de carga ou por onde transitar a pé, com um peso de várias arrobas nas costas, com destino a um acampamento. Utilizar os rios e as quebradas implica conseguir e mover canoas, motores, gasolina, óleo, fazer uma infraestrutura complexa e usá-la corretamente, pois sempre há aviões e helicópteros procurando, a partir do ar, localizar qualquer movimento. E também gente que pode delatar em troca de uma promessa de dinheiro por parte do Estado. Então, nada é fácil, os sacrifícios que os guerrilheiros têm que realizar são muito grandes. Isso, os prisioneiros levam muito pouco em conta, aos quais nunca faltou a comida, o abastecimento de vestir e para dormir, os medicamentos mais básicos, os objetos de higiene pessoal e todas essas coisas.

Era lógico que as coisas se pusessem mais difíceis se o inimigo conseguia conhecer nossa localização e lançar suas operações por ar e terra. Tropa por todas as partes, aviões lançando bombas sem importar um pouquinho se matavam os prisioneiros, rastreamento e seguimentos permanentes, rajadas de metralhadora lançadas por helicópteros, desembarques sobre a rota que seguíamos. A estadia em lugares fixos tinha que chegar a seu fim, se acabavam os acampamentos, tinha que permanecer em marcha, em mobilidade total, em disposição de combate. Responder pela vida, integridade, saúde e segurança dos prisioneiros se tornava muito mais complicado nessas condições. E no entanto se fazia, sob a chuva e entre o barro, sob o sol mais implacável, na escuridão das noites. Algo que muitos não podem compreender é que a guerra é muito dura, no meio de tantas dificuldades não pode haver hotéis de cinco estrelas.

Quanto à alimentação, no meio dos bombardeios, metralhamentos, e o desdobramento do Exército por terra, o fornecimento de mantimentos se realizava no ombro das tropas guerrilheiras, ou em lancha, até chegar a seu destino, que era a unidade encarregada dos prisioneiros de guerra. Os mantimentos se compunham de leite, azeite, carboidratos, verduras, tubérculos [mandioca, inhame etc], proteínas, grãos, enlatados, inclusive outros artigos para a dieta de alguns prisioneiros, como o caso de Géchem e um dos norte-americanos, que não lembro qual. Ingrid Betancur convocou aos demais prisioneiros em duas ocasiões a declararem greve de fome, com o pobre argumento de que se sentia aborrecida com a mesma comida. Era certo que, à medida que a operação militar se incrementava, o abastecimento se tornava mais difícil, já não chegavam frutas e outros artigos como antes. Isso resultaria compreensível para qualquer pessoa, menos para ela. Os policiais e militares não se somaram nunca à greve, tampouco os demais políticos. Só Ingrid e Clara. Se não me falha a memória, creio que o máximo que agüentaram foi dois dias, porém porque comiam às escondidas do que guardavam de reserva. Cansaram-se logo e tiraram as camisetas da greve. Então, desde a hora do café da manhã, comiam abundantemente, até pedir inclusive mais sopa e broa, das quais antes detestavam. Quando tínhamos acampamento no meio da selva, ao redor dele se mantinham as reses que eram abatidas a cada 15 dias, para o fornecimento de carne. Tínhamos 250 galinhas, muitos patos, se mantinham de 20 a 30 porcos. Contávamos com uma padaria, com todo o necessário para a elaboração do pão, e se fazia pão integral para os doentes. Se lhes prestava serviço de odontologia, enfermaria e barbearia. Havia uma biblioteca com boa literatura e documentos nossos, aos quais os prisioneiros tinham acesso. Tinha televisão com DVD para apresentar-lhes filmes. Tínhamos à nossa disposição 3 canoas com motores para o transporte e várias motosserras para derrubar [árvores] e preparar a madeira necessária para as instalações. A segurança interna dos prisioneiros era prestada por guerrilheiros homens, em parte porque eram maioria em relação às mulheres encarregadas, e em parte para evitar que se repetisse o que aconteceu com o Bloco José María Córdoba, onde uma garota se deixou seduzir e depois escapou com um prisioneiro. As mulheres estavam destinadas à segurança externa, e a cumprir com os rapazes os trabalhos necessários no acampamento.

Quanto à saúde, se contava com instalações sanitárias adequadas ao habitat em que vivíamos. Aos prisioneiros, sempre se lhes solucionava os casos de saúde, como as enfermidades tropicais da área, o planejamento e inclusive enfermidades diagnosticadas antes de sua retenção, segundo as solicitações de alguns prisioneiros, como diabetes, PA, problemas de colo etc. Ainda com as dificuldades descritas acima, se lhes fornecia os medicamentos necessários. Em seu momento, chegou a orientação de que Clara Rojas fosse novamente excluída do cárcere, por seu avançado estado de gravidez. Não vou dizer que fosse por maldade, certamente se devia às pressões psicológicas que sofria por causa de seu estado nessa situação, porém o certo era que havia que permanecer sumamente vigilantes com ela. De repente, era possuída por uns ímpetos incontroláveis de nervos que a conduziam a golpear fortemente a barriga, com o propósito declarado de perder o bebê. Ao tratarmos de acalmá-la, gritava enfurecida que ela não ia poder explicar ao país o nascimento desse filho. Se lhe organizou um dormitório à parte, perto da enfermaria, e lhe foram destinadas duas guerrilheiras e dois enfermeiros para seu cuidado, assim como para a preparação de seus alimentos. Seus arrebatamentos eram constantes, gritava e nos insultava, nos tratava mal, golpeava-se a barriga, jogava fora os alimentos que lhe levavam, nos chamava violadores. Foi uma verdadeira odisséia agüentá-la até o momento do parto. Uma vez, começaram nela as dores, se pensou que ia ter um parto normal. Porém sua atitude foi totalmente negativa, gritava de tudo contra os enfermeiros. Eles lhe indicavam que fizesse força e ela respondia que não podia, que se sentia fraca, que a deixassem morrer, que não queria continuar vivendo e que, uma vez morta, a enviassem para sua mamãe. Nesse momento, nossa responsabilidade era salvá-la e salvar a criatura, e se fez tudo quanto esteve ao nosso alcance para consegui-lo. O conhecimento dos enfermeiros quanto a cesariana não era suficiente, e tampouco se contava com o instrumental cirúrgico mais adequado. Porém, com a melhor disposição se puseram à tarefa de salvar as duas. Após praticar-lhe uma incisão vertical e buscar a criatura, por sua estranha quietude, os enfermeiros pensaram que o bebê estava morto. Então se esforçaram por salvar pelo menos ela, para o qual procederam a extrair o bebê o quanto antes. No forcejo para consegui-lo, o menino sofreu a fratura do braço. Porém, o certo foi que isso o conduziu a reagir e mover-se, pelo que os enfermeiros descobriram que ainda vivia. Então se dedicaram a extraí-lo com o maior cuidado, conseguindo salvar-lhe a vida, tanto a ele como a sua mãe. Ela teve que permanecer cerca de uma semana com a incisão aberta, por causa de uma infecção que contraiu devido a alguma bactéria. Aplicaram-lhe todos os cuidados médicos possíveis, até que finalmente se conseguiu curá-la. Porém, logo veio o problema de que não produzia suficiente leite para amamentar o bebê, ademais de que ela não tinha a menor ideia de como fazê-lo. Nessa ocasião, havia uma garota, Yency, em quem ainda havia leite. Era a companheira sentimental de Sombra nessa época, e ela se encarregou de alimentar o menino, o que conseguiu fazer durante um mês. Depois, foi sucedida por outra companheira, Marta, e finalmente outra, até que o leite secou em todas elas. Então, a alimentação da criatura continuou com leite S-26 de tarro. O camarada Jorge, El Mono, tinha ordenado abastecer com leite, fraldas descartáveis e de pano, roupa, creme, xaropes, no possível todo o necessário, tanto para o bebê como para a mãe. Tudo isso foi fornecido a ambos. Decidiu-se encanar o braço do menino, o que se procurou fazer da melhor maneira. Porém Clara se mostrava sempre muito rude com ele, e magoava-o com frequência. Depois da recuperação, se permitiu que Clara permanecesse durante dois meses no acampamento.

Nesse tempo, as garotas que cuidavam do menino se dedicaram a ensinar-lhe tudo o relacionado com seu cuidado: como tinha que lhe dar banho, trocar as fraldas e a roupa, preparar o bule, como levantá-lo para que o seu braço não se ferisse, quais eram os horários em que dormia o bebê. Também insistiram muito no asseio pessoal dela própria para evitar qualquer infecção.

Depois, voltou ao cárcere com o menino. Transcorreram 3 dias, durante os quais o menino chorava muito. Então, Ingrid pediu audiência para falar com o encarregado da unidade, já para então o camarada Alberto, pois se tinha ordenado demitir Sombra. A explicação de Ingrid foi que tirassem o menino de Clara, porque, na sua opinião, a pesar de ser sua mãe, ou ela o deixava morrer ou iria matá-lo. Se aquilo não se tornasse possível, pedia que pelo menos as guerrilheiras encarregadas de levar alimento para o menino o examinassem detidamente, pois era certo que tinha algo. Em atenção à sua solicitação, se disponibilizou a revisão do bebê.

Clara tinha sido muito descuidada, lhe deixou criar assaduras, e não sei de que grau, porém o certo era que tinha os testículos e o pintinho em carne viva, e seu braço se encontrava desencanado, arroxeado e saído do lugar. Informado disso, o camarada Jorge recebeu a orientação de manter o menino no acampamento, para curá-lo e cuidar dele como era devido, levando-o à mamãe duas vezes ao dia, para que ela visse e o mimasse. Numa das ocasiões em que lhe levam o bebê, Clara o agarra e o aperta com raiva, machucando-lhe de novo o bracinho. Então, continuam levando-o, porém por fora da malha, para que apenas o veja. Igual, num descuido, as garotas sempre são nobres e se aproximam dele demasiado, Clara lhe agarra o braço enfermo com força, com má intenção. Desta vez, sua afetação foi mais grave, porque no menino já estava soldando a fratura e com o brusco puxão ficou-lhe o braço quase pendurando no músculo. Ao obriga- la a soltar a criatura, Clara começou a gritar-nos coisas terríveis, a insultar-nos, se puxava o cabelo, golpeava a malha, parecia completamente enlouquecida. A partir desse momento se lhe proibiu todo contato direto com o menino, levavam-no, sim, porém para que o visse de longe. O braço do bebezinho ficou definitivamente curado, porém ficou torto. Não tínhamos recursos para fazer-lhe uma cirurgia de correção, essas são coisas de especialistas. Com o tempo, a própria Clara solicitou que lhe permitissem uma audiência com o encarregado. Quando a concedem, solicita respeitosamente que lhe deixem ter o menino, comprometendo-se com todos os argumentos possíveis a não voltar a lhe fazer dano.

Não se atendeu completamente a sua solicitação, tinha-se desconfiança dela, a cada vez que se lhe permitiu tê-lo, terminava ferindo-o. Em seus freqüentes momentos de depressão, assegurava que ela não queria esse menino, que essa criatura lhe havia desgraçado a vida para sempre. Já me referi à mudança das condições de reclusão. Por sorte para Clara, para o bebê e para todos, o anterior teve lugar enquanto estivemos estabelecidos no acampamento no meio da selva, nos limites entre o Caquetá e o Guaviare. Porém, em 2004 fortaleceu-se o Plano Patriota e, por essas coisas da guerra, um desertor que se voa, vai e se entrega ao Exército, fornecendo-lhe a informação sobre nosso paradeiro. A ordem de Mono não se fez esperar. Era necessário evacuar o acampamento completamente e empreender a marcha em direção a Sétima Frente, nos limites do estado do Meta. Uma companhia móvel de guerrilha podia cumprir essa ordem sem maiores complicações, porém para nós outros, com o grupo de prisioneiros, vários deles enfermos e desmoralizados, com mulheres e até com um bebê de braços, atravessar semelhante extensão de selva, carregando nas costas tudo o que fôssemos necessitar, se tornava sumamente difícil.

Vários dos prisioneiros, os quais não sabiam o que sucedia e aos quais tampouco se lhes podia dar muitas explicações, pareceram pôr-se de acordo para complicar mais as coisas. Um guerrilheiro, em média, deve carregar em seu equipamento nas costas entre duas e três arrobas de peso, além de suas provisões, aparelhos, granadas e fuzil que deve portar a instante por necessidade. Uma marcha pela selva pode compreender, num dia, entre dez e vinte ou mais quilômetros a pé, dependendo dos obstáculos que encontre, como represas, rios, fios empinados e outros. E deve cumprir, mesmo que chova, troveje ou faça o mais ardente dos sóis. Enquanto todos caminhem e carreguem, não há maiores problemas dos normais. Porém, outra coisa sucede quanto há enfermos, gente que não pode caminhar ou carregar com seu provimento nas costas. O peso que estes deveriam levar, há que dividi-lo entre os demais. Se há que carregar a algum em rede, deve destinar-se um grupo de seis para isso. Dois, liberados de todo peso, levantarão em seus ombros a vara na qual se amarra a rede que carrega o enfermo, a toda velocidade que possam andar tentarão avançar o trecho mais longo possível, digamos, meio quilômetro, ou algo assim, até que seu corpo não dê mais. Então, descarregarão a rede sobre os ombros de outros que vão substitui-los. E estes um trecho adiante nos terceiros. Enquanto uns carregam o enfermo, os outros quatro se lançam a reboque, em cima de seu próprio provimento, dos equipamentos e das armas dos que carregam, marchando imediatamente atrás deles. Não se descansa quando se descarrega o enfermo sobre os outros, há que jogar-se nas costas o próprio equipamento e a provisão dos que carregam o enfermo. O único descanso se produz quando há que soltar esse peso para carregar a rede com o enfermo. Essa é uma tarefa que requer força, energia e determinação sem igual. Geralmente, cumprem-na os homens, ainda que, às vezes, há garotas com a força física para executar também essa tarefa.

Pois bem, vários dos prisioneiros, entre eles o agora General Mendieta, a quem vale aplicar aquela sentença de que chora como mulher o que não foi capaz de fazer como homem, declararam que não se sentiam em condições de marchar por entre a selva. Se declararam enfermos gravemente incapacitados. A própria Ingrid Betancur, sempre tão empavonada, decidiu alegar em seu benefício que ela tampouco estava em disposição de pôr-se a caminhar. Segundo disse, ela estava muito bem em sua casa e nós outros a tínhamos aqui contra sua vontade. Assim que também se somou à greve. Exigiu que a carregássemos ou a deixássemos aí. Não foi um momento fácil. Sabíamos que o Exército avançava por terra para o lugar e que em qualquer momento começariam os bombardeios, metralhamentos e desembarques de tropas.

Se agora escrevem livros, contam histórias dramáticas ou reclamam indenizações, fazem-no esquecendo que continuam com vida graças ao fato de que os guerrilheiros das FARC decidimos enfrentar todas as dificuldades com eles em cima, antes que abandoná-los no meio da manigua [terreno coberto de ervas ruins], onde não teriam sobrevivido nem por um par de dias. Ademais dos que houve que carregarmos em rede por necessidade ou capricho, tivemos que destinar duas guerrilheiras para que se encarregassem do menino, cuidando para que nada pudesse afetá-lo. Os próprios norte-americanos prisioneiros expuseram que nessas condições se tornava impossível ligar rádios transistores para a segurança de todos. Um avião podia localizar-nos pelo sinal que emitissem. E também recomendaram outras medidas, com o objetivo de evitar que viéssemos a ser vítimas dos bombardeios aéreos. Sabiam que, nessas circunstâncias, como já haviam vivido no passado, o Exército colombiano não faria distinção entre guerrilheiros e prisioneiros. A ordem de Uribe era tirar esse problema de cima, se havia que matar os prisioneiros com tudo e guerrilheiros, melhor para ele. As mortes sempre seriam creditadas à guerrilha, nisso os grandes meios de comunicação não falhariam. Por isso, doravante se restringiriam muitas coisas, começando pelos rádios, as lanternas e luzes nas noites, o brilho e a fumaça dos fogões, a secagem das bolsas plásticas ao sol etc. Também é justo dizer que, quando se falou com todos os prisioneiros sobre as novas condições, a maioria adotou uma atitude diferente da de Ingrid e Mendieta. Compreenderam de que se tratava e se mostraram dispostos a afrontá-lo.

Marchamos durante dias e semanas no meio do inverno pela selva, guiados por uma bússola, um mapa, um transportador e um compasso. Haviam-nos dado as coordenadas da rota e, ainda que carregávamos um GPS, esse tipo de aparelhos eram muito novos para nós e nenhum sabia usá-lo corretamente. O camarada Alberto pediu permissão ao Mono para que um dos norte-americanos nos explicasse e ele concedeu a autorização. Recomendou que pedíssemos o favor ao mais velho, porém este não soube explicar-nos ou não lhe entendemos, porque seu espanhol era muito deficiente. Nos restou seguir com as ferramentas que tínhamos. Nos abastecemos nos equipamentos de economia, carne, galinhas, o mobiliário, ou seja, as panelas, os casinos ou barracas para o rancho, paus, machados, manilhas, gerador de energia elétrica; gasolina, remédios, munições, a alimentação para o menino, todo o necessário.

Iniciamos a dura caminhada pela rota traçada, rompendo por entre a selva e desconhecendo os obstáculos. Só sabíamos que o Exército já se encontrava na área e que devíamos ter muita disciplina, pois poderíamos esbarrar com alguma patrulha. É de recordar que o Plano Patriota se caracterizou pelo alto número e o grande tamanho das patrulhas que penetravam na selva, batalhões completos de contraguerrilhas, divididos em duas ou três colunas separadas uns cem metros entre si, para se auxiliarem mutuamente no caso de entrar em combate. El Mono, que sempre estava pendente de nós pela rádio, orientou ao camarada Alberto que deixasse três guerrilheiros no acampamento, com comunicação permanente conosco, para que semeassem minas nos acessos ao mesmo. Esse comando seria, por sua vez, nossa retaguarda, com a ordem de marchar três dias depois de nós termos saído. Como eram poucos, não tardariam em alcançar-nos. Sua tarefa fundamental era apagar qualquer rastro nosso.

Tínhamos dois dias de marcha quando escutamos com toda clareza disparos e ruídos de morteiro em direção ao lugar onde estava o acampamento. Eram quinze horas. Desde esse momento, o comando não voltou a informar pela rádio. Até então teríamos avançado uns quatorze quilômetros. O Exército já se encontrava no lugar de nossa partida dois dias atrás. Depois, soubemos que desse comando sobreviveram dois jovens, um guerrilheiro e uma guerrilheira, que permaneceram perdidos durante um mês completo no meio da selva, sustentando-se com a água das canhadas e dos restos e frutos que sabiam se podiam comer. Apareceram, vestidos de farrapos, numa companhia nossa de combate que os acolheu com alegria.

O camarada Jorge decidiu enviar companhias de combate em nosso auxílio, umas para que retivessem o avanço da tropa e outras para encontrar-nos e apoiar-nos. Porém, para isso ia ser necessário que transcorressem vários dias. A partir desse momento começou o sobrevôo de helicópteros e aviões por sobre a selva em que nos movíamos. Alberto pediu permissão ao Mono para mudar a rota, e ele nos deu seu consentimento. Alberto sacou o mapa e começamos a buscar uma rota que nos conduzisse ao desvio mais estreito do rio Tuna, que conhecíamos como A Ilha do Sol. Assinalamos a rota no mapa e nos dispusemos a avançar. Antes de partir, se acordou que 8 unidades ficassem como retaguarda nesse lugar. Com o propósito de apagar completamente o trilho à tropa que nos seguia, nos metemos numa represa e começamos a avançar com a água na cintura e, às vezes, no peito. Assim andamos todo aquele dia. Era tão dificultoso o trânsito com carga que Ingrid preferiu descer ao solo e começar a caminhar. O bebê chorava de maneira incessante, havia muitos espinhos que feriam o corpo.

Quando os helicópteros passavam sobre nós, Ingrid se punha como louca, e começava a gritar com todas as forças que aí estávamos. Essa situação, acima do ridículo, pois resultava impossível que a escutassem, exasperava aos demais prisioneiros, militares, policiais e políticos, que lhe exigiam encarecidamente que se calasse. Compreendiam que esse tipo de atitude punha em perigo a vida de todos e repreendiam-na por essas ocorrências absurdas. Às 17 horas, conseguimos finalmente sair da represa. Para qualquer rastreador se tornava impossível encontrar um rastro na selva após essa manobra. Quase todas as galinhas chegaram mortas. Todos tínhamos a pele coberta de sanguessugas, a dolorosa e repugnante praga dos pântanos. O único que não foi atacado por elas foi o bebê, certamente porque não teve contato com a água. Alguns fomos buscar lenha e desbastá-la, outros a explorar em todas as direções possíveis. Os enfermeiros se dedicaram a ajudar na extração das sanguessugas, os prisioneiros foram guiados para tomar um banho. Localizamos uma área para passar a noite e Alberto se dedicou a traçar a rota do dia seguinte.

Tudo isso nos tocou fazer muito rápido, pois se proibiu iluminar o mais mínimo depois que escurecesse. Não podia fazer o menor barulho. Pusemos videiras pelos caminhozinhos para guiar-nos até os postos de guarda, sanitários e abrigos. Nos localizamos por guerrilhas. Também três guerrilheiros tiveram que regressar, para encontrar os 8 que ficaram para trás. Voltamos a reunir-nos todos. Às 4:15, na madrugada, já estávamos todos prontos, ao lados dos equipamentos, em silêncio. Preparávamos de uma vez o café da manhã e o almoço. As garotas carregavam água fervida para preparar os alimentos para o menino e para dar-lhe de beber para matar a sede. Nesse dia saímos tarde porque se prepararam todas as galinhas que levávamos e fritamos, ademais, a carne para que não se estragasse. Nessas condições, Clara, comovida, se dirige a Alberto e lhe manifesta que, se quiser, ela também pode ajudar a levar o menino. E como alternativa lhe propõe que as garotas que o carreguem caminhem ao lado dela, ou que a deixem caminhar ao lado dessas garotas. Alberto lhe diz que, se se comporta adequadamente com o menino, se lhe permitirá carregá-lo durante os momentos de descanso. Porém lhe adverte terminantemente que não pode maltratá-lo o mais, nem muito menos tentar matá-lo, como fez várias vezes. Ela dá sua palavra.

Nas marchas Alberto dava os graus a vanguarda, que se compunha de 7 e ia adiante com a bússola. Seguíamos outros 6, com facões, abrindo caminho porque o terreno estava cruzado de videiras. Era dificultoso avançar com o enfermo que se carregava na rede. Os da bússola nos a rodávamos, caminhando 40 minutos no máximo de velocidade, e fazendo paradas para esperar a chegada do pessoal. Começamos a encontrar os trilhos das patrulhas do Exército. Com poucos dias levamos um bom susto. Mariela ia como guia e eu a seguia. Uns dez metros atrás vinham os outros. Por volta das onze da manhã, estando à beira do barranco que caía no rio, ouvimos um tropel um pouco adiante. Inicialmente pensamos que se tratava de uma anta. Ao avançar um par de passos mais, vimos umas folhas do lado de baixo se moverem. O que quer que fosse, se dirigia exatamente para nós outras. Paramos e fizemos sinal para os de trás para que ficassem quietos, porque vinham abrindo caminho. Ao detalhar para adiante, percebemos que se tratava de gente. Nos estendemos de imediato. Nesse momentos, até a respiração da pessoa parece barulhenta, já não havia tempo para avisar ao grosso do pessoal, tínhamos os vultos em cima. Maior foi nosso susto quando vimos uniformes brilhantes, imediatamente pensamos no Exército.

Preparamos nossas armas para disparar, quando vimos alguém mover-se a um lado. Vestia sudário preto e um suéter de cor azul. As palavras que dizia faziam parte do nosso vocabulário. Esperamos outro pouquinho para verificar, e conhecemos um camarada de nome Jeferson. A alma nos voltou ao corpo, porém tínhamos o problema de como fazer para parar-nos sem que eles disparassem contra nós, pensando que éramos inimigos. Até que nós, duas mulheres, nos levantamos e dissemos em coro, Jeferson. Eles se estenderam e ficaram quietos, sem dizer nada. Nós avançamos para eles, e assim foi como não dispararam, pois estavam nos buscando.

Foi a primeira companhia que nos encontrou. Com eles já se tornava mais fácil o avanço porque cobriam as laterais e nós marcharíamos no centro. Bem, depois desse susto, nos encontramos com o obstáculo do desvio do rio Tunia, que se encontrava cheio porque era o mês de outubro, temporada de inverno. Chegamos na margem e mandaram buscar uns potrillos [canoas pequenas de madeira]. Só encontraram um, no qual cabiam apenas duas pessoas. Para passar duas companhias assim, demoraríamos muito. Então estenderam as manilhas de margem a margem do rio e cruzamos agarrados a elas. Para cruzar os equipamentos fizemos pacotes com eles, cruzamos o bebê na canoa. Havíamos chegado a esse lugar às doze, só às dezesseis horas terminamos de passar.

Na nossa companhia levávamos uma cadela, que ficou do outro lado e começou a latir. Às 20 horas cruzaram-na. No dia seguinte saíram as explorações e encontraram trilho recente do Exército, o qual nos obrigou a desviar a rota. A cadela, sem dúvida, sentiu pelo olfato a presença próxima da tropa e começou a latir muito. Não houve maneira de fazê-la calar, assim que nos restou tomar a dolorosa decisão de matá-la. A partir desse dia se desencadeou completamente o inverno, pisávamos a cada momento no rastro do Exército, assim como eles encontravam o nosso com freqüência. Começamos a nos encher de vermes anelados, leishmaniose, manchas feias na pele pela picadura das sanguessugas, gripe, nossas provisões foram se esgotando. A aventura foi grande, porém pudemos cumprir com nossa missão, conduzindo todos os prisioneiros a salvo. Aquilo é agora apenas uma lembrança, que muitos, e mais ainda agora, com os acontecimentos de Havana, pretendem utilizar contra nós. Estou convencida de que no caso do menino de Clara não houve a mínima intenção de maldade ou de mentira por parte das FARC.

Na Sétima [Frente] se recebeu a ordem de dividir os prisioneiros em vários grupos. Já nunca voltariam a estar todos juntos. Daí em diante a guerra recrudesceu com toda a intensidade, algo que raras pessoas podem sequer imaginar em que consiste. A decisão de pôr o menino de Clara sob o cuidado de uma família campesina obedeceu, sem dúvida alguma, a uma decisão temporária e impensada, que correspondeu à natureza da confrontação. Por isso mesmo, não pôde voltar a recolhê-lo como se esperava.

Clara é agora Representante à Câmara (Deputada Federal), em representação da ultra direita. Se apresenta como uma vítima nossa. Com a mão no coração, posso dizer-lhe que ela não tem esse direito.


Montanhas de Colômbia, 1o de setembro de 2014

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