sexta-feira, 29 de agosto de 2014

A guerrilha das mídias alternativas

Por Altamiro Borges*

Já há consenso nas esquerdas políticas e sociais brasileiras de que a mídia privada, controlada por meia dúzia de famílias, manipula informações e deforma valores. Ela atua como "aparelho privado de hegemonia do capital”, conforme a clássica definição de Antonio Gramsci. Ainda segundo o intelectual italiano, ela cumpre o papel de autêntico partido das forças da direita. Esta postura, que atenta contra a democracia, hoje é ainda mais agressiva.

Por Altamiro Borges, em seu blog


A TVT entrou no ar no dia 23 de agosto de 2010.

Como confessou recentemente Judith Brito, ex-presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ) e executiva do Grupo Folha, a velha mídia adota a "posição oposicionista” diante do governo Dilma, já que a "oposição está fragilizada”. Não é para menos ela também passou a ser rotulada de "PIG – Partido da Imprensa Golpista”, a partir de uma ironia difundida pelo irreverente blogueiro Paulo Henrique Amorim.

Diante desse poder ditatorial, inúmeros atores sociais já perceberam que têm dois desafios simultâneos e titânicos pela frente. O primeiro é o de quebrar a força deste exército regular das classes dominantes. Daí a urgência da luta pelo novo marco regulatório do setor, que hoje se expressa na campanha liderada pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) de coleta de 1,4 milhão de assinaturas para o Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLIP) da mídia democrática. O segundo é o de multiplicar e fortalecer os veículos próprios de comunicação das forças populares, construindo uma mídia contra-hegemônica que se contraponha às manipulações do poderoso PIG. Estes instrumentos atuam como uma guerrilha no enfrentamento ao exército regular dos impérios midiáticos, numa prolongada operação de cerco e fustigamento.

A história do Brasil está repleta de ricas experiências de construção desta "imprensa alternativa” – desde os anarquistas, no início do século XX, passando pelos comunistas durante várias décadas, até chegar à heroica fase do jornalismo de resistência à ditadura militar. Na fase recente, estas iniciativas se multiplicaram, conectaram-se com as novas tecnologias e adquiriram novo impulso. Elas ainda não conseguiram se constituir em fortes veículos nacionais contra-hegemônicos, como já ocorre em outros países da rebelde América Latina. Mesmo dispersos, porém, estes veículos promovem a guerrilha informativa e incomodam os barões da mídia. O texto a seguir trata de quatro destas experiências, que não são as únicas: a imprensa sindical, a TV dos Trabalhadores, o movimento dos "blogueiros progressistas” e os novos coletivos de ativistas digitais.

A força da imprensa sindical

A imprensa sindical, iniciada pelos anarquistas estrangeiros, pode ser considerada a origem da "mídia alternativa”. Ela enfrentou a violência das classes dominantes, com o empastelamento de vários jornais e a prisão de centenas de gráficos e comunicadores populares. Na frágil democracia brasileira, inúmeras vezes abortada por golpes militares e ondas autoritárias, a imprensa sindical atuou com coragem e dedicação, contrapondo-se aos ataques dos veículos patronais contra as lutas dos trabalhadores por seus interesses imediatos e futuros. Após o colapso das concepções anarquistas, os comunistas passaram a hegemonizar o sindicalismo e sempre trataram como prioridade a comunicação nas entidades de classe.

O golpe militar de 1964, apoiado pelos mesmos barões da mídia dos dias atuais, interrompeu o avanço das lutas dos trabalhadores. Os generais intervieram em centenas de sindicatos, prenderam seus líderes, nomearam "pelegos” e transformaram as entidades em "repartições públicas”. A imprensa sindical quase faliu – restando apenas boletins de "colunas sociais”, de confraternização dos velhos pelegos com os empresários e os carrascos da ditadura. Mas a luta dos trabalhadores não cessou, com a criação de centenas de "jornais de fábrica” e a construção de oposições sindicais. Com a retomada do movimento grevista, no final da década de 1970, a imprensa sindical voltou a florescer.

Pesquisa realizada pelo ex-metalúrgico Vito Giannotti e pela jornalista Cláudia Santiago, do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), apontou a existência, no final dos anos 1990, de centenas veículos sindicais. Somente nas entidades filiadas à CUT, a maior central do Brasil, trabalhavam mais de 300 jornalistas, que produziam mensalmente quase 7 milhões de exemplares de jornais e boletins. Como brinca Vito Giannotti, "maior do que a redação cutista só existia a das Organizações Globo”. De lá para cá, ocorreram muitas mudanças na área, mas o movimento sindical não perdeu a sua força comunicativa. Ele passou a investir também em programas de radio e tevê, na internet e em outras ferramentas.

Segundo o jornalista João Franzin, criador da Agência Sindical, esta vasta produção tem papel fundamental na conscientização e organização dos trabalhadores. "A imprensa sindical brasileira publica mais de 10 milhões de exemplares por mês, basicamente boletins e jornais, distribuídos nos locais de trabalho, entregues de mão em mão, no contato direto entre os sindicalistas e os trabalhadores”. Para ele, ainda há problemas nesta comunicação, especialmente na linguagem e no trato dos temas nacionais. Mas ele garante que estes meios alternativos são decisivos para os avanços da luta classista. "A imprensa sindical informa, orienta e combate abusos. Ela ajuda o trabalhador a construir sua cidadania concreta”.

A experiência da TV dos trabalhadores

Foi no bojo destes avanços sindicais que nasceu a TVT, a primeira emissora outorgada a uma entidade de trabalhadores. Ela entrou no ar em 23 de agosto de 2010, resultado de 23 anos de pressão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista sobre o governo. Formalmente, ela pertence à Fundação Sociedade, Comunicação, Cultura e Trabalho, entidade cultural sem fins lucrativos, criada e mantida pelo sindicato. Vários conteúdos próprios são produzidos pela equipe, em especial um jornal ao vivo de trinta minutos – "Seu Jornal”. Também foram firmadas parcerias com a TV Brasil e outras emissoras públicas, que completam a grade de programação. Os programas são transmitidos na tevê a cabo e pela internet.

A decisão de investir numa emissora de televisão, conhecida pelos elevados custos, evidenciou a compreensão da direção sindical sobre o papel da comunicação na atualidade. Segundo Valter Sanches, presidente da fundação, a TVT emprega quase 100 profissionais. Só com equipamentos foram investidos R$ 1 milhão. O custo mensal da programação gira em torno de R$ 400 mil. E para garantir a outorga da concessão pública, o sindicato precisou fazer um aporte financeiro de R$ 15 milhões com recursos próprios na conta da fundação. Mesmo assim, a outorga só foi conquistada em outubro de 2009, por meio de um decreto assinado pelo ex-presidente Lula, que se projetou na luta operária do ABC paulista.

Todos estes investimentos e esforços empreendidos, segundo Valter Sanchez, foram necessários e valem a pena para enfrentar as manipulações da mídia monopolizada. Já nas greves operárias do final da década de 1970 ficou evidente o ódio de classe das emissoras privadas de televisão, que fizeram de tudo para satanizar os grevistas e derrotar o nascente movimento operário. "O sindicato abraçou o desafio de esperar 22 anos na fila por uma concessão de radiodifusão porque percebeu a importância estratégica da comunicação. Entendeu que precisamos lutar, também, no campo da mídia”. Para alavancar ainda mais o alcance da TVT, a fundação articula agora novas parceiras e novos investimentos.

No final de julho passado, a fundação firmou um acordo com a direção do Sindicato dos Bancários de São Paulo para produzir novos programas e ampliar o alcance da transmissão. A TVT não consegue ainda mensurar sua audiência, mas desde o ingresso na tevê a cabo, via NET, os sinais da vitalidade da emissora ficaram mais nítidos. A meta agora é ampliar este alcance, dialogando principalmente com a juventude que saiu às ruas na jornada de junho de 2013. "As pessoas buscam ter voz, querem divulgar suas ações. E para isso não existe espaço na mídia tradicional”, explica Valter Sanchez. Ele lembra que a TV Globo foi um dos alvos dos protestos juvenis, o que revela o despertar de maior senso crítico na sociedade.

O barulho dos "blogueiros sujos”

O senso crítico realçado pelo dirigente da TVT tem buscado também outros canais de expressão, que se somam às antigas formas de organização da sociedade, como sindicatos, entidades estudantis e movimentos comunitários. Neste sentido, a brecha tecnológica aberta com a descoberta e a difusão da internet permite que novos atores entrem em cena, produzam conteúdo e ampliem ainda mais o vasto campo da chamada "mídia alternativa”. No mundo inteiro, a experiência do ciberativismo, que ganhou impulso no início do século, desafia o poder dos impérios midiáticos, resultando na queda abrupta da tiragem dos jornalões, na redução da audiência de emissoras de televisão e na crise do seu modelo de gestão.

No Brasil, o mesmo fenômeno está em curso e já provoca muito barulho, incomodando os barões da mídia. Através de sites e blogs, milhares de ativistas digitais fazem o contraponto às manipulações da velha imprensa, divulgam os movimentos sociais, lutam pela ampliação da democracia no país. No seu esforço cotidiano da guerrilha informativa, eles ajudam a quebrar o monopólio da palavra da mídia monopolizada. Não é para menos que geram tanto ódio das forças autoritárias, contrárias à verdadeira liberdade de expressão. José Serra, o eterno candidato deste setor, inclusive criou o rótulo de "blogs sujos” para tentar estigmatizar estes militantes virtuais. Na sua irreverência, os blogueiros até adotaram o título!

Segundo Leonardo Vasconcelos Cavalier Darbilly, em sua tese de doutorado para a Fundação Getúlio Vargas, "o surgimento da blogosfera política no Brasil, caracterizada pela divergência com relação ao posicionamento de grande parte da mídia tradicional, ocorreu ao longo da década de 2000”. O primeiro "blog sujo” foi o Viomundo, criado pelo jornalista Luiz Carlos Azenha em 2003. Em 2005 nasceram os blogs de Renato Rovai e Antônio Mello; Conversa Afiada, de Paulo Henrique Amorim, e o blog de Luis Nassif surgem em 2006; no ano seguinte nasce o Blog da Cidadania, criado por Eduardo Guimarães; já o blog Escrevinhador, de Rodrigo Vianna, apareceu em 2008.
Neste período, por todos os cantos do país – nas capitais e também em importantes cidades do interior – brotaram centenas de páginas pessoais que se contrapõem às forças políticas conservadoras e que polemizam com a mídia tradicional. Muitos jornalistas, descontentes com a cobertura enviesada da chamada grande imprensa, utilizam esta ferramenta para expor as suas posições criticas e independentes. Mas a blogosfera não se limita a este setor, permitindo que profissionais de diversas áreas exponham seus pontos de vista sobre vários temas. A maioria dos blogs ainda é produzida de forma amadora, sem recursos financeiros ou apoio logístico. Em função destes obstáculos, muitos não resistem por muito tempo.

Mesmo assim, a blogosfera foi se constituído num importante espaço da mídia contra-hegemônica. Ela atua como uma rede horizontal, sem a organicidade dos sindicatos e dos movimentos sociais estruturados, mas demonstra grande capacidade de interferir nos debates nacionais. O seu primeiro grande teste ocorreu eleições presidenciais de 2010, quando ela ajudou a desmascarar a cobertura partidarizada do famoso PIG. Com o tempo, os sites e blogs progressistas também se articularam, promovendo quatro encontros nacionais que primaram pela busca da "unidade na diversidade”. Hoje, a blogosfera é um instrumento decisivo na construção de uma influente mídia alternativa no Brasil.

Mídia Ninja e os novos coletivos

Outro elemento decisivo neste rico processo foi o florescimento de novos coletivos digitais, que agregam jovens criativos e ousados nascidos na era da internet. O mais conhecido é o Mídia Ninja – nome do grupo "Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação”. Ele foi criado em 2011, mas ganhou projeção nacional durante da jornada de protestos do ano passado, que abalou o país. Usando câmeras de celulares e unidades móveis montadas em carrinhos de supermercado, estes guerrilheiros virtuais transmitiram ao vivo centenas de passeatas, atos e choques com a polícia em todo o Brasil. Em alguns momentos, eles chegaram a pautar a paquidérmica e rancorosa mídia tradicional.

O Mídia Ninja teve origem na experiência do Pós-TV, uma iniciativa inovadora organizada pelo coletivo cultural Fora do Eixo. Sempre identificado com as lutas libertárias, ele cobriu a "marcha da maconha”, a "marcha das vadias” e as manifestações em defesa dos povos indígenas Guarani-Kaiowá. A partir da "jornada de junho”, porém, ele passou a ser alvo das forças de direita, sediadas nas redações da chamada grande imprensa. Este ataque resultou numa maior aproximação com os movimentos sociais organizados e com os setores da mídia alternativa. Como argumenta Rafael Vilela, integrante do coletivo, "ficou mais nítida a necessidade da união com os movimentos sociais na luta pela democratização do país”.

Para ele, a comunicação e o luta social são inseparáveis. "Por isso entramos em lugares que a mídia convencional não vai. Damos voz direta aos personagens, sem intermediários”. Na sua visão, o "Mídia Ninja é um laboratório de comunicação, que visa desmascarar o que a grande mídia edita e mostra como única verdade existente”. Do ponto de vista do futuro, Rafael Vilela defende que a iniciativa "não é nem deve ser um núcleo de cobertura de protestos, mas sim um canal midiático cidadão, trabalhando com diversas editorias, que vá dos protestos ao lazer e à cultura, sem abrir mão da crítica”. 

Neste rumo, a experiência é uma importante contribuição ao fortalecimento da mídia alternativa no Brasil.

*Altamiro Borges é blogueiro, presidente do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé e secretário nacional de Mídia do PCdoB.

Vítimas e vítimas

Por José Antonio Gutiérrez D. Fonte: Rebelión
Certo dia, passando em frente ao local de uma organização de caridade aqui em Dublin, vi um cartaz que dizia “Nossa organização continuará apoiando as vítimas de Israel e da Palestina no atual conflito”.

Compartilho a opinião dos que dizem que toda perda de vida humana é lamentável: porém, equiparar a tragédia dos dois mil civis palestinos massacrados com um ou dois civis israelenses mortos numa guerra assimétrica declarara por Israel sem nenhum apoio no direito internacional me parece um abuso indignante. Equiparar as vítimas de uma nação desarraigada, bloqueada, despojada, empobrecida, com um par de cidadãos respaldados por um dos Exércitos mais modernos do mundo e cujas famílias se beneficiarão de todo o apoio psicológico, econômico e social do Estado de Israel me parece francamente obsceno. Não só é desonesto, como também estúpido e, no entanto, constitui a narrativa com a qual os EUA justificam os crimes de lesa-humanidade de seu alfil no Oriente Médio. Porque, quando se trata de um conflito onde as partes são tão desiguais, tratar de equipará-las no discurso é um recurso para dar maior preponderância às minorias poderosas.
Uma situação parecida é a maneira como se está abordando o tema das vítimas que começa a ser discutido nas negociações de Havana. A delegação de vítimas que chegou a Havana [1], “muito plural, que representava vários fatos vitimizantes, várias regiões, vários estratos sociais e vítimas de vários vitimários”, nas palavras do representante da ONU em Colômbia, Fabrizio Hochschuild [2], reflete esse desequilíbrio. Representando a todas as vítimas por igual, se perde toda noção de representatividade no conflito colombiano, no qual a imensa maioria das vítimas são pobres e foram vitimizadas por agentes estatais ou paraestatais. Se continua, assim, invisibilizando a imensa maioria das vítimas dessa violência massiva que os pobres sofreram, fundamentalmente no campo, por parte do Estado com o propósito de massacrar a rebelião. Com o discurso dos “vitimários” se deixam de lado as responsabilidades políticas e históricas, assim como a escala das violências respectivas. Se nos dirá que é muito difícil manter o equilíbrio nestes casos: porém aí está a raiz do problema, e é que tal equilíbrio entre vitimários e violências não existe. No intento de criá-lo artificialmente, se desfigura a realidade. Ainda o mesmo termo “vítima” é utilizado de maneira bastante elástica na narrativa oficial. A partir da mídia se reitera que todos somos vítimas, ainda que, claro, alguns somos mais vítimas que outros. O Estado é uma vítima, na opinião de Álvaro Uribe, quem diz isto sem ruborizar-se, parodiando a Turbay Ayala quando dizia que ele era o único prisioneiro político em Colômbia. O tema de vítimas dá para tudo e, ainda que sei que se trata de um tema espinhoso e sensível, creio necessário discutir em torno a alguns problemas que obscurecem a real natureza do debate.

Que entendemos por vítima?
Um dos primeiros problemas é a falta de definição em torno a que nos referimos com vítimas: vítimas de violações ao direito internacional humanitário ou as violações de direitos humanos? Há uma tendência a confundir de maneira deliberada o DIH com os DDHH, tendência que tem ido paralelamente com uma tentativa de “privatizar’ os DDHH e ignorar que é responsabilidade suprema do Estado garanti-los em função de sua legitimidade ante a sociedade. Inclusive, os DDHH se converteram num exercício de relações públicas, ao mesmo tempo que em arma de guerra: os escritórios de DDHH do Exército estão ligados a Operações Psicológicas. DIH e DDHH não são a mesma coisa e sua confusão não ajuda a esclarecer o que está em jogo. Uma são as infrações dos atores em conflito no contexto da confrontação armada. [3] As violações aos direitos humanos são aquelas perpetradas pelo Estado ou por sua inação, por agentes do Estado ou por pessoas aliadas a ele [ex.: paramilitares], que vão diretamente contra as disposições estipuladas na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O particularmente grave deste último tipo de violações é que não somente vitimizam a pessoa, como também degradam as noções mais essenciais que se tem do ser humano na modernidade, assim como também degradam o conceito de cidadão em que se fundamenta o Estado Moderno, que, ainda que se possa argumentar que é uma ficção, representa uma obrigação para os que exercem o poder na atual sociedade. As violações aos direitos humanos, insistimos, são feitas pelo Estado e, ao decretar setores da sociedade como não-cidadãos, passo prévio a negar-lhes sua condição humana, abre as portas ao direito à rebelião consagrado no preâmbulo da Declaração dos Direitos Humanos. Nesta perspectiva, o surgimento dos movimentos guerrilheiros se vê numa luz completamente diferente.
Outro problema é a perspectiva temporal curta em que se assenta todo o debate em torno às vítimas. Se dá por assentado que o conflito armado que hoje se vive em Colômbia iniciou com o surgimento dos movimentos guerrilheiros FARC-EP e ELN entre 1964-1966. Ao máximo, como se faz no informe “Basta Ya” [Já Basta] do Centro Nacional de Memória História, se começa com a Frente Nacional em 1958. O problema com esta história “curta” é que não dá conta do momento em que o cenário para a atual violência foi assentado desde a década dos ’30, surgindo uma violência nítida, com uma continuidade até o presente desde 1946. Quando os guerrilheiros em Havana se declararam vítimas do conflito, despertaram iradas reações por parte dos gurus do estabelecimento e de seus obsequentes propagandistas na mídia. No entanto, se adotamos a história longa e uma compreensão cabal dos DDHH, poderemos compreender como os campesinos perseguidos no período conhecido como A Violência [1946-1958] se alçaram em armas, em rebelião, contra um Estado que, quando os massacrava e violava, observava impávido como as milícias privadas dos terra-tenentes faziam-no. Tudo isto tem logicamente que ver com o problema da memória e da verdade histórica, que também são temas que terão que ser abordados no marco das negociações.
O outro problema é que a mesma definição de vítimas também deixa de lado alguns elementos mais complicados para assegurar a natureza desta guerra degradada, difusa, às vezes difícil de definir: que passa com os exilados? Que passa com os presos políticos e de guerra vítimas de atrozes torturas e de privações de água, medicamentos, alimentos, produtos de higiene, etc? Uma pessoa que foi vitimizada por agentes do Estado ou paramilitares perde sua condição de vítima se se rebela e toma as armas? Que passa com as vítimas da limpeza social, esses ninguéns, os chamados descartáveis, que vivendo nas margens da sociedade não têm organizações que os representem? Que passa com os que foram vítimas de um modelo de desenvolvimento imposto a sangue e fogo pelas multinacionais? Por que não são as multinacionais, de fato, consideradas como um ator do conflito armado, apesar de sua aberta cumplicidade com agentes do Estado e com bandos paramilitares? É a natureza uma vítima do conflito, independentemente de sua centralidade para sustentar a humanidade como uma entidade viável? Que passa com as pessoas que, sem ter sofrido da violência física diretamente, sofrem da violência estrutural, da exclusão, da marginalização e da violência da sociedade imposta mediante a guerra, como é o caso das crianças famintas em La Guajira e em toda a Colômbia? São perguntas nada fáceis e que algumas organizações estão se atrevendo a expor.

A vítima despolitizada e passiva
Há uma tendência a despolitizar o conceito de vítimas, tendência na qual caíram alguns setores tradicionalmente vinculados à esquerda. Se pode afirmar que “não permitiremos que enfrentem as vítimas”, como se todos fossem a mesma coisa, porém esse nunca foi o problema de fundo. Esta maneira indiferenciada de abordar a problemática das vítimas reforça um discurso desmobilizador e apolítico que tem calado fundo em setores dos defensores de DDHH [Quanta falta faz o doutor Eduardo Umaña!]. Denunciar os “manejos políticos” ante o tema das vítimas é um sem sentido, precisamente, porque as vítimas estão inscritas num conflito essencialmente político.
O problema de fundo é que o debate em torno das vítimas [quem, como e em que sentido é uma vítima] é um debate que nos enfrenta com a natureza mesma do conflito social e armado em Colômbia, com essa violência que permeia diferencialmente ao conjunto da sociedade, violência que é, antes de tudo e por sobre todas as coisas, uma violência de caráter político. Explorar o problema das vítimas desde uma perspectiva asséptica, acrítica, como se fosse uma categoria que engloba a todos por igual é insustentável. Não se pode dar o debate das vítimas deixando de lado aspectos chaves de contexto nem da intencionalidade dos que perpetraram os atos de violência. Nem todas as violências são iguais. Este é um princípio chave do projeto “Nunca Mais”, no qual participaram as mais importantes organizações de DDHH do país, o qual expressa sem ambiguidades:
Desde há vários anos [...] nos vimos submetidas a extremas pressões, por parte de forças sociais, nacionais e internacionais, para que nossas denúncias e ações humanitárias se situem em ‘posições neutras’, que não aumentem as censuras sobre nenhuma das partes em conflito, e para que nosso trabalho se oriente por parâmetros de ‘equilíbrio’ que leve a estigmatizar ‘por igual’ e a ‘equiparar’ as diversas violências que afetam a sociedade colombiana. Se nos apresentou como princípio reitor que deve orientar nosso trabalho o de ‘Condenar toda violência, venha de onde vier’. Muitas vezes nos perguntamos se tal tipo de neutralidade é eticamente sustentável.
Cremos que nenhum tipo de discernimento ético pode dispensar-nos [...] de ter em conta [...] os móveis e estratégias globais que comprometem aos diversos atores enfrentados. Imperativos éticos [...] nos levam a censurar com maior força aos que se servem da violência repressiva para defender violências estruturais e injustiças institucionais que favorecem a camadas privilegiadas da sociedade, enquanto vitimizam, exterminam ou destroçam as camadas sociais mais pobres e vulneráveis, submetidas a séculos de despojo e injustiça.
[...] Não é possível ser neutro quando se é consciente de que um polo da violência é muito mais daninho para o conjunto da sociedade, ou acumula em si mesmo maiores perversidades, ou representa a oclusão institucional dos caminhos que poderiam conduzir a uma sociedade mais justa, ou acumula em seu haver maior violência contra os fracos. [4]
Que pena, e digo isto com todo o respeito do mundo: não é o mesmo o caso de Bojayá, onde o cilindro-bomba –lançado, ademais, de maneira irresponsável- foi desviado porém não houve a intenção explícita de assassinar pessoas, com os incontáveis massacres do paramilitarismo que foram feitos com intenção e traição. Por censurável que seja, não é o mesmo o sequestro de um parapolítico corrupto que o desaparecimento de um campesino que organizou sua comunidade para tratar coletivamente de superar os efeitos mais urgentes da pobreza. Jamais poderei estar de acordo com os que tratem de equiparar situações tão complexas e diferentes, equiparação que serve para encobrir a natureza politicamente motivada da violência que golpeia a Colômbia.

Uma opção ética, popular e libertária ante o tema de vítimas
Se há uma coisa na qual estou de acordo com os uribistas é que nem todas as vítimas são iguais: isto é tão certo em Colômbia como o é na Palestina. Creio que afirmar o contrário é uma estupidez que não tem nada a ver nem com o ato humano da empatia nem da reconciliação. Qualquer pessoa que tenha visto a televisão colombiana se dá conta disto que os uribistas insistem até o cansaço: algumas “vítimas” –as menos e as que tenham uma posição econômica privilegiada- recebem atenção em horários nobres, enquanto outras são vilipendiadas, ignoradas ou desprezadas com a terrível sentença “por algo terá sido’. O tema das vítimas reproduz a exclusão e marginalização de uma sociedade polarizada em classes que mais bem parecem castas. Isto o expressa muito melhor um artigo do mordaz Camilo de los Milagros:
Durante décadas se construiu uma narrativa da confrontação em Colômbia à medida das elites: maus muito maus contra bons impecáveis. Certas vítimas gozam desde então de um protagonismo claramente interessado em desprestigiar ao mau de ofício, ao demônio causador de todas as desgraças do país. Porém, que tão nocivo tem sido esse demônio? Por que, em lugar de um ou dois depoimentos lancinantes e sensacionalistas, não se avalia em conjunto a catástrofe humanitária onde ambos os bandos cometeram atrocidades? Por que não se esclarecem as responsabilidades completas?
[...] As comparações são odiosas, porém necessárias. Nenhuma comparação tão odiosa como esta de pôr mortos nos dois extremos da balança. Com horror se constata que 70% dos crimes cometidos no marco do conflito armado são atribuídos ao Estado ou seus agentes paralelos, enquanto nem sequer 20% correspondem aos grupos subversivos. É uma desproporção aterradora que não se corresponde para nada com a narrativa oficial. As cifras correspondem a medições das Nações Unidas, aos dados do CINEP e inclusive da Comissão de Memória Histórica, que o próprio governo nacional financia. Não é retórica estúpida, não é cumplicidade com o terrorismo, não é uma tentativa de desviar a atenção sobre os crimes da insurgência. É a constatação de como, usando um magnífico encantamento televisivo, um dos bandos vai sair limpo. O que mais dor tem causado. [5]
Ante o debate das vítimas, alguém tampouco pode ser neutro. Se tenho que estar com alguém, estou com aqueles que foram vítimas dos que quiseram manter uma das sociedades mais desiguais do planeta a sangue e fogo. Estou ao lado daqueles que se opuseram aos que trataram de aniquilar –até a semente- visões alternativas de sociedade. Estou com os que foram vítimas dos que se enriqueceram despojando aos que menos têm. Estou do lado dos que resistiram aos desígnios dos que, a fim de conservar seus nefastos privilégios, seriam capazes de fazer arder a toda Colômbia. Estou do lado dos que não se lhes permitiu nem sequer chorar a seus mortos por medo ao castigo de um Estado que celebra o espetáculo edificante do sangue jorrando de cabeças decapitadas. Estou do lado dos que não se lhes permitiu sequer dizer que são vítimas, porque as vítimas do Estado, supostamente, não existem. Estou do lado dos que nunca tiveram nem a televisão nem a imprensa para cobrir suas desgraças, ainda que me chovam raios e centelhas. Como se vê, o tema de vítimas é mais outro campo de batalha nesta confrontação fundamentalmente política.
Tradução de Joaquim Lisboa Neto
NOTAS:
[3] Isto sem abordar as inadequações do DIH para regular conflitos irregulares ou fundamentados na luta de guerrilha.
[4] Colombia Nunca Más , Capítulo V, Tomo I, 2000, pp.99-100.
(*) José Antonio Gutiérrez D. é militante libertário, residente na Irlanda, onde participa nos movimentos de solidariedade com América Latina e Colômbia, colaborador da revista CEPA [Colômbia] e El Ciudadano [Chile], assim como do sítio web internacional www.anarkismo.net. Autor de “Problemas e Possibilidades do Anarquismo” [em português, Faisca ed. 2011] e coordenador do livro “Orígenes Libertarios del Primero de Mayo em América Latina” [Quimantú ed. 2010].

”Nós falamos a partir da margem dos perseguidos” Jesús Santrich

Por Javier Alexander Macías. Fonte: El Colombiano

Em entrevista exclusiva com El Colombiano, Santrich respondeu sobre o papel das vítimas na mesa, o modelo de reparação que o grupo guerrilheiro propõe e sua responsabilidade no conflito armado colombiano. Frente à pergunta de reparação a suas vítimas, afirmou que nas Farc tudo é coletivo e não têm nada para repartir.
Na negociação, em que se avançou mais além do acordo parcial dos pontos discutidos até agora?
Não negociamos nada com o governo, dialogamos enfatizando os problemas fundamentais de ordem econômica, política e social que as maiorias têm em Colômbia e que em concreto têm que ver com a desigualdade, a miséria e a carência de democracia. Recolhemos as reivindicações que as organizações sociais e políticas apresentaram nos foros de discussão dos temas da Agenda de Havana e em suas jornadas de protesto, e as convertemos nas propostas mínimas que levamos à mesa e que são públicas. O avanço consistiu em conquistar esses três acordos parciais sobre reforma agrária, participação cidadã e nova política antidrogas, que são formulações para melhorar as condições de vida dos colombianos. À parte, avançamos em constituir uma Comissão Histórica do Conflito e suas Vítimas, que deve começar a esclarecer as origens, causas, efeitos e responsáveis pela longa confrontação da qual nosso país padece”.
Qual foi o momento mais crítico em dois anos de negociação?
Resolver os problemas enormes, profundos e de tanto raizame histórico de uma guerra que tem se prolongado por mais de meio século não é uma tarefa simples, apresenta múltiplas dificuldades e momentos de tensão, que não é o caso de detalhar aqui porque faz parte das controvérsias necessárias que temos e que as partes acordamos manter na discrição”.
O encontro com as vítimas, que benefícios traz ao processo de paz?
Se tratou de um acontecimento histórico que permitiu que as partes, os garantidores e os acompanhantes escutassem de viva voz da gente comum, que sofre as dores da guerra, seus próprios dramas. Porém, também se ouviram seus anseios profundos de reconciliação sobre a base da verdade, do respeito e do mútuo reconhecimento. Este certame preenche de muita esperança e compromisso as partes, e creio que em grande medida ao conjunto da sociedade que ouviu na rodada de imprensa as vítimas do conflito, e nos comunicados que se emitiram, que a vontade do povo está em que as partes não se levantem da mesa até chegar a um acordo que ponha fim à guerra”.
As Farc propõem a criação de um fundo para reparar as vítimas. De onde devem sair esses fundos para esta reparação?
“Falamos de disponibilizar imediatamente recursos orçamentários para financiar ressarcimentos materiais durante pelo menos uma década, mediante a criação do que denominaríamos um Fundo Especial para a Reparação Integral, com participação das organizações nacionais de vítimas. Dissemos que isto se constitui em imperativo, são das coisas que não podem condicionar-se à firma do Acordo Final.
Agora bem. De onde sacar estes recursos? Esta não é uma pergunta de resposta simples. Alguém pode dizer que a mera desescalada da guerra ou a firma de um acordo bilateral de cessar-fogo pode liberar recursos que hoje se desperdiçam na confrontação. Relembremos que pelo menos 6 pontos do Produto Interno Bruto estão dedicados à guerra, e isso representa somas multimilionárias que devem fluir mais para o investimento social e para a solução de problemas como os dos que as vítimas padecem”.
Falando das vítimas das Farc, como seria a reparação por parte do grupo guerrilheiro aos afetados por suas ações?
“Nós sempre falamos a partir da margem dos perseguidos e afetados pelo conflito que o regime impôs para garantir a acumulação capitalista que hoje se expressa, por exemplo, nas porcentagens de posse da terra. Você sabe que, para citar um caso, um terço do território nacional, ao redor de 40 milhões de hectares, está em mãos dos latifundiários pecuaristas. Essa realidade de desigualdade se construiu a sangue e fogo, assassinando, despojando e deslocando a população rural, sobretudo. Então, neste país, onde algo mais de 80% da vitimização foram causados pelo Estado e seus paramilitares, o essencial é resolver este tipo de problemas que são os que causaram e mantêm a guerra. O demais, digamos que vem como consequência.
Me refiro a que como consequência de um Acordo Final, o Estado, como máximo responsável desta confrontação, e o Estado reconstituído para estabelecer a justiça social e a paz, deve garantir os direitos de todas as vítimas. Isto inclui aqueles que tenham sido afetados por ações equivocadas ou por erros da insurgência. A parte que concerne diretamente ao ressarcimento das pessoas que possamos ter afetado durante a confrontação é mais de ordem moral, está mais ligada ao reconhecimento das faltas que possamos ter cometido durante esta confrontação tão longa e desigual na qual nós e nossas famílias também fomos afetados”.
Porém, as Farc têm bens que servem para a reparação de suas vítimas...
“Tudo o que temos é coletivo. Ninguém nas Farc possui bens pessoais como guerrilheiro, assim que não temos nada para repartir. A reparação no [nível] material, como produto do Acordo Final, implica, reitero, que na nova ordem institucional que surja, o Estado em sua nova estrutura deve encarregar-se do ressarcimento de todas as vítimas do conflito e disponibilizar os recursos para implementar os acordos em função do estabelecimento da justiça social e da paz”.
As Farc expressaram que, segundo estudos, em Colômbia há mais vítimas do Estado e dos paramilitares que da guerrilha, porém a Unidade Nacional de Vítimas revelou que são mais as vítimas da guerrilha que dos outros atores armados. Por que essa diferencia? Falta reconhecimento das Farc de suas vítimas?
“Não, não se trata de um desconhecimento de vítimas por parte das Farc. O que passa é que geralmente as cifras de uma instância como a Unidade Nacional de Vítimas se constroem tomando fontes mesmas do Estado, que estão distorcidas e apontam a todo custo a incriminar e desqualificar a insurgência e ocultar a responsabilidade do Estado na guerra. Esse tipo de informação o Estado também usa como arma de guerra, guerra de desinformação, de manipulação das consciências para desqualificar ao adversário.
Sentem que as vítimas estariam dispostas a perdoá-los?
“Nossa luta é para que todas as vítimas sejam reconhecidas e reivindicadas. Em Colômbia tem havido um longo conflito onde o conjunto da sociedade é vítima. Isco começando pelas consequências dolorosas das políticas econômicas que matam mais gente que a própria guerra. Nesse sentido, acreditamos que o tema do perdão, que é um assunto da consciência íntima, não se pode condicionar nem utilizar como instrumento de estigmatização política ou de show para que se satisfaça o morbo da imprensa e dos guerreiristas que se escondem detrás da manipulação dos sentimentos alheios. O perdão é uma definição da consciência de cada quem. Todos carregamos nossas dores e sofrimentos e, se não temos a decisão do perdão, pelo menos devemos ter a determinação da convivência em meio as diferenças de pensamento, se queremos que esta guerra termine”.
Que diriam às suas vítimas?
Aos que tenham sido afetados injustamente por nossas ações, de todo coração se lhes pediria perdão e trataria de encontrar reconciliação. Particularmente, creio que se requer uma contrição de todos os que atuamos na guerra e um gesto simbólico de perdão político que surja da responsabilidade coletiva que existe em Colômbia ao redor da permanência da guerra: devemos sair do campo da vindita e construir alteridade. Já particularmente, há coisas que eu não as perdoaria a nossos vitimários, porém repito que, se queremos acabar a guerra, pelo menos deve haver um compromisso de convivência e respeito mútuo”.
Haverá resposta para as vítimas que pedem saber onde estão essas pessoas que estiveram em poder das Farc e nunca mais voltaram a saber delas?
“O fenômeno do desaparecimento forçado é um assunto cuja responsabilidade se centra no Estado e seus paramilitares. Girar a argumentação, apresentando-a como se fosse o resultado de comportamentos e políticas das Farc é uma grande falsidade muito repetida de maneira premeditada pelos grandes meios de comunicação que pretendem posicionar a ideia de uma guerrilha vitimária da qual, inclusive, o Estado é vítima.
Não obstante, temos dito que estamos dispostos a ajudar a localizar lugares onde tenha havido combates e eventualmente terem ficado soldados e guerrilheiros mortos sem poder ser resgatados. Há alguns casos em nossas fileiras e, certamente, que nas fileiras do adversário, nos quais nunca irão aparecer combatentes que foram impactados por bombas ou explosões fortes. Isto é lamentável, doloroso, porém ocorre na guerra”. 
Há disposição para reconhecer as suas vítimas?
“Nós falamos a partir da margem dos perseguidos e não como vitimários. Não obstante, reconhecemos que em alguns casos possamos ter afetado gente inocente: isto como produto de erros ou de equívocos, não como política ou ação sistemática. Então, como revolucionários estamos no dever de reconhecer o que nos corresponda e reconciliar-nos com os afetados e ofendidos”.



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sábado, 23 de agosto de 2014

FARC-Vítimas em La Habana: Um reencontro com a dor em prol da reconciliação e da busca da Paz

Escrito por Yira Castro, integrante da Delegação de Paz das FARC-EP
Por ocasião do recebimento e das boas-vindas à primeira delegação de vítimas do conflito, o segundo segmento do ciclo 27 de conversações de Paz para Colômbia começou com uma sessão especial da Mesa de Conversações de Havana.
Foi uma recepção solene, respeitosa, muito aberta ao diálogo e a encontrar os caminhos que conduzam à solução das origens, das causas e dos efeitos da confrontação, com vistas a buscar a reconciliação, o fim do conflito e a construção da Paz.
A jornada desenvolvida no dia de ontem começou às 9 da manhã, hora em que chegaram as vítimas ao Salão de Protocolo del Laguito. Minutos antes, haviam-no feito os integrantes das delegações do Governo e das FARC-EP, os quais se prepararam para receber os visitantes. A sessão foi confidencial e se estendeu até às 15 horas. No meio da jornada, os assistentes destinaram tempo para compartilhar um almoço-bufê num ambiente de total distensão.
O encontro da delegação de vítimas do conflito com os meios de comunicação em Havana
As flores significam memória, as flores significam esperança em que este processo de Paz culmine”, disse uma das participantes ao lhe perguntarem por que o recinto estava decorado com tantas flores.
Meios internacionais como Al-Jazira, a Agência Reuters e TeleSUL, entre outros, ademais dos meios nacionais como Caracol, o portal Las 2 Orillas e a equipe de imprensa das FARC-EP se fizeram presentes no lugar que se adequou para a rodada de imprensa convocada pelos organizadores para que as vítimas fossem ouvidas publicamente.
A rodada de imprensa iniciou às 18:00 e teve lugar numa das salas do Salão de Protocolo.
A primeira intervenção foi feita pelo representante da Organização das Nações Unidas em Colômbia, Fabrizio Hochschild, com a apresentação de um comunicado redigido pelos organizadores do encontro, uma síntese arrojada da reunião fechada entre as partes com as vítimas.
Por sua parte, as vítimas iniciaram sua intervenção com um comunicado, o qual foi elaborado depois do encontro com as delegações das FARC-EP e do Governo colombiano, segundo contaram.
No comunicado lido a várias vozes, o primeiro grupo de vítimas do conflito considera como um gesto de reconhecimento em favor da Paz, da reconciliação e da garantia dos direitos das vítimas terem sido convidadas a participar no encontro.
De igual forma, apreciaram o esforço realizado por Nações Unidas, Centro de Pensamento e Seguimento ao Diálogo da Universidade Nacional, Conferência Episcopal Colombiana, pelos países garantidores Noruega e Cuba, e os países acompanhantes Chile e Venezuela, ao tempo em que ressaltaram a hospitalidade de Cuba como país anfitrião.
Por outro lado, deram fé de disporem de total liberdade no momento de expressar suas experiências, explicações e propostas; também deixaram claro que não pretendem representar o total das vítimas; porém garantiram, sim, “terem compartilhado o compromisso pela verdade como base da Paz”, disse uma delas.
A comissão de vítimas do conflito social e armado fez um reconhecimento às demais vítimas e as convidou a unir-se numa causa comum. Ao mesmo tempo, manifestaram sua decisão de continuar trabalhando arduamente para que todas sejam ouvidas; de igual maneira, demandaram o acompanhamento da sociedade em seu conjunto na reivindicação de seus direitos como vítimas e pela consecução da Paz.
Também exigiram das partes, dos meios de comunicação e dos demais estamentos da sociedade envolvidos na solução do conflito o respeito pela atividade que eles como vítimas vêm desenvolvendo; do mesmo modo, exigiram garantias de segurança “evitando tergiversações, infâmias e estigmatizações”.
A comissão de vítimas celebrou o ambiente de respeito e a apreciação de sua participação por parte das duas delegações, Governo e FARC.
Finalmente, disseram ficar à espera da materialização do compromisso expressado pelas partes no sentido de estabelecer um mecanismo de seguimento que dê respostas, ao mesmo tempo que faça efetiva a materialização das diferentes propostas e explicações apresentadas pelo grupo.
Rodada de intercâmbio com os meios de comunicação
Uma reflexão para os militares e o ministro de Defesa: “Umas forças armadas defensoras dos Direitos Humanos não necessitam foro militar, não têm nada que esconder. Estabelecer o foro militar é um reconhecimento de que são vitimários”, disse uma das vítimas do Estado.
Na sessão de intercâmbio entre a comissão de vítimas do conflito e os meios informativos, pudemos ver um grupo de pessoas conscientes da urgente necessidade de que a sociedade assimile melhor o momento histórico pelo qual atravessa o país e se envolva decididamente na construção da Paz com Justiça Social como único meio de reparar as injustiças geradoras da esteira de violência que tem golpeado a Colômbia durante décadas.
Pessoas respeitosas, propositivas e plenas de dignidade. Uma delas expressou: “[...] Viemos com propostas, não só com dor... viemos com anseios de verdade, de esclarecimento”. Deste modo, consideram fundamental a criação da Comissão Histórica do Conflito e suas Vítimas.
“Em virtude de que, infelizmente, a verdade tem sido uma das principais afetadas em Colômbia, não só como consequência do conflito como também pelo interesse de setores em particular da sociedade colombiana por tergiversar a origem, as causas e as consequências do mesmo, gerando um esquema de pensamento e de incompreensão funcional à reprodução da guerra em Colômbia”, pontualizou um dos participantes.
“Viemos propor uma Subcomissão da Verdade sobre os Desaparecimentos Forçados, que as partes nos digam onde estão as tumbas, as fossas clandestinas, que nos digam o que fizeram com eles e elas”, disse uma mulher com voz firme.
Todos coincidem em que a dor das vítimas é uma só, seja qual seja o ator, em que se estabeleça a verdade e a justiça real. Expressaram também que existe uma possibilidade, ainda não explorada, de compor um movimento único de vítimas como movimento social no país, o que demandaria a firma de um acordo de Paz em Colômbia, “uma democratização real que garanta a estes movimentos poder manifestar-se sem ser reprimidos”.
Da mesma maneira, insistem na unidade, já que “todas as mobilizações dos trabalhadores, dos campesinos, dos afros, em Colômbia estão repletas de vítimas... esta é uma muito boa oportunidade para que neste espaço se reconheça o papel de organizações e movimentos de vítimas que existem no país aos quais nós reconhecemos e representamos”.
Chegamos com medo, com angústia, com frustração, porém vimos esse grande afeto de parte deles em ouvir-nos, isso é um grande passo para conquistar a paz. É um primeiro passo na forma como eles se dirigiram para as vítimas”. “As vítimas somos o fundamento do processo de paz em Colômbia, as vítimas somos visíveis, temos voz, temos dignidade e fomos ouvidas de uma forma muito respeitosa. Vimos um ato esperançador”, manifestaram.
Fica claro que, ainda que as vítimas estão unidas pelo mesmo sentimento de dor, que coincidem em que seu único anseio não é só encontrar a verdade, mas também parar a violência em todas as suas manifestações, cada um tem pontos de vista diferentes quanto ao ressarcimento e a justiça que deve ser aplicada.
Este foi um certame histórico.


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