segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Comandante Pablo Catatumbo: “Não viemos a Havana para negociar impunidades”

Por Jorge Enrique Botero.

Poucos dias antes de concluir minha mais recente visita a Havana, onde desfrutei de um peculiar mundial de futebol em meio ao caribe beisibolístico, enquanto avançava em um par de projetos editoriais, contatei Pablo Catatumbo para falar sobre o tema que se avizinha na agenda acordada entre o governo e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia): as vítimas do conflito. O chefe guerrilheiro não evitou o tema e nos encontramos para almoçar em um hotel da capital cubana, poucas horas antes da Colômbia vencer o Uruguai na memorável partida que serviu para James Rodríguez ficar na história das Copas do Mundo. Catatumbo estava acompanhado de sua companheira, Camila Cienfuegos, e fui claro e sincero, como todas as vezes em que falei com ele. No entanto, não permitiu que eu ligasse o gravador e me ofereceu, em troca, que responderia pela Internet o questionário que eu havia preparado. A duas semanas do início do ciclo de conversas sobre as vítimas, em Havana, entre as tormentas desatadas pelas últimas notícias da guerra, as Farc colocam suas cartas sobre a mesa nessa matéria das vítimas.

Em alguns dias o governo e as Farc iniciarão a discussão do tema das "vítimas”. Como as Farc-EP se prepararam para abordar esse ponto?
Pablo Catatumbo – Desde a etapa exploratória das conversações, estamos nos preparando para esse ponto. Foi muito importante a consulta com especialistas, o recolhimento das propostas e ideias provenientes das organizações sociais e de vítimas, e o intercâmbio de experiências com outros processos de paz.
Cremos que contamos com as ferramentas indispensáveis, necessárias e pertinentes para a abordagem do tema, para o qual é necessário sermos objetivos e levarmos em conta que, segundo estatísticas das Nações Unidas, mais de 80% das vitimizações são de responsabilidade do Estado e seus paramilitares.

Segundo o acordo geral para o fim do conflito, "ressarcir as vítimas está no centro do acordo”. O que você entende por "ressarcir”?
PC - Ressarcir é superar as causas geradoras do conflito, do qual deriva a vitimização. O ressarcimento parte de que o Estado e a sociedade em seu conjunto assumam como próprios o tema da paz e a reconciliação, a partir da compreensão da existência do conflito e que seja reparado o repudiável dano e dor causados às vítimas. Isso implica seu reconhecimento e sua visibilização dentro da consciência coletiva da nação. É um processo complexo, longo e que representa desafios imensos para toda a Colômbia, para o qual todos deveremos colocar nosso grão de areia.
Significa também que as vítimas tenham plena segurança de que, no novo país, serão concretizadas mudanças estruturais de ordem econômica, política e social, que garantam a não repetição. Essa é, podemos dizer, a única garantia que as vítimas têm de que fatos como os que sofreram não voltarão a acontecer. Nesse sentido é que dizemos que o acordo final deve significar um nunca mais.
Para isso é preciso partir do pressuposto, como é lógico, de que as vítimas conheçam a origem real, concreta e as dinâmicas das situações nas quais foram violentados seus direitos.

Por que as Farc insistiram tanto na formação de uma comissão para o esclarecimento da verdade e das origens e causas da guerra?
PC - Isto se conecta, diretamente, com o último ponto que eu assinalava na resposta anterior: não é possível a reconciliação sem o conhecimento da origem e das causas da guerra, uma guerra que iniciada décadas antes da formação das atuais organizações guerrilheiras, as Farc-EP e o ELN [Exército de Libertação Nacional]. Definitivamente, não se pode falar de milhões de vítimas como se estas houvessem surgido do nada, houvessem sido produzidas por geração espontânea ou devido a condutas individuais perversas. Nós insistimos que o Estado, o bipartidarismo tradicional, os grêmios e a classe política dirigente e dominante, em geral, têm uma enorme responsabilidade em todo o acontecido. Aqui, o que existe são algumas origens históricas e concretas do conflito social e armado, que tem alguns responsáveis fundamentais dentro dos partidos políticos e da institucionalidade. Isso é algo sobre o qual não se deve se esquivar e precisa ficar perfeitamente esclarecido, se é que se trata da verdade.

Qual será o papel de tal comissão, como será formada?
PC – No último dia 07 de junho, as partes acordaram a formação da "comissão histórica do conflito”. Nossa proposta é que seja formada por acadêmicos e especialistas escolhidos pelas partes em igualdade de condições. A respeito do seu funcionamento, considero que não devo adiantar-me aos consensos que estamos construindo com a contraparte e, oportunamente, será informado.

Sem desconhecer que o Estado colombiano e os paramilitares são responsáveis por uma grande percentagem das ações crueis e desumanas que degradaram o conflito, as Farc reconhecem ter causado graves danos e sofrimentos a civis no marco da guerra?
PC - A insurgência não é a assassina do conflito colombiano, como tentam fazer crer alguns setores e agentes institucionais à sociedade colombiana, desconhecendo a realidade que mostram as estatísticas sobre vítimas. Nunca tivemos uma estratégia de ataque contra a população civil, ao contrário, surgimos como organizações guerrilheiras justamente para defender o campesinato e outros setores populares colombianos que vinham sendo massacrados pelo estabelecimento desde tempos imemoriais. Possivelmente, no contexto e no desenvolvimento da guerra, podem ter acontecido fatos que afetaram civis, que não tinham a ver diretamente com o confronto. São fatos lamentáveis, mas são calculados, e como revolucionários, realmente lamentamos. Exatamente, sobre o tratamento e esclarecimento de toda essa problemática é que nos ocuparemos no seguinte ponto das "vítimas”, que vai ser discutido na mesa de Havana.

Falemos de casos concretos: os deputados do Vale e os mortos de Bojayá, por exemplo. O que você diria sobre termos à frente os familiares dos deputados?
PC - Estamos dispostos a falar com todas essas pessoas para esclarecermos os fatos e manifestarmos nosso pesar por qualquer aflição que possamos ter provocado. Lamentamos, sentimos, compartilhamos sua dor e sabemos que poderemos contar com elas para a reconstrução da pátria. Midiaticamente, buscou-se reavivar ódios e fomentar um cenário ambientado em infinitas cadeias de vingança pessoal, mas sabemos, perfeitamente, que essa não é a posição das vítimas e que quem instiga essas condutas são aqueles que querem que a guerra seja perpetuada, ou os manipuladores e os que traficam com a dor das vítimas. Também, midiaticamente, se oculta o sofrimento, o dano e toda a dor que se infringe e infringiu às famílias e agregados, de quem temos abraçado a causa revolucionária em todas as ordens, os que não pensam igual a nós e os que defendem o regime político imperante.

Vocês aceitam que a prática do sequestro constituiu uma violação aos direitos humanos?
PC – Para falar com toda objetividade e franqueza, esse que é um tema tão doloroso, sensível e manipulado, tem que ser analisado no marco de toda a complexidade que cerca o conflito social e armado, sem passar por cima do grave fenômeno do desaparecimento forçado, que é uma prática sistemática, a qual o Estado não renunciou. Em certo tempo, nós praticamos três tipos de retenções que, usualmente, querem unificar sob a etiqueta do sequestro.
A primeira é a captura no combate de unidades militares inimigas. Essa é uma ação plenamente válida sob o direito da guerra e reconhecida nos convênios internacionais, pois os capturados estavam armados, uniformizados e devidamente identificados como unidades inimigas, e foram capturados em combate e no marco de uma confrontação reconhecida pelo Estado. Qualificá-los de "sequestrados” ou "vítimas” não é mais que um artifício, pois se trata de combatentes inimigos que foram feitos prisioneiros de guerra.
Nessas condições, a liberdade dos prisioneiros de guerra estava sujeita ao que acordassem as partes em conflito no marco de um acordo humanitário, e o governo não mostrou nenhuma vontade para fazê-lo. Recordemos que, nas prisões da Colômbia, há centenas dos nossos, que se não nos atentarmos à linguagem que pretende a "vitimologia” do Estado, também seriam "sequestrados”.
Realizamos, exclusivamente, para financiar nossa rebelião, frente a um Estado injusto e criminoso, e sempre com fundamento na juridicidade insurgente. Essa prática, em seu momento, esteve motivada pela própria guerra e foi praticada por quase todos os exércitos insurgentes em conflitos de diversos países, dada a assimetria imposta pela realidade, de praticar uma guerra de guerrilhas como expressão de uma rebelião que, por sua própria natureza, atua na ilegalidade e que necessita de recursos para seu financiamento. Atuamos amparados sob a Lei 002 do nascente Estado insurgente, mas que, agora, no caminho da paz e como um gesto efetivo de reconciliação modificamos para evitar esse tipo de privação de liberdade.
A terceira é retenção de personalidades e dirigentes do Estado que combatemos, com motivações, eminentemente políticas, não financeiras. Trata-se de uma ação válida desde a concepção insurgente e submetida a uma troca humanitária de presos políticos em poder da contraparte, em muitas ocasiões arbitrariamente detidos. Como se vê, nesse assunto, há também uma responsabilidade do Estado, por vitimizar, sistematicamente, os setores populares e por negar-se a negociar acordos humanitários e não só responsabilidade nossa, que agíamos nos baseando em nossa autonomia, juridicidade e legitimidade rebelde.
Reitero que, no marco do início dos presentes diálogos, aportamos como gesto unilateral de boa vontade, suspender toda ação de retenção originada em motivações financeiras. Cumprimos, cabalmente, coisa que os grandes meios e o governo ocultam permanentemente, enquanto que o Estado seguiu adiante com suas práticas sistemáticas de detenção arbitrária por motivos políticos de dirigentes sociais, campesinos e lutadores populares.

As Farc pediram perdão às vítimas? Que papel vocês atribuem ao perdão no tratamento desse tema?
PC - Foram as Farc-EP que, desde o primeiro momento, disseram que os direitos das vítimas são inegociáveis e que não viemos à Havana para negociar impunidades.
Essa não é uma tese do governo, é um princípio nosso. Esse é um tema em que buscamos consenso com a contraparte e com as vítimas e suas organizações. Temos insistido que é necessária a reconstrução da verdade, de toda a verdade acerca da origem, causas, responsáveis e das dinâmicas do conflito. Estamos na construção de algo apegado às condições particulares de um conflito como o nosso. É pública nossa proposta do "Dia Nacional de Contrição”, em que insistimos que haja, por parte de todos os implicados, un reconhecimento das responsabilidades, mas levando em conta que aqui não podemos estabelecer uma espécie de equidistância porque a geração da guerra e mais de 85% da victimização estão na conta do Estado e do bloco de poder dominante. Isso não pode ser ignorado, nem deixado de lado. Para esse apontamos e, seguramente, com o desenvolvimento da discussão do ponto das "Vítimas” avançaremos, consideravelmente, para o bem de todos.
E sobre o perdão, que é um assunto da consciência íntima, o que queremos é tirá-lo da manipulação midiática, para que não se converta em um teatro de hipócritas aparências.
São bem vindas todas as propostas e opiniões que os cidadãos desejem fazer a respeito, sabemos muito bem que é um tema que desperta interesse em toda a população.

Se chegarem a conseguir um acordo de paz, em que reside a garantia de não repetição?
PC – Em uma sociedade desmilitarizada, no fim do paramilitarismo, em alcançar plenas garantias para o exercício político da oposição e na abertura para uma democracia verdadeira e includente, pela via de uma Assembleia Nacional Constituinte. Do contrário, resulta impossível que expressões armadas do conflito social deixem de se apresentar.

Quais são, em seu modo de ver, os mecanismos que deverão ser colocados em marcha para fechar as profundas feridas deixadas por mais de seis décadas de confronto?
PC – A reconciliação não se constrói de um dia para o outro, não é algo que se possa conseguir por decreto. O indicado é uma construção coletiva, da qual participem todos os setores que formam o país real, onde se escute todas as vozes e onde possamos ter a segurança de que a guerra não pode ser o horizonte de um país com tantas possibilidades, tanto potencial, recursos e possibilidades como o nosso.

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