quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Sem medo da “Caixa de Pandora”

Por: Julián Subverso, integrante da Delegação de Paz das FARC-EP.
Antes de 1945, a maioria do mundo ocidental se regia pela chamada democracia liberal, o império da lei. Esta democracia procedimental, que em seu momento se pensou perfeita, demonstrou suas grandes falências depois que os NAZIS na Alemanha ascenderam ao poder. O mundo da normatividade estatal se deu conta de que esse tipo de democracia, por mais que respeitasse a lei, também abria o caminho para que, quem quer que seja, seguindo lógicas procedimentais legais, pudesse monopolizar o poder, oprimir, perseguir e totalizar sem sair dos marcos estabelecidos pela dita democracia.
Hoje em dia, não é que tenha mudado muito os objetivos dos detentores do poder, porém, depois da segunda guerra mundial, se instituiu um sistema de democracia que impõe alguns princípios básicos de humanidade a seguir e que são a premissa das leis por cima das quais não se pode passar, isto é, não bastavam alguns meros mecanismos legais, fazia falta uma visão, umas premissas humanitárias e ideológicas que pusessem no centro do contrato social não a lei mas sim ao homem, a serviço do qual esta deve operar.
Estes princípios constitucionais de respeito à vida, aos direitos humanos, à paz e ao bem foram postos acima dos frios mecanismos procedimentais da lei e deram primazia à constituição; foi assim que começaram a se impor as chamadas democracias constitucionais, que em Colômbia, por exemplo, apenas vem operar a partir da década dos anos ’90. Claro está, tudo isto dos princípios constitucionais falado desde o puramente formal, pois a referida democracia em Colômbia já demonstrou seu ineficiente funcionamento, talvez por essa mesma concepção formal que se impôs acompanhada de seu próprio modelo econômico como ator de fato.
Alguns dias atrás, numa espécie de bate-papo com certo personagem bastante instruído no tema de políticas estatais e normatividade constitucional, pude confirmar essa visão formal, talvez por ignorância, talvez premeditadamente, sobre a referenda dos acordos de paz, a Assembleia Constituinte e sobretudo sua visão robótica, supondo que seja só isso, a política. O respeitado personagem se admirava do esquema político da Colômbia ao compará-lo com os demais países da região, evidenciando seu ponto de vista estritamente teórico sobre assuntos que a prática deve legitimar, e que em Colômbia, evidentemente, ditos conceitos se diluem no ácido da rotina.
Inclusive a alusão constante que alguns fazem ao jurista Luigi Ferrajoli, a propósito da entrevista que concedeu ao Espectador, onde obvia a referenda por parte do povo dos acordos alcançados em Havana, se bem que tem razão em seus argumentos desde o ponto de vista teórico, conceitual e inclusive humano a partir de uma ótica geral, em ordem a sanar feridas, a impulsar o acordo, a que o povo sinta que sua participação é verdadeira e em prol da reconciliação, isto é, desde o ponto de vista político e não só normativo, esta afirmação no contexto colombiano é insuficiente para consolidar um acordo de paz.
Relembro, ademais, que, durante a entrevista que RCN fez ao Comandante Pastor Alape, o jornalista perguntava ao camarada se as FARC iam desconhecer a vontade do povo se o plebiscito levado a cabo de forma unilateral, e portanto ilegítimo à luz do acordo geral de Havana, pelo governo colombiano fosse realizado,
Sem o ímpeto de reiterar que procedimentalmente, a partir do ponto de vista das normas e dos mecanismos inscritos na constituição colombiana, não é válido o mecanismo do plebiscito como meio de referenda, o qual refuta ao governo no campo que mais lhe agrada, quisera ressaltar certas coisas.
Numa conjuntura especial, histórica e tão importante como a que o país está atravessando, com a possibilidade de pôr fim a um conflito armado de mais de meio século e começar a construir a paz, as mentes daqueles envolvidos diretamente no esforço por alcançar o êxito na referida empreitada devem ser lúcidas e verdadeiramente políticas.
Digo verdadeiramente política, posto que as perspectivas e decisões não podem se subscrever estritamente a uma visão tecnocrática. Há de se levar em conta, evidentemente, porém, os assuntos humanos, e mais, na solução de um conflito destas dimensões, as simples regras, os procedimentos, a técnica ou a lógica puramente instrumental não são suficientes. É necessário, neste sentido, uma visão política que seja integral e de acordo com os nobres ideais de paz, vida e dignidade.
Esgrimir que iniciativas como o plebiscito são a expressão absoluta da vontade do povo, talvez a partir dessa visão rígida e limitada da regra e do procedimento seja certa; porém, desde a necessidade de alcançar coletivamente a paz e a transformação para uma Colômbia diferente com garantias de não repetição, o simples voto por um sim ou por um não com os limites propostos não é politicamente aceitável como a legítima vontade do povo nem menos ante uma decisão tão importante como esta, que por demais qualquer pessoa meio prudente com certeza votaria que sim, pois ninguém em sua sã consciência gostaria de estar afundado na guerra, a menos que esta lhe proporcionasse benefícios pessoais.
A palavra vontade leva implícita uma posição ativa e, se argumentamos que o que se trata é de fazer um pacto social e político de nunca mais, e sobretudo se dizemos que a paz é assunto de todos, não podemos mais que estabelecer a maior coerência com estas premissas e, consequentemente com o acordado na mesa, levar a cabo o único mecanismo que ante os olhos do povo o coloca como legitimador e participante real deste novo amanhecer do povo colombiano, a Assembleia Nacional Constituinte.
Não se trata sequer de romper as regras, ainda que não estaria mal, pois para começar algo diferente é necessário fazer algo diferente, senão de ter sentido político, humano e concreto da situação especial que agora nos implica.
Pretender começar um acordo político e social que sugere a uma participação social mais democrática e ativa do povo no quefazer nacional como o estipula o segundo acordo sobre participação política, mediante uma simples consulta, que, ademais, por sua natureza não é nem vinculante nem tem força normativa, é uma contravenção.
A que teme a classe dirigente?, se supostamente está comprometida com a paz, em acabar com as causas que desembocam no conflito armado, por que não dar aos acordos a segurança suficiente e ao povo a oportunidade de sentir-se verdadeiramente legítimo e partícipe deste pacto por meio de seu mais poderoso instrumento como constituinte primário?
Para eles, a constituinte é uma caixa de pandora que poderia trazer resultados adversos a sua política de exclusão e repressão, a qual, por sua vez, é representante do modelo econômico causador da guerra. Nós outros, como parte do povo, como parte dos excluídos, não tememos a sua vontade sempre que esta seja verdadeira, legítima, pois estamos seguros e confiantes na força irreprimível do povo pela paz.
Um acordo definitivo para a construção de uma paz estável e duradoura, no entendido de que a paz não a faz nem o governo nem as FARC-EP, e sim todo o povo em união e em seu conjunto, há de transcender os limitados mecanismos de participação expostos pelo governo e que só satisfazem um procedimento normativo, e terá que ser levado a cabo com o impulso genuíno de uma constituinte que só o soberano real pode exercer.




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