sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Eva Golinger: A Dupla Moral de Obama na América Latina

Por Eva Golinger
O anúncio foi uma grata surpresa para milhões de pessoas de todo o mundo que esperaram durante muito tempo por uma mudança importante na política dos Estados Unidos para a Cuba. Em transmissões simultâneas, os presidentes Raúl Castro e Barack Obama abriram passagem para acabar com a dolorosa política injustificada e bem antiquada de Washington que atormentou a ambas nações durante mais de meio século. Com suas palavras, o alívio chegou a muitos cubanos, em casa e no estrangeiro, latino-americanos em toda a região, e pessoas nos EUA, e no mundo, que aplaudiram o degelo declarado das relações entre Estados Unidos e Cuba. Depois de mais de 50 anos, os chefes de Estado de ambos países falaram pelo telefone e acordaram restabelecer relações diplomáticas. Estados Unidos abriria sua Embaixada em Havana, e Cuba faria o mesmo em Washington. Foi um grande avanço, para dizer o mínimo.
Foi Castro quem relembrou a seus compatriotas que, ainda que aplauda a decisão do presidente dos Estados Unidos para melhorar relações com Cuba, o bloqueio vicioso imposto contra seu país por parte de Washington continua existindo. Obama também foi cauteloso em mencionar que, ainda que haviam ações concretas que poderia tomar para a normalização das relações com Cuba, era o Congresso que tinha a única autoridade para pôr fim ao bloqueio. Instou o Congresso a dar esse passo, e enquanto isso soltou umas advertências condescendentes contra Castro no que diz respeito à democracia e aos direitos humanos.
Sem lugar a dúvidas, uma das vitórias mais importantes do acordo foi a libertação dos três cidadãos cubanos, Gerardo Hernández, Ramón Labañino e Antonio Guerrero, injustamente presos nos Estados Unidos há 16 anos por acusações de espionagem e outros delitos. Inclusive, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas tinha condenado o julgamento contra eles como arbitrário e injusto, seu devido processo e seus direitos fundamentais gravemente violados. Estes homens, finalmente, voltaram para casa com as boas-vindas de heróis, depois de um acordo que foi negociado entre os dois governos, que também viu o regresso de um sub intermediário da USAID condenado por acusações de subversão em Cuba, Alan Gross, e um cidadão cubano e ex-oficial de inteligência, Rolando Sarraff Trujillo, encarcerado por trabalhar como agente duplo para a Agência Central de Inteligência [CIA] dos Estados Unidos.
Não há dúvida de que este evento marca uma mudança profunda nas relações entre Estados Unidos e Cuba e nas relações dos Estados Unidos com a América Latina. E é uma grande vitória para a Revolução Cubana, Fidel e Raúl Castro e para o povo cubano. Durante os últimos quinze anos, Washington perdeu sua influência na América Latina e a região se deslocou significativamente para a esquerda com uma maioria de presidentes socialistas e novas organizações regionais que excluem Estados Unidos e Canadá. Com a União de Nações Sul-americanas [UNASUL], a Aliança Bolivariana para os Povos de Nuestra América [ALBA] e a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos [CELAC], a América Latina está mais integrada, soberana, independente e poderosa que nunca antes. A região forjou novas relações com China, Rússia, Irã e outros estados soberanos em mercados fortes e know-how tecnológico. O nível de desenvolvimento aumentou e, com poucas exceções, as economias latino-americanas estão em aumento. Tudo isto se conseguiu sem os Estados Unidos.
Em resposta, Washington amplificou sua ingerência na região, apoiando golpes de Estado e intentos de golpes de Estado contra presidentes democraticamente eleitos em Venezuela, Haiti, Bolívia, Honduras, Equador e Paraguai, aumentando sua presença militar no hemisfério e intensificando os esforços subversivos para debilitar governos latino-americanos através do financiamento multimilionário de movimentos de oposição. Essas ações isolaram Washington ainda mais na região e foram rechaçadas por unanimidade por todos os governos da América Latina, inclusive os da direita. Um crescente sentimento de “Pátria Grande” foi semeado na região e só se torna mais forte a cada ano.
Quando Obama foi eleito presidente e assistiu a uma primeira Cúpula das Américas em Trinidad em 2009, prometeu uma nova relação com a América Latina, baseada na recuperação da influência estadunidense na região. Ele ignorou, ou ignorantemente mal interpretou, as mudanças que haviam tido lugar em toda a América Latina e teve a desfaçatez de apresentar-se ante os chefes de Estado e representantes de alto nível dos governos regionais e dizer a eles que deviam “esquecer do passado” e avançar juntos com os Estados Unidos para novas relações. Sua retórica arrogante relembrou aos povos da América Latina sobre a importância de consolidar e avançar em sua soberania e integração sob seus próprios termos. Nessa cúpula, a maioria das nações, com exceção de EUA e Canadá, condenou o fato de que Cuba continuava sendo excluída da Organização dos Estados Americanos [OEA], unicamente pela influência de Washington. Em 2012, na Cúpula das Américas seguinte, o presidente Rafael Correa, do Equador, se negou a assistir, em solidariedade com Cuba. “O Equador não vai ser parte destas cúpulas até que Cuba esteja incluída”, esclareceu.
Há uns meses, muito antes de Obama e Castro terem anunciado esforços para normalizar suas relações, o governo do Panamá havia tornado público que Cuba seria convidada para a Cúpula das Américas 2015. Cuba indicou que participaria. Esta decisão foi um claro sinal de que a influência de Washington já não reinava na América Latina –inclusive a organização regional criada por Washington para dominar e controlar a região agora se tornou irrelevante.
No entanto, a movida de Obama com Cuba não foi sem consequências imediatas. Se bem que não há dúvida de que a decisão de restabelecer as relações diplomáticas, junto com a libertação dos três cubanos injustamente detidos, é uma vitória enorme e histórica da Revolução Cubana, e uma homenagem a resistência, a dignidade e a solidariedade do povo cubano, os motivos de Obama não são simples.
No dia depois de um discurso presidencial bem elaborado sobre como a política dos Estados Unidos tinha fracassado em Cuba, que reconhecia que o bloqueio e o embargo econômico contra Cuba tinha sido um fiasco, Obama firmou leis para impor sanções contra Venezuela e Rússia. Há poucas dúvidas de que o projeto de lei de sanções contra Venezuela, uma lei absurda intitulada Lei de Defesa dos Direitos Humanos e da Sociedade Civil em Venezuela 2014, foi firmada por Obama para agradar ao pequeno, porém influente grupo raivosamente anticastrista, antichavista e anti-Maduro em Miami, que estava inundado de raiva desde a mudança anunciada com Cuba.
A lei de sanções contra Venezuela é bastante ridícula. Se pretende castigar aos funcionários em Venezuela que supostamente violaram os direitos humanos dos manifestantes antigovernamentais nos protestos que tiveram lugar em fevereiro de 2014. Tendo em conta que a maioria desses protestos era extremamente violenta e que os manifestantes causaram diretamente a morte de mais de 40 pessoas, a maioria seguidores do governo, vítimas inocentes, e forças de segurança do Estado, a imposição de sanções aos funcionários do Estado que exerceram seu dever de proteger os civis é ilógica. Ainda mais irônica é a aprovação desta lei, enquanto centenas de manifestantes contra a brutalidade policial e o racismo estão detidos e seus direitos violados nos Estados Unidos, em mãos das autoridades estadunidenses. E o mesmo Senado que promoveu esta lei contra Venezuela acaba de publicar um informe detalhado sobre a tortura e graves violações de direitos humanos cometidas pela CIA e outros oficiais dos Estados Unidos.
A lei de sanções contra Venezuela vai mais além do congelamento dos ativos de uns poucos funcionários do governo venezuelano e da revogação de seus vistos. Reafirma o compromisso do governo dos Estados Unidos para apoiar –de maneira financeira e política- o movimento contra o governo em Venezuela que atua fora do marco democrático, e autoriza a elaboração de uma estratégia de propaganda contra o governo venezuelano. Tudo isto parece com a mesma política fracassada contra Cuba que o próprio Obama denunciou. Então, por que impor a mesma contra Venezuela?
Satisfazer a comunidade em Miami é uma das principais razões. Obama necessita da mudança na política para Cuba a fim de salvar seu frágil legado. Como o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, Obama esperava que seu legado ia ser o fim das tensões raciais e do racismo institucionalizado no país. No entanto, tem ocorrido o contrário durante sua administração. As tensões raciais se encontram num máximo histórico. Massivos protestos têm explodido em todo o país contra a brutalidade policial nas comunidades negras e as injustiças que sofrem no sistema legal dos Estados Unidos. Crimes raciais aumentaram e o povo está irado. A “mudança” que Obama prometeu não chegou e não se lhe perdoará por não cumpri-la.
A reforma de saúde de Obama causou um impacto medíocre e ainda se enfrenta sérias ameaças do Congresso republicano, que voltou ao poder com toda sua força, ganhando a maioria em ambas câmaras graças a uma base democrata descontente. Enquanto tenha tomado algumas decisões executivas em matéria de imigração, Obama não conseguiu aprovar uma reforma migratória profunda e provavelmente nunca o fará depois de perder a maioria democrata na legislatura. Ainda que tenha retirado as tropas estadunidenses do Iraque, como havia prometido, outro grupo terrorista tomou o controle de uma parte significativa desse país, o que tornou praticamente inútil o investimento multibilionário para levar a democracia ao Iraque. Quanto ao Afeganistão, Obama aumentou a presença militar estadunidense e incrementou o orçamento em mais de um bilhão de dólares, convertendo-o no mais longo conflito militar da história estadunidense, e um dos mais vultosos. Trouxe mais guerra ao Paquistão, Iêmen e a África, e destruiu a Líbia, enquanto tem financiado e armado terroristas na Síria para demolir esse país também. E, para não faltar, Obama reativou a Guerra Fria com a Rússia.
Em geral, o legado de Obama não deixa nada que desejar. Ele falhou em casa e criou o caos no estrangeiro, e Cuba é seu salvador. Agora, Obama será relembrado na história como o presidente que pôs fim à política externa dos Estados Unidos mais disfuncional, prejudicial e sem sentido. Ele será recordado por não somente construir pontes com Cuba como também com toda a América Latina, o que seria um legado muito nobre e digno se fosse certo.
Cuba não foi uma verdadeira ameaça para os Estados Unidos –se alguma vez o foi- por um tempo muito longo. Porém, Venezuela, devido a suas grandes reservas de petróleo, sim, é. Os EUA têm que controlar os 300 bilhões de barris de petróleo de Venezuela com o objetivo de garantir sua sobrevivência a longo prazo, e sem um governo servil no poder isso não é possível. A política dos Estados Unidos para a Venezuela tem sido a mesma desde que Hugo Chávez foi eleito pela primeira vez em 1998 e se negou a ceder aos interesses dos EUA: destruir a Revolução Bolivariana e arrancá-lo do poder. A mesma política existe, com efeito, contra o governo de Nicolás Maduro.
Ao tratar de isolar Venezuela e Rússia com sanções e paralisar suas economias, Washington crê que pode asfixiar as crescentes relações da Rússia com a América Latina e neutralizar a influência regional de Venezuela. O plano consiste em intervir e preencher o vazio com a influência financeira e política dos Estados Unidos. E Washington pensa que, ao estender a mão a Cuba, o resto da América Latina será seduzido suficientemente para dar as boas-vindas à dominação estadunidense.
Cuba pode ser o salva-vidas de Obama, porém o barco se foi. As nações latino-americanas condenaram acachapantemente as sanções dos Estados Unidos contra Venezuela e pediram que sejam revogadas. Obama pode pensar que ele pode sacrificar a Venezuela com a finalidade de salvar seu legado mediante a relação com Cuba, porém está equivocado. A mesma solidariedade que as nações da América Latina expressaram a Cuba por mais de 50 anos também está presente com a Venezuela. A Pátria Grande não se deixa enganar pelos duplos padrões dos Estados Unidos. Desde há muito tempo a América Latina tem expressado seu desejo de ter uma relação madura e respeitosa com Washington. Os EUA nunca serão capazes de fazer o mesmo?

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Equipe ANNCOL - Brasil


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