Por Jorge
Enrique Botero.
Poucos dias antes de concluir minha
mais recente visita a Havana, onde desfrutei de um peculiar mundial
de futebol em meio ao caribe beisibolístico, enquanto avançava em
um par de projetos editoriais, contatei Pablo Catatumbo para falar
sobre o tema que se avizinha na agenda acordada entre o governo e as
Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia): as vítimas do
conflito. O chefe guerrilheiro não evitou o tema e nos encontramos
para almoçar em um hotel da capital cubana, poucas horas antes da
Colômbia vencer o Uruguai na memorável partida que serviu para
James Rodríguez ficar na história das Copas do Mundo. Catatumbo
estava acompanhado de sua companheira, Camila Cienfuegos, e fui claro
e sincero, como todas as vezes em que falei com ele. No entanto, não
permitiu que eu ligasse o gravador e me ofereceu, em troca, que
responderia pela Internet o questionário que eu havia preparado. A
duas semanas do início do ciclo de conversas sobre as vítimas, em
Havana, entre as tormentas desatadas pelas últimas notícias da
guerra, as Farc colocam suas cartas sobre a mesa nessa matéria das
vítimas.
Em alguns dias o governo e as Farc
iniciarão a discussão do tema das "vítimas”. Como as
Farc-EP se prepararam para abordar esse ponto?
Pablo Catatumbo
– Desde a etapa exploratória das conversações, estamos nos
preparando para esse ponto. Foi muito importante a consulta com
especialistas, o recolhimento das propostas e ideias provenientes das
organizações sociais e de vítimas, e o intercâmbio de
experiências com outros processos de paz.
Cremos que contamos com as
ferramentas indispensáveis, necessárias e pertinentes para a
abordagem do tema, para o qual é necessário sermos objetivos e
levarmos em conta que, segundo estatísticas das Nações Unidas,
mais de 80% das vitimizações são de responsabilidade do Estado e
seus paramilitares.
Segundo o acordo geral para o fim
do conflito, "ressarcir as vítimas está no centro do acordo”.
O que você entende por "ressarcir”?
PC -
Ressarcir é superar as causas geradoras do conflito, do qual deriva
a vitimização. O ressarcimento parte de que o Estado e a sociedade
em seu conjunto assumam como próprios o tema da paz e a
reconciliação, a partir da compreensão da existência do conflito
e que seja reparado o repudiável dano e dor causados às vítimas.
Isso implica seu reconhecimento e sua visibilização dentro da
consciência coletiva da nação. É um processo complexo, longo e
que representa desafios imensos para toda a Colômbia, para o qual
todos deveremos colocar nosso grão de areia.
Significa também que as vítimas
tenham plena segurança de que, no novo país, serão concretizadas
mudanças estruturais de ordem econômica, política e social, que
garantam a não repetição. Essa é, podemos dizer, a única
garantia que as vítimas têm de que fatos como os que sofreram não
voltarão a acontecer. Nesse sentido é que dizemos que o acordo
final deve significar um nunca mais.
Para isso é preciso partir do
pressuposto, como é lógico, de que as vítimas conheçam a origem
real, concreta e as dinâmicas das situações nas quais foram
violentados seus direitos.
Por que as Farc insistiram tanto
na formação de uma comissão para o esclarecimento da verdade e das
origens e causas da guerra?
PC - Isto
se conecta, diretamente, com o último ponto que eu assinalava na
resposta anterior: não é possível a reconciliação sem o
conhecimento da origem e das causas da guerra, uma guerra que
iniciada décadas antes da formação das atuais organizações
guerrilheiras, as Farc-EP e o ELN [Exército de Libertação
Nacional]. Definitivamente, não se pode falar de milhões de vítimas
como se estas houvessem surgido do nada, houvessem sido produzidas
por geração espontânea ou devido a condutas individuais perversas.
Nós insistimos que o Estado, o bipartidarismo tradicional, os
grêmios e a classe política dirigente e dominante, em geral, têm
uma enorme responsabilidade em todo o acontecido. Aqui, o que existe
são algumas origens históricas e concretas do conflito social e
armado, que tem alguns responsáveis fundamentais dentro dos partidos
políticos e da institucionalidade. Isso é algo sobre o qual não se
deve se esquivar e precisa ficar perfeitamente esclarecido, se é que
se trata da verdade.
Qual será o papel de tal
comissão, como será formada?
PC – No
último dia 07 de junho, as partes acordaram a formação da
"comissão histórica do conflito”. Nossa proposta é que seja
formada por acadêmicos e especialistas escolhidos pelas partes em
igualdade de condições. A respeito do seu funcionamento, considero
que não devo adiantar-me aos consensos que estamos construindo com a
contraparte e, oportunamente, será informado.
Sem desconhecer que o Estado
colombiano e os paramilitares são responsáveis por uma grande
percentagem das ações crueis e desumanas que degradaram o conflito,
as Farc reconhecem ter causado graves danos e sofrimentos a civis no
marco da guerra?
PC - A
insurgência não é a assassina do conflito colombiano, como tentam
fazer crer alguns setores e agentes institucionais à sociedade
colombiana, desconhecendo a realidade que mostram as estatísticas
sobre vítimas. Nunca tivemos uma estratégia de ataque contra a
população civil, ao contrário, surgimos como organizações
guerrilheiras justamente para defender o campesinato e outros setores
populares colombianos que vinham sendo massacrados pelo
estabelecimento desde tempos imemoriais. Possivelmente, no contexto e
no desenvolvimento da guerra, podem ter acontecido fatos que afetaram
civis, que não tinham a ver diretamente com o confronto. São fatos
lamentáveis, mas são calculados, e como revolucionários, realmente
lamentamos. Exatamente, sobre o tratamento e esclarecimento de toda
essa problemática é que nos ocuparemos no seguinte ponto das
"vítimas”, que vai ser discutido na mesa de Havana.
Falemos de casos concretos: os
deputados do Vale e os mortos de Bojayá, por exemplo. O que você
diria sobre termos à frente os familiares dos deputados?
PC
- Estamos dispostos a falar com todas essas pessoas para
esclarecermos os fatos e manifestarmos nosso pesar por qualquer
aflição que possamos ter provocado. Lamentamos, sentimos,
compartilhamos sua dor e sabemos que poderemos contar com elas para a
reconstrução da pátria. Midiaticamente, buscou-se reavivar ódios
e fomentar um cenário ambientado em infinitas cadeias de vingança
pessoal, mas sabemos, perfeitamente, que essa não é a posição das
vítimas e que quem instiga essas condutas são aqueles que querem
que a guerra seja perpetuada, ou os manipuladores e os que traficam
com a dor das vítimas. Também, midiaticamente, se oculta o
sofrimento, o dano e toda a dor que se infringe e infringiu às
famílias e agregados, de quem temos abraçado a causa revolucionária
em todas as ordens, os que não pensam igual a nós e os que defendem
o regime político imperante.
Vocês
aceitam que a prática do sequestro constituiu uma violação aos
direitos humanos?
PC
– Para falar com toda objetividade e franqueza, esse que é um tema
tão doloroso, sensível e manipulado, tem que ser analisado no marco
de toda a complexidade que cerca o conflito social e armado, sem
passar por cima do grave fenômeno do desaparecimento forçado, que é
uma prática sistemática, a qual o Estado não renunciou. Em certo
tempo, nós praticamos três tipos de retenções que, usualmente,
querem unificar sob a etiqueta do sequestro.
A
primeira é a captura no combate de unidades militares inimigas. Essa
é uma ação plenamente válida sob o direito da guerra e
reconhecida nos convênios internacionais, pois os capturados estavam
armados, uniformizados e devidamente identificados como unidades
inimigas, e foram capturados em combate e no marco de uma
confrontação reconhecida pelo Estado. Qualificá-los de
"sequestrados” ou "vítimas” não é mais que um
artifício, pois se trata de combatentes inimigos que foram feitos
prisioneiros de guerra.
Nessas
condições, a liberdade dos prisioneiros de guerra estava sujeita ao
que acordassem as partes em conflito no marco de um acordo
humanitário, e o governo não mostrou nenhuma vontade para fazê-lo.
Recordemos que, nas prisões da Colômbia, há centenas dos nossos,
que se não nos atentarmos à linguagem que pretende a "vitimologia”
do Estado, também seriam "sequestrados”.
Realizamos,
exclusivamente, para financiar nossa rebelião, frente a um Estado
injusto e criminoso, e sempre com fundamento na juridicidade
insurgente. Essa prática, em seu momento, esteve motivada pela
própria guerra e foi praticada por quase todos os exércitos
insurgentes em conflitos de diversos países, dada a assimetria
imposta pela realidade, de praticar uma guerra de guerrilhas como
expressão de uma rebelião que, por sua própria natureza, atua na
ilegalidade e que necessita de recursos para seu financiamento.
Atuamos amparados sob a Lei 002 do nascente Estado insurgente, mas
que, agora, no caminho da paz e como um gesto efetivo de
reconciliação modificamos para evitar esse tipo de privação de
liberdade.
A
terceira é retenção de personalidades e dirigentes do Estado que
combatemos, com motivações, eminentemente políticas, não
financeiras. Trata-se de uma ação válida desde a concepção
insurgente e submetida a uma troca humanitária de presos políticos
em poder da contraparte, em muitas ocasiões arbitrariamente detidos.
Como se vê, nesse assunto, há também uma responsabilidade do
Estado, por vitimizar, sistematicamente, os setores populares e por
negar-se a negociar acordos humanitários e não só responsabilidade
nossa, que agíamos nos baseando em nossa autonomia, juridicidade e
legitimidade rebelde.
Reitero
que, no marco do início dos presentes diálogos, aportamos como
gesto unilateral de boa vontade, suspender toda ação de retenção
originada em motivações financeiras. Cumprimos, cabalmente, coisa
que os grandes meios e o governo ocultam permanentemente, enquanto
que o Estado seguiu adiante com suas práticas sistemáticas de
detenção arbitrária por motivos políticos de dirigentes sociais,
campesinos e lutadores populares.
As
Farc pediram perdão às vítimas? Que papel vocês atribuem ao
perdão no tratamento desse tema?
PC
- Foram as Farc-EP que, desde o primeiro momento, disseram que os
direitos das vítimas são inegociáveis e que não viemos à Havana
para negociar impunidades.
Essa não
é uma tese do governo, é um princípio nosso. Esse é um tema em
que buscamos consenso com a contraparte e com as vítimas e suas
organizações. Temos insistido que é necessária a reconstrução
da verdade, de toda a verdade acerca da origem, causas, responsáveis
e das dinâmicas do conflito. Estamos na construção de algo apegado
às condições particulares de um conflito como o nosso. É pública
nossa proposta do "Dia Nacional de Contrição”, em que
insistimos que haja, por parte de todos os implicados, un
reconhecimento das responsabilidades, mas levando em conta que aqui
não podemos estabelecer uma espécie de equidistância porque a
geração da guerra e mais de 85% da victimização estão na conta
do Estado e do bloco de poder dominante. Isso não pode ser ignorado,
nem deixado de lado. Para esse apontamos e, seguramente, com o
desenvolvimento da discussão do ponto das "Vítimas”
avançaremos, consideravelmente, para o bem de todos.
E sobre o
perdão, que é um assunto da consciência íntima, o que queremos é
tirá-lo da manipulação midiática, para que não se converta em um
teatro de hipócritas aparências.
São bem
vindas todas as propostas e opiniões que os cidadãos desejem fazer
a respeito, sabemos muito bem que é um tema que desperta interesse
em toda a população.
Se
chegarem a conseguir um acordo de paz, em que reside a garantia de
não repetição?
PC
– Em uma sociedade desmilitarizada, no fim do paramilitarismo, em
alcançar plenas garantias para o exercício político da oposição
e na abertura para uma democracia verdadeira e includente, pela via
de uma Assembleia Nacional Constituinte. Do contrário, resulta
impossível que expressões armadas do conflito social deixem de se
apresentar.
Quais
são, em seu modo de ver, os mecanismos que deverão ser colocados em
marcha para fechar as profundas feridas deixadas por mais de seis
décadas de confronto?
PC
– A reconciliação não se constrói de um dia para o outro, não
é algo que se possa conseguir por decreto. O indicado é uma
construção coletiva, da qual participem todos os setores que formam
o país real, onde se escute todas as vozes e onde possamos ter a
segurança de que a guerra não pode ser o horizonte de um país com
tantas possibilidades, tanto potencial, recursos e possibilidades
como o nosso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário