quinta-feira, 20 de novembro de 2014

De Lilith, da rebeldia e das mudanças

Por Gabriel Ángel
Segundo lendas antigas, pouco difundidas entre nós, Adão teve uma primeira mulher chamada Lilith, com a qual definitivamente não pôde conviver porque ela sempre queria impor sua vontade. Seu problema adquiriu dimensões maiores quando ela exigiu ir sempre por cima em suas relações sexuais. A grave contradição obrigou à intervenção divina.

Anjos enviados por Jehová se apresentaram ante ela para manifestar-lhe que era sua obrigação obedecer a vontade de Adão, argumento que ela não aceitou. Passaram então a explicar-lhe que era uma disposição de Deus, ao que a mulher respondeu dignamente que não estava ali para cumprir ordens de ninguém, muito menos a um Deus. O final pode ser imaginado.

Lilith terminou devorada pela terra e passou a representar a encarnação de todos os vícios e maldades, muito ao gosto das religiosidades hebreia e cristã. Como símbolo da rebeldia da mulher, estava destinada à condenação. Nenhuma conduta desprezível deixou de lhe ser atribuída, desde as mais infames perversões sexuais até a de roubar e alimentar-se de crianças.

Mitos milenares como esse dão conta de como, desde os inícios da chamada civilização, com sua carga de opressão social e dominação política, os poderes estabelecidos dedicaram boa parte de seus esforços à demonização dos que se atrevem a pronunciar-se contra eles. Lilith encarna muito mais que a rebelião da mulher contra a opressão masculina, representa a eterna luta da humanidade contra os poderes fundados na obediência cega e na divindade.

A razão e as bondades de Lilith comovem não somente pela firmeza irredutível com que as sustentou, senão que pela forma em que foram massacradas, pela sevícia desatada na difamação de sua memória. Definitivamente, não é certo isso de que a verdade e a razão sempre triunfam. Às vezes, muitas vezes, quase na maioria das vezes, resultam arrasadas e vencidas pela força da sem-razão. No entanto, sempre voltam a brotar e crescer, num eterno renascer impossível de evitar. Se morressem, a humanidade e a vida estariam perdidas para sempre.

Uma dessas tantas Liliths que despertam incessantemente num e noutro lugar da Terra está representada em Colômbia pelas FARC-EP. Basta ver e ouvir os bispos castrenses e capelães das unidades do Exército Nacional bendizendo as aeronaves e as armas das tropas cuja missão é sepultar as guerrilhas, para recordar aos anjos enviados pela divindade para fazer Lilith desistir e castigá-la exemplarmente por sua desobediência.

Quem não escutou ao Presidente Santos, de Londres, identificar-se com a posição do governo britânico, segundo a qual esta é a última, a única e verdadeira oportunidade que as FARC têm para desmobilizar-se e entregar suas armas? Não é a primeira vez que o regime terrorista da Colômbia ameaça do mesmo modo. Matar-nos a todos, destroçar-nos a todos, apunhalar-nos a todos, e não só física, como também política e moralmente a todos. Nenhum se salvará. Sempre o mesmo.

Se se mirar bem, todos teremos finalmente que abraçar-nos com a terra um dia. Assim que o verdadeiro dilema não consiste em pensar de que modo e quando nos chegará a morte, senão de que modo e a que causa os seres humanos dedicamos a vida.

A Grã-Bretanha se chamou alguma vez Império porque seu poderio militar e econômico se estendeu alguma vez pela África, Índia, sudeste da Ásia, Oceania e boa parte da América. Milhões de seres humanos foram submetidos de modo brutal pela força, com o único propósito de saquear de seus territórios as riquezas que deram brilho ao Reino Unido. O Príncipe de Gales e o Primeiro-Ministro inglês ainda falam como se nada houvesse mudado. Estão errados.

Assim sucedeu também com o Império Espanhol, ao qual seus admiradores aplaudiam porque sobre suas extensões o sol nunca terminava de pôr-se. Bourbons e Rajoys esquecem que essas velhas glórias alimentadas pela escravidão e pelo genocídio desapareceram com a passagem dos exércitos patriotas de San Martín e Bolívar.

O Presidente Santos tampouco o adverte, quando se escuda neles buscando amedrontar as FARC. Faz propositadamente, para dissimular que seu real respaldo vem de mais perto, dos Estados Unidos, o império que estende sua mão ensanguentada ao regime colombiano, do mesmo modo que o fez no passado com Trujillo na República Dominicana, Batista em Cuba, Pinochet em Chile, e muitos outros tiranos do continente.

Pouco ou nada resta de tais ditaduras, posto que os povos conseguiram, por fim, livrar-se delas. E hoje apontam ao estabelecimento uma ordem completamente diferente.

Por isso, não se pode dizer que sejamos as FARC as fracassadas. Ainda que o digam uma e mil vezes, como fazem diariamente e repetem alvoroçadamente nos grandes meios de desinformação e da calúnia. Quando em Havana se busca por nossa parte uma saída pacífica e democrática à longa confrontação, mais recrudesce a abundância de infâmias a atribuir-nos. Uma solução política como a proposta por nós significará sua derrubada.

Um verdadeiro e silencioso estremecimento se produz no mundo de hoje. Algo está passando. Os velhos impérios morreram e o atual não está em seus melhores dias. Seu sonho de Novo Século Americano faz águas a seus pés. Já não podem controlar tudo como queriam. Apesar de suas mil bases militares dispersas pelo mundo. Apesar de seus mísseis, drones e forças especiais. Agora, até o Papa Francisco lhes resulta surpreendente. Condena o capital, a exploração e a guerra.

É como se Deus começasse a ver que a razão estava do lado de Lilith, que a razão pertence aos povos rebeldes e não aos poderes estabelecidos. Que há que repensar as coisas. Em boa hora.

Montanhas de Colômbia, novembro de 2014.
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Equipe ANNCOL - Brasil

Um comentário:

  1. Mais de 50 anos de vida e morte

    as vezes mais morte que vida

    para a vida triunfar sobre a morte

    e essa mulher revoltosa

    insiste,persiste, resiste

    apesar de todos os matizes

    da repressiva ação governista.

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