Por Marcelo Zero, especial para o 247
Quando o economista do Goldman Sachs, Jim O´Neill,
cunhou, em 2001, o acrônimo BRIC, referindo-se aos megapaíses
emergentes Brasil, Rússia, Índia e China, o termo não passava de
uma expressão vazia, um mero exercício intelectual que pretendia
denotar a crescente importância desses países para os investidores
das nações mais desenvolvidas e seu potencial de gerar bons
negócios para as firmas das grandes nações industrializadas. Os
BRICs eram apenas uma nova fronteira de investimentos que se abria,
no quadro de uma geoeconomia rigorosamente dominada pelos mesmos
players de sempre.
Mal sabia ele que, 14 anos depois, em Ufá, Rússia,
os BRICs, agora transformados em BRICS, com a adição da África do
Sul, já seriam um importantíssimo e atuante bloco, que vem
transformando a velha geoeconomia mundial e revolucionando a
arquitetura financeira internacional.
Com efeito, na recente cúpula realizada na cidade
fundada por Ivã, o Terrível, os BRICS fizeram algo que era
impensável há uma década. Eles concretizaram seu próprio banco de
investimentos, o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS (NDB), e seu
próprio Arranjo de Contingente de Reservas (CRA) para ajudar países
em dificuldades. Criados na Reunião de Fortaleza, eles agora passam
a operar. Os BRICS são, hoje, um bloco institucionalizado, que atua
com desembaraço sobre a ordem mundial.
Esses dois arranjos financeiros não surgiram por
acaso. Eles sugiram de uma necessidade: as velhas instituições
multilaterais surgidas no longínquo ano de 1944, em Bretton Woods, o
FMI e o Banco Mundial, já não conseguem lidar com os desafios
postos pela nova geoeconomia mundial. A UNCTAD, agência
especializada da ONU para o comércio e o desenvolvimento, estima que
os países em desenvolvimento precisariam de US$ 1 trilhão para
aprimorar a sua infraestrutura. FMI e Banco mundial são incapazes de
responder a esse desafio.
Afinal, trata-se de instituições esclerosadas, cuja
governança não incorpora os interesses e os anseios dos novos
atores globais. Elas continuam nas velhas mãos das antigas
potências, agora fortemente atingidas pela crise mundial. Para se
ter uma ideia, a China, segunda economia mundial, tem menos votos no
FMI que o Benelux ( Bélgica, Holanda e Luxemburgo). Além disso, são
organismos dominados por obsoletas ideias paleoliberais, e exigem
condicionalidades draconianas para fazer empréstimos.
A tentativa de abrir mais espaço para os países
emergentes nessas instituições multilaterais esbarrou no Congresso
dos EUA, o qual até hoje não aprovou a modificação nas cotas e no
sistema de votação do FMI e do Banco Mundial. Os EUA e a Europa
continuam a ser seus mandantes privilegiados.
É uma situação absurda. Afinal, os BRICS têm 42%
da população mundial e 26% do território do planeta. São
responsáveis por 23% da economia mundial e 15% do comércio
internacional. Não bastasse, eles detêm 75% das reservas monetárias
internacionais. Além disso, os BRICS foram responsáveis por 36% do
crescimento da economia mundial, na primeira década deste século.
Com a recessão nos países mais desenvolvidos, esse número pulou
para cerca de 50%, mesmo com a desaceleração recente do crescimento
desse bloco.
Em outras palavras, a importância dos BRICS não é
só avassaladora, como vem crescendo ano a ano, mesmo com a crise
tendo se abatido recentemente sobre seus membros.
Enganam-se, contudo, aqueles que consideram os BRICS
somente uma associação de caráter econômico. Na realidade, com a
nova geoeconomia, na qual os BRICS são grandes atores em ascensão,
cria-se também, inexoravelmente, uma nova geopolítica e uma nova
geoestratégia.
É aí que a coisa se complica e surgem as
resistências e as críticas ao bloco.
Por trás da nova geoeconomia, há uma surda luta
geopolítica e geoestratégica.
A China está passando por um processo de transição
econômica que inclui uma calculada desaceleração. A economia
chinesa, baseada em investimentos volumosos e em exportações de
manufaturados, tem atualmente excesso de capacidade instalada em
muitos segmentos econômicos (construção civil, energia, etc.) e
precisa refazer a sua estratégia econômica, face à desaceleração
do comércio mundial.
Nesse sentido, a China vem fazendo um duplo
movimento. Primeiro, aumentar o consumo doméstico, de modo a
compensar o baixo dinamismo do comercio mundial.
Segundo, e mais importante, reduzir a sua dependência
em relação ao dólar e sua exposição às crises norte-americanas,
face às suas gigantescas reservas nessa moeda, diminuindo a
hegemonia do dólar norte-americano como grande meio de troca mundial
e como reserva internacional de valor.
A criação do NDB e do CRA e a expansão do banco da
China, bem como os maciços investimentos desse país no exterior são
parte de um processo que troca investimentos em títulos do tesouro
americano (reservas) por investimentos em infraestrutura em países
em desenvolvimento. Com isso, a China não apenas assegura o afluxo
de commodities e influência geopolítica, como prepara as condições
para que o renmimbi seja uma moeda mundial, competindo com o dólar.
Outra disputa surda, mas intensa, que envolve o BRICS
tange ao domínio da Eurásia.
Em 1997, Zbigniew Brzezinski, scholar
extremamente influente, que fora assessor presidencial para assuntos
de segurança nacional no período de 1977 a 1981, publicou, na
Foreign Affairs, um
artigo intitulado Uma Geoestratégia para a
Eurásia, que já antecipava algumas teses
de seu livro O Grande Tabuleiro de Xadrez.
Nesse artigo, ele argumenta, com razão, que a
Eurásia é o eixo geoestratégico do mundo, já que esse
supercontinente, além concentrar boa parte do território e dos
recursos naturais do planeta, conecta os dois grandes polos
econômicos do mundo além dos EUA, a União Europeia e o Leste da
Ásia. Para Brzezinski, é vital que os EUA tenham o controle desse
supercontinente, caso queiram permanecer como a única e inconteste
superpotência.
Pois bem, a geoestratégia concebida por Brzezinski
implicava várias ações de longo prazo concomitantes. Em primeiro
lugar, o fortalecimento da Europa unida, sob a liderança dos EUA.
Para tanto, Brzezinski já sugeria, inclusive, a celebração de um
tratado de livre comércio transatlântico, como o anunciado
recentemente. Em segundo, o fortalecimento das novas nações
independentes da Ásia Central e do Leste Europeu, que surgiram após
o colapso da União Soviética, e a consequente expansão da OTAN até
a Ucrânia. Em terceiro lugar, e mais importante, a geoestratégia de
Brzezinski previa o enfraquecimento da Rússia e o enquadramento de
sua política externa nos imperativos geopolíticos dos EUA e seus
aliados.
Essa geoestratégia colidiu, obviamente, com o
fortalecimento da Rússia sob Putin e a formação do BRICS. A crise
da Ucrânia nada mais é que a expressão visível e aguda desse
choque geoestratégico.
Para fazer frente a esses novos desafios, os EUA
reordenaram sua geoestratégia, que antes estava centrada na luta
contra o terrorismo e no Oriente Médio. A nova geoestratégia
norte-americana, explicitada em 2012 com o documento “Sustentando a
liderança global dos EUA:
Prioridades para a Defesa do Século 21”,
pretende se contrapor à crescente erosão de poder econômico e
geopolítico dos EUA e aliados europeus e realizar movimentos de
contenção da ascensão de países emergentes, notadamente os
reunidos no BRICS.
Fazem parte dessa contraofensiva a TPP, a
Trasn-Pacific Partnership,
que inclui países asiáticos próximos à China, mas que exclui
Beijing, e a Transatlantic Trade and
Investment Partnership (TTIP), que
pretende reforçar os laços econômicos entre os EUA e a União
Europeia.
Essa contraofensiva também implica o abandono
parcial da política unilateralista de confrontação no Oriente
Médio, que não funciona e consome volumosos recursos militares e
estratégicos. Os investimentos no shale oil,
mesmo com todos os problemas ambientais que geram, se inserem nessa
tentativa de diminuir a importância do Oriente Médio, na nova
geoestratégia norte-americana.
E o Brasil, como se insere, nesse tabuleiro
geoestratégico?
Em primeiro lugar, é preciso considerar que o Brasil
também é alvo da contraofensiva norte-americana.
A recente distensão das relações entre os EUA e
Cuba, por exemplo, faz parte de um movimento de reaproximação da
única superpotência do planeta à América Latina e ao Brasil. O
conflito com Cuba sempre significou um entrave desnecessário e
obsoleto para uma relação mais fluida com os EUA. A eliminação
desse entrave, do ponto de vista dos EUA, ajuda a abrir caminhos para
uma retomada de sua histórica influência na região.
A Aliança do Pacífico, um factoide do ponto de
vista econômico e comercial, representa, na realidade, uma ofensiva
geopolítica direcionada contra a integração regional, sob o
disfarce de um regionalismo aberto voltado à integração
assimétrica com os EUA e outras potências tradicionais. O alvo é o
Mercosul e sua união aduaneira.
A contraofensiva geoestratégica dos EUA passa, na
América Latina, pela tentativa de desarticulação da integração
regional liderada pelo Brasil e pela limitação da influência da
China e da Rússia na região.
Entretanto, essa contraofensiva não é
necessariamente ruim para o país. Ao contrário, o Brasil pode se
aproveitar dessas disputas para se projetar ainda mais no cenário
mundial.
Essa possibilidade esbarra, contudo, na total
cegueira estratégica das nossas elites.
Com o arrefecimento (não o fim) do ciclo das
commodities e a crise que agora também afeta países emergentes e em
desenvolvimento, ressurgiu com plena força o mito de que a recente
política externa brasileira é equivocada e precisa se reorientar em
direção ao seu “leito natural”, isto é, os EUA e demais
potências tradicionais. Critica-se o Mercosul, a integração
regional, a cooperação Sul-Sul, a parceria com os países
emergentes e, é claro, também os BRICS, grande foro que o
Brasil utiliza para se consolidar como liderança mundial.
Para os que padecem dessa irremediável cegueira
estratégica, o Brasil deve renunciar ao Mercosul e sua união
aduaneira, à cooperação Sul-Sul e a um BRICS politicamente mais
atuante e investir em acordos de livre comércio com os EUA e a União
Europeia, de modo a se inserir celeremente nas cadeias internacionais
de produção. Com a crise e a baixa das commodities, que demanda
esforços para se aumentar as exportações, principalmente as
exportações de manufaturados, em razão da óbvia contração da
demanda interna acarretada pelo ajuste, essas teses ganharam
contornos preocupantes de urgência.
Ora, isso seria um erro gravíssimo. A integração
regional absorve mais produtos manufaturados brasileiros que todos os
países desenvolvidos somados. A competitividade dos nossos produtos
manufaturados em nosso entorno regional está relacionada justamente
à união aduaneira. Sem ela, nossos produtos não poderiam competir
com bens chineses, norte-americanos, europeus, etc. O mesmo ocorre
com os outros vetores da nossa política externa, como a cooperação
Sul-Sul e as parcerias estratégicas com países emergentes. Foram
esses vetores que nos permitiram expandir nossa participação no
comércio mundial, de 0,88%, em 2000, para 1,43%, em 2011, e elevaram
substancialmente o protagonismo internacional do Brasil.
É claro que o Brasil, em sua condição de global
player, tem de se aproximar mais dos EUA, da
União Europeia e qualquer país ou bloco que queria, nesse momento
de baixo crescimento do comércio mundial, estreitar seus laços de
cooperação conosco. Mas o país tem de fazer isso a partir da
posição de relevo e de alto protagonismo que conquistou justamente
com esses vetores da política externa ativa e altiva, que nos livrou
da antiga dependência e fragilidade dos tempos paleoliberais. Como
membro do Mercosul e do BRICS, o Brasil pode muito mais.
A celebração açodada de acordos de livre comércio
assimétricos com potências tradicionais, somada a uma
desarticulação da integração regional e a um baixo investimento
no BRICS e nas demais parcerias estratégicas com países emergentes,
acabaria transformando o Brasil num grande México, o país da
América Latina, que nos últimos 12 anos, apresentou o menor
crescimento do PIB per capita na América Latina, à exceção da
Guatemala. O país que tem 51% da sua população abaixo da linha da
pobreza.
Na recente viagem de Dilma aos EUA, Obama declarou,
em alto e bom som, que seu país considera o Brasil não somente uma
potência regional, mas também uma potência mundial.
Não foi mera
retórica diplomática. Foi constatação da verdade.
Contudo, o Brasil só adquiriu esse status perante os
EUA e os demais países do mundo porque fez aposta geoestratégica
correta de investir na integração regional, na cooperação Sul-Sul
e nas parcerias com os demais BRICS. O Brasil se converteu em grande
ator mundial porque, em essência, investiu em seus próprios
interesses.
O grande risco do Brasil no atual cenário mundial
não vem, portanto, do arrefecimento do ciclo das commodities e da
crise internacional, que afeta todo o mundo. Na realidade, o grande
risco do país provém de sua situação política interna e da
cegueira estratégica de uma elite neocolonial que aposta obtusamente
na volta a um passado de dependência e fragilidade.
O centro da política externa brasileira tem de
continuar a ser a integração regional a cooperação Sul-Sul e as
parcerias estratégicas com emergentes, particularmente com o BRICS,
que se tornou, de fato, um novo polo político que contribui para o
multilateralismo e uma ordem mundial menos assimétrica. É isso que
nos cacifa para termos uma relação mais proveitosa com os EUA. É
isso que nos faz potência.
Entretanto, se os interesses retrógados internos
preponderarem, talvez na próxima viagem aos EUA o Brasil não seja
saudado nem como potência mundial, nem como potência regional.
Seremos, de novo, apenas o quintal.
* Marcelo Zero é sociólogo e
especialista em Relações Internacionais
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