Por Horacio Duque Giraldo
A explosão de outra crise [os antecedentes estão referidos ao naufrágio de uma reforma ao sistema judicial no ano de 2012 e aos escândalos permanentes no Conselho da Judicatura] no aparelho judicial colombiano com o caso do paramagistrado uribista Pretel, envolvido com sua mulher numa cadeia de situações de corrupção e despojo de terras a campesinos de Urabá, não é mais que o reflexo da crise generalizada do sistema de dominação política da camarilha oligárquica que controla o Estado colombiano.
A crise e o colapso da justiça é similar à da saúde sitiada pelos bandidos, a da educação universitária convertida no pior dos negócios, como vimos no caso da U de San Martin, a dos militares com os “falsos positivos”, a da economia com a queda dos preços do petróleo, a da corrupção em municípios e estados onde há uma cascata de saqueios aos dinheiros públicos, a dos partidos políticos, a do sistema eleitoral penetrado pela criminalidade, a das cidades arruinadas pelo neoliberalismo, a do campo sitiado pela violência, a dos meios de comunicação dominantes infestados de mentiras e promotores da investida propagandística e ideológica, a de Transmilenio e a mobilidade em Bogotá, enfim, a crise do poder de umas elites contrárias aos interesses das maiorias nacionais afetadas pela pobreza, a miséria e a negação estrutural dos direitos humanos.
Com esse panorama, não resta mais alternativa que recorrer à caixa de ferramentas de Gramsci para esclarecer com o pensamento crítico o que é isto, para onde marcha o campo político da sociedade e quais são as saídas apropriadas para formular alternativas democráticas e revolucionárias, na perspectiva do socialismo e do poder popular.
Antonio Gramsci definiu, para situações como a que hoje vivemos, o conceito de “crise orgânica”. Se trata desses momentos históricos em que as forças dominantes fraturam as relações entre a sociedade e o Estado, entre a economia e a política, e não podem exercer sua direção do modo habitual.
Porém, longe de simplismos, propomos aprofundar um pouco mais no significado da “crise” e para isso convém que examinemos aqueles textos nos quais mais direta e explicitamente Gramsci analisa tal situação crítica e problemática e que nos entregam luzes para interpretar a conjuntura colombiana.
Gramsci fixa em suas reflexões alguns elementos fundamentais de uma teoria da “crise orgânica”.
Primeiro elemento. Com o conceito de “crise” Gramsci identifica uma fase histórica complexa, de longa duração e de caráter mundial, e não um ou mais acontecimentos que sejam as manifestações particulares dela. O conceito de crise define, com efeito, aquilo que habitualmente se denomina “período de transição”, isto é, um processo crucial no qual se manifestam as contradições entre a racionalidade histórico-política dominante e o surgimento de novos sujeitos históricos portadores de inéditos comportamentos coletivos, que, no nosso caso, são os potentes movimentos sociais, um dos quais é a resistência campesina revolucionária contra a violência terra-tenente, encarnada nas Farc.
Se trata de um processo –escreve Gramsci- que tem muitas manifestações e no qual as causas e os efeitos se complicam e se superpõem. Se pode dizer que a crise como tal não tem uma data de começo senão só de algumas manifestações mais clamorosas que costumam identificar-se com a crise, errônea e tendenciosamente. Toda a pós-guerra é crise, com intentos de evitá-la que algumas vezes têm êxito neste ou noutro país, nada mais. Para alguns, e talvez não erroneamente, a guerra mesma é uma manifestação da crise, inclusive a primeira manifestação da crise.
Em primeiro termo, deve-se notar que a “grande guerra”, ou seja, a primeira guerra mundial, dadas suas dimensões, manifesta o caráter mundial da crise mesma. O caráter mundial da crise é destacado por Gramsci naquela passagem em que se pode escapar dela; ilusão que deriva do fato que não se compreende que o mundo é uma unidade, se queira ou não se queira, e que todos os países permanecendo em certas condições estruturais passarão por alguma “crise”.
O segundo elemento consiste na identificação dela como processo que envolve ao conjunto da vida social, razão pela qual não pode ser reduzida a seus aspectos particulares: crise financeira, crise de autoridade, crise comercial, crise produtiva, crise judicial, etc. É difícil nos fatos separar a crise econômica das crises políticas, ideológicas etc.
É com o conceito de crise orgânica que Gramsci define uma crise histórica global. Ele contrapõe o conceito de crise orgânica ao conceito de crise conjuntural [como a judicial]. Uma crise conjuntural não é de ampla dimensão histórica e se apresenta como ocasional, imediata, quase acidental, diz, e está determinada por fatores “variáveis e em desenvolvimento”. Uma crise de caráter orgânico, por outro lado, afeta aos grandes agrupamentos mais além das pessoas imediatamente responsáveis e mais além do pessoal dirigente; neste caso “se verifica uma crise que amiúde se prolonga por décadas”. Esta duração excepcional significa que na estrutura se revelaram [amadureceram] contradições irremediáveis, ainda que as forças políticas que atuam em ordem à conservação e defesa da mesma estrutura se esforçam por sanar em certos limites e superar, com reformas imanentes e retoques cosméticos, como os 5 que agora Santos propõe para a crise da justiça.
As crises [conjunturais ou orgânicas] se manifestam no terreno do mercado determinado; Gramsci entende por mercado determinado determinada relação de forças sociais numa determinada estrutura do aparelho de produção, relação garantida, ou seja, feita permanente, por uma determinada superestrutura política, moral, jurídica.
Porém, que é o mercado determinado e por que coisa está determinado? Está determinado pela estrutura fundamental da sociedade em referência, e então será preciso analisar esta estrutura e identificar nela aqueles elementos [relativamente] constantes que determinam o mercado etc., e aqueles outros “variáveis e em desenvolvimento” que determinam as crises conjunturais, até que também os elementos [relativamente] constantes sejam modificados produzindo-se a crise orgânica.
Escrevendo especificamente sobre a “grande crise”, Gramsci assinala que cada vez mais a vida econômica veio concentrando em torno a uma série de grandes produções massivas, e estas são as que estão em crise: controlar esta crise é impossível precisamente por sua amplitude e profundidade, que chegaram a ter tais dimensões que a quantidade se converte em qualidade, ou seja, há crise orgânica e não só conjuntural.
Quando Gramsci destaca o caráter orgânico da crise, toma distância a respeito da associação que se faz comumente entre o conceito de crise histórica global e das situações de estancamento ou depressão econômica.
Outra questão vinculada com a anterior –escreve- é a de ver se as crises históricas fundamentais estejam determinadas imediatamente pelas crises econômicas. Se pode excluir que, por si mesmas, as crises econômicas imediatas produzam acontecimentos fundamentais, que é a tentação de alguns com a crise econômica em curso devido à queda dos preços do petróleo e seus efeitos fiscais.
A estas considerações, faz seguir o exemplo da grande crise de 1789 na França: ela se desenvolve num período em que a situação econômica era bem mais boa imediatamente, pelo qual não se pode dizer que a catástrofe do Estado absoluto se tenha devido a uma crise de empobrecimento. A ruptura do equilíbrio de forças não sucede por causas mecânicas imediatas de empobrecimento do grupo social que tinha interesse em romper o equilíbrio e que, de fato, o rompe [a classe burguesa], senão que sucede no contexto de conflitos superiores ao mundo econômico imediato, conectados ao “prestígio” de classe [interesses econômicos futuros], a uma exasperação do sentimento de independência, de autonomia e de poder. A questão particular do mal-estar ou do bem-estar econômico como causa de novas realidades históricas é um aspecto parcial da questão das relações de forças em seus diferentes graus, nos enfatiza Gramsci.
A crise orgânica não é, pois, nem uma crise puramente econômica nem uma crise especificamente política, ela consiste precisamente na contradição entre as relações econômicas existentes e as relações políticas emergentes, entre economia e política, entre “condições” e “iniciativas”, entre estrutura e superestrutura.
Em estreita relação com este segundo elemento, se apresenta o terceiro elemento da teoria da crise orgânica:
“Uma das contradições fundamentais é esta: que, enquanto a vida econômica tem como premissa necessária o internacionalismo, ou melhor, o cosmopolitismo, a vida estatal se desenvolveu sempre mais no sentido do ‘nacionalismo’, ‘da autossuficiência’” etc. Um dos traços mais vistosos da “atual crise” é nada mais que a exasperação do elemento nacionalista [estatal nacionalista] na economia: racionamentos, restrições ao comércio de divisas, comércio equilibrado entre dois países etc.
A crise se apresenta no período em que o capitalismo havia formado um mercado de dimensões mundiais, e portanto se havia criado a possibilidade de que os grupos econômicos dominantes nas nações particulares obtivessem lucros subtraindo-os de outras nações capitalistas; nestas condições, o mercado econômico internacional se constitui como o lugar de competição entre grupos econômicos dominantes nacionais. Sendo o mercado uma determinada relação de forças sociais numa determinada estrutura do aparelho de produção, a conformação do mercado mundial significa: a) que as forças sociais começam a atuar em escala mundial, numa estrutura do aparelho de produção que apresenta uma interdependência crescente entre as particulares estruturas produtivas nacionais; b) que as forças sociais que, enfrentando-se entre si, constituem as relações de força, se torna muito mais complicado pela substancial multiplicação dos contendores.
Nestas condições, os grupos econômicos dominantes, respectivamente unificados nos diferentes Estados nacionais, se defendem uns dos outros através de políticas econômicas nacionalistas, protecionistas.
Me parece –escreve Gramsci- que, fazendo uma análise da crise, se deveria começar enumerando os impedimentos postos pelas políticas nacionais [ou nacionalistas] à circulação: 1) das mercadorias; 2) dos capitais; 3) dos homens [trabalhadores e fundadores de novas indústrias e novas empresas comerciais]. A premissa maior neste caso é o nacionalismo, que não consiste tanto na intenção de produzir no próprio território tudo o que se consome [que significaria que todas as forças são orientadas prevendo-se um estado de guerra], e que se expressa no protecionismo tradicional, senão no tentativo de estabelecer as principais correntes comerciais com determinados países, ou porque são aliados [e portanto se quer sustentá-los e formar de uma maneira mais apta para uma situação de guerra] ou porque se quer destruí-los já desde antes da guerra militar [e este novo tipo de política econômica é o dos “racionamentos”, que parte do absurdo de que entre dois países deva ter um balanço de intercâmbios parelho, e não que cada país possa balançar em paridade só comercializando com todos os países indistintamente].
Este nacionalismo da vida estatal era, pois, resultado direto do internacionalismo da vida econômica [internacionalismo contraditório e parcial, enquanto expressão da ampliação do raio de ação dos grupos econômicos que se unificam somente em nível nacional]. Eis aqui porque a primeira guerra mundial foi a “primeira resposta dos responsáveis” pela crise. E a segunda guerra mundial mostrará depois a insuficiência dessas respostas a esta crise.
A contradição entre o cosmopolitismo da vida econômica e o nacionalismo da vida estatal está, pois, na origem da guerra, enquanto as relações de força a nível internacional [entre as classes dominantes unificadas nos Estados nacionais particulares] não encontravam um lugar de confrontação política, isto é, um lugar de mediação e de recomposição, como poderia ter sido uma instituição estatal supranacional. À falta de uma dialética política das relações de força internacionais, é o momento militar [das relações de força] que se impõe. Neste sentido, a guerra constituiu um substituto de um Estado multinacional, ou seja, um complexo de atividades práticas e teóricas militares [que definem a guerra, o Estado como guerra] em lugar daquele conjunto de atividades práticas e teóricas políticas que faltam em nível internacional, que definem o Estado. Neste sentido, deve-se entender a concepção da guerra como continuação da política com outros meios.
Por isso, deve-se reexaminar a explicação leninista da guerra, segundo a qual a guerra é a luta inter-imperialista pelo domínio dos mercados coloniais, para a subdivisão e nova repartição das colônias.
O quarto elemento da teoria da crise orgânica está implícito nos três elementos já expostos, e consiste na identificação da origem da crise numa mudança global das relações de força entre as classes e os Estados.
“A crise tem sua origem em relações técnicas, ou seja, nas posições de classes correspondentes, ou em outros fatos”. Legislações, subversões etc.? Certo, parece demonstrável que a crise tem origens “técnicas”, ou seja, nas respectivas relações de classes, porém, em seus inícios, as primeiras manifestações ou previsões deram lugar a conflitos de diferentes tipos e a intervenções legislativas que puseram em evidência a crise mesma porém não a determinaram, ou só lhe incrementaram alguns fatores. Esta não é a simples reafirmação do critério teórico-metodológico geral segundo o qual todos os processos históricos são produzidos por e podem ser explicados como conflitos entre as classes; ela, bem mais, resume uma análise histórica específica da “grande crise” e de suas manifestações particulares. Em particular, Gramsci proporciona uma explicação original dos fenômenos da inflação e deflação, da “perturbação” do equilíbrio dinâmico entre a cota consumida e a cota poupada da renda nacional e o ritmo da produção como expressão de mudanças nas relações de força entre as classes e entre os Estados.
Sobre os fenômenos “monetários da crise”: quando num Estado a moeda muda [inflação ou deflação], se produz uma nova estratificação de classes no mesmo país; porém, quando muda uma moeda internacional [por exemplo, a esterlina e, menos, o dólar etc.], ocorre uma nova hierarquia entre os Estados, o que é mais complexo e leva a reduções no comércio e, amiúde, a guerras, isto é, há uma passagem “gratuita” de mercadorias e serviços de um país a outro, e não somente de uma classe a outra da população. A estabilidade das moedas é uma reivindicação, no interno, de algumas classes, e no externo [para as moedas internacionais nas quais se firmaram compromissos] de todos os comerciantes; porém, por que elas variam? As razões são muitas, certamente: 1. porque o Estado gasta demasiado, ou seja, não quer fazer pagar seus gastos a certas classes diretamente, senão que indiretamente a outras e, se lhe é possível, a países estrangeiros; 2. porque não se quer diminuir um custo “diretamente” [exemplo, o salário], senão só indiretamente e num tempo prolongado, evitando conflitos perigosos etc. Em todo caso, também os efeitos monetários são devidos à oposição entre os grupos sociais, que é preciso entender nem sempre no interior do mesmo país em que sucede, senão que em relação com um país antagonista
Sobre o problema do desequilíbrio entre o consumo, a poupança e a produção na “grande crise”, Gramsci compreende, ademais, que, em suas raízes, mais que de um desequilíbrio nas relações entre salários e lucros, se trata do fato que tem ocorrido na distribuição da renda nacional através do comércio e da bolsa especialmente, que se introduziu na pós-guerra [ou aumentou em comparação com o período precedente] uma categoria de exatores/depredadores que não representa nenhuma função produtiva necessária e indispensável, enquanto absorve uma cota imponente da renda.
Se trata, pois, da formação [ou da ampliação mais além de certos limites] de um grupo social “parasitário”, que implica na estruturação de uma composição demográfica irracional. Surge uma crise quando crescem as forças do consumo em comparação com as de produção; porém, não se trata somente de uma questão quantitativa.
A crise existe quando uma função intrinsecamente parasitária [da classe política, burocrática e militar] se demonstra necessária dadas as condições existentes: isso faz com que tal parasitismo seja ainda mais grave. Precisamente quando um parasitismo é “necessário”, o sistema que cria tal necessidade está condenado em si mesmo.
Em nosso caso, bem podemos estar falando do parasitismo da classe política/judicial/militar que despoja a seu bel-prazer todo o excedente controlado pelo Estado e seu governo, com Santos à frente.
Estes processos não dependem naturalmente do desenvolvimento dos mecanismos econômicos, senão que são resultado de projetos políticos que têm em sua base o problema das relações de força entre as classes.
Ainda mais:
Que não se queira [ou não se possa] mudar as relações internas [e tampouco retificá-las racionalmente], aparece na política da dívida pública, que aumenta continuamente o peso da passividade demográfica, precisamente quando a parte ativa nacional, aumentam os parasitas, a poupança se restringe e é desinvestida do processo produtivo e desviada para a renda pública, ou seja, convertida na causa de um novo parasitismo absoluto e relativo.
O quinto elemento da teoria da crise econômica consiste na identificação da ruptura dos automatismos dados e no surgimento de novos comportamentos coletivos, os quais, no entanto, não conseguem expandir-se até o ponto de substituir aos precedentes. Esta é uma situação de contraste entre “representantes e representados”, cujo conteúdo é a crise de hegemonia da classe dirigente, que sucede, ou porque a classe dirigente falhou em alguma grande empresa sua para a qual exigiu, ou impôs pela força o consenso das grandes massas [como a guerra], ou porque vastas massas [especialmente de campesinos e de pequenos burgueses intelectuais] passaram de repente da passividade política a uma certa atividade e expõem reivindicações que em seu conjunto inorgânico constituem uma revolução. Se fala de “crise de autoridade” e ela é precisamente uma crise de autonomia ou uma crise do Estado em seu conjunto.
É uma crise do Estado em seu conjunto, em que a classe dirigente vê posta em tela de juízo sua "autoridade”, seja por um fracasso próprio numa empresa política de envergadura, seja pela mobilização ativa e consciente de amplas camadas sociais antes inativas.
Estas crises de hegemonia são uma luta entre “dois conformismos”. Os velhos dirigentes intelectuais e morais da sociedade sentem que se lhes afunda o terreno sob os pés, se dão conta de que suas “pregações” se converteram precisamente em “pregações”, isto é, em algo alheio à realidade, em pura forma sem conteúdo, em larva sem espírito; daqui seu desespero e suas tendências reacionárias e conservadoras: a forma particular de civilização, de cultura, de moralidade que eles representaram se decompõe e por isto proclamam a morte de toda civilização, de toda cultura, de toda moralidade e pedem ao Estado que adote medidas repressivas, e se constituem num grupo de resistência distanciado do processo histórico real, aumentando, deste modo, a duração da crise, porque o ocaso de um modo de viver e de pensar não se pode produzir sem crise.
Este é o elemento decisivo da teoria gramsciana da crise orgânica. O que permite identificar o papel da crise econômica ao interior da crise orgânica: Se pode excluir que, por si mesmas, as crises econômicas imediatas produzam acontecimentos fundamentais; somente podem criar um terreno mais favorável para a difusão de certos modos de pensar, de expressar e de resolver as questões que implicam todo o desenvolvimento posterior da vida estatal.
Uma crise econômica consiste, com efeito, num desequilíbrio nas relações de forças do mercado determinado tal que debilita os automatismos dominantes nos comportamentos coletivos, isto é, tal que faz surgir comportamentos deteriorados, anômalos [especulações, monopólios, armazenamentos etc.]. Estes comportamentos são de natureza regressiva; no entanto, o enfraquecimento dos “automatismos dados” é aquele que torna possível que novos comportamentos coletivos se elaborem e difundam, isto é, que, frente aos novos problemas, amadureçam novas respostas teóricas e práticas ao interior de certos grupos e organizem sua atividade.
Mais concretamente, se trata de processos de mobilização e de ativação política de determinadas classes, as quais passam da passividade à atividade, do consenso passivo à autonomia política, da fase econômico-corporativa à organização em partidos, e que, enfim, se põem o objetivo da “conquista” do Estado com o objetivo de que os novos comportamentos dos que são portadores se generalizem em toda a sociedade.
Em suma.
A crise orgânica está, pois, no fato de que determinadas classes não se reconhecem mais na vida estatal, se separam dos grupos dirigentes dados, porém, ao mesmo tempo, ainda não conseguem impor-se como novas classes hegemônicas. É a sacudida do “bloco histórico” completo, a crise que abarca tanto a perda da hegemonia como da possibilidade dos dominantes de fazer avançar a economia, afetando a estrutura e a hegemonia criada.
Em palavras de Gramsci, se a classe dominante perdeu o consenso, então não é mais “dirigente”, senão que unicamente dominante, detentora da pura força coercitiva, o que significa que as classes dominadas se separaram das ideologias tradicionais, não creem mais no que acreditavam antes. A crise consiste justamente em que o velho morre e o novo não pode nascer, e neste terreno se verificam os fenômenos mórbidos mais diversos.
Se trata, na crise orgânica da dominação oligárquica, de uma desintegração do bloco histórico, no sentido de que os intelectuais que estão encarregados de fazer funcionar o nexo estrutura-superestrutura se separam da classe a que estavam organicamente unidos e já não permitem que exerça sua função hegemônica sobre o conjunto da sociedade. «A classe dominante perdeu o consenso.» Quer dizer, já não é dirigente, senão que unicamente dominante, detentora de uma força coercitiva pura.
A crise orgânica de uma classe ou grupo social sobrevém na medida em que esta desenvolveu todas as formas de vida implícitas em suas relações sociais, porém, graças à sociedade política e suas formas de coerção, a classe dominante mantém artificialmente sua dominação e impede que a substitua o novo grupo de tendência dominante.
Uma tal crise orgânica bem pode estar provocada pelas grandes massas da população que passam subitamente da inatividade política a uma certa atividade e expressam reivindicações que em seu próprio complexo inorgânico constituem uma revolução. A crise orgânica que se manifesta como desaparecimento do consenso que as classes subalternas acordam à ideologia dominante não podem culminar com o aparecimento de um novo bloco histórico, senão na medida em que a classe dominada fundamentalmente saiba construir, pela mediação orgânica de seus intelectuais, um novo sistema hegemônico dominante capaz de opor-se ao anterior e eficaz para estender-se por todo o âmbito social. Quer dizer, capaz de conquistar a sociedade civil como prelúdio à conquista da sociedade política.
Hoje, o que temos em Colômbia é a forte sensação social de caducidade das velhas instituições em que se assenta o controle político, representadas particularmente no anacrônico e ancilosado poder judicial, o desprestigiado poder legislativo, o corrupto poder legislativo, o corrupto poder executivo e o degenerado poder militar, sem que se salvem outros estamentos como a polícia, os políticos tradicionais e as burocracias sindicais. Evidentemente, não só são objeto do protesto popular os setores da superestrutura política: o são também, entre outros, e isto é novo, os bancos, as empresas privadas, o FMI e suas receitas neoliberais, a OCDE, o que dá à revolta popular um claro sabor anticapitalista.
As velhas e mumificadas instituições da representação política funcionais ao domínio oligárquico, pelo menos tal qual estão concebidas até agora, não resistem à prova dos fatos e são superadas por um povo e uma opinião que já não quer delegar e que projeta organizar-se com fortes doses de autonomia e de rechaço aos poderes constituídos.
São circunstâncias em que o bloco ideológico dominante tende a desintegrar-se e a perder sua capacidade de impulsionar o sistema para adiante, porém conta ainda com forças que podem moderar a crise e impedir um desenlace revolucionário.
Por isso, é necessário definir com clareza a correlação de forças e entender que o sistema de dominação não se constitui a partir da fachada da Casa de Nariño para dentro, senão que se conforma como um conjunto de forças que estão por trás do poder e que se reagrupam quando o “governo democraticamente eleito” perde o consenso e se racha e as massas começam a ganhar o campo político. É então quando aparecem as mancomunações, esses reagrupamentos que se verificam com as cúpulas de poderes em Palácio integrando o gabinete, a Igreja, os sindicalistas, construindo um mentiroso “diálogo de unidade nacional” do qual participam secretamente o FMI, o Banco Mundial, a UE, a OCDE e a Embaixada dos EUA e quando as forças políticas do sistema abandonam suas diferenças secundárias e se organizam à vista de todos como “partido único do sistema” no qual se chafurdam a U, os liberais, conservadores e sindicalistas pelegos.
Um novo sujeito popular.
Porém, também é imprescindível anotar com letras maiúsculas, porque é o fenômeno mais transcendente, que a característica principal da situação é que o sujeito popular massivo que ganha as ruas e o espaço público deixa de aceitar a direção das maquinarias politiqueiras que até ontem simplesmente o representavam.
Uma das características da crise orgânica é que a burocracia dirigente terminou por separar-se da massa; os partidos tradicionais, com a forma de organização que apresentam como empresa eleitoral, com aqueles determinados homens que os constituem, representam e dirigem já não são reconhecidos como expressão própria de sua classe nem de uma fração dela, diz Gramsci, concluindo que o partido termina por converter-se em anacrônico e, nos momentos de crise aguda, desaparece seu conteúdo social e fica como [se estivesse] nas nuvens.
Na crise orgânica, o sistema reforça a presença dos fatores do Estado que não se especializam precisamente nas arquiteturas do consenso ou no exercício cuidadoso da hegemonia cultural, e sim nos instrumentos de exercícios da coerção e corrupção, para o qual tende a territorializar as forças militares, a militarizar as polícias e forças de segurança e a combinar suas ações com as forças repressivas do poder global, como as que giram agora ao redor das bases ianques em nosso território e outras iniciativas militaristas.
A crise não é, e a realidade colombiana assim o confirma, algo surgido da noite pro dia. Se aduba de um leque de elementos de deterioração da dominação oligárquica no tempo e num regueiro de lutas populares que adquirem diversas formas e respondem a diferentes segmentos do sujeito popular, porém que vão se complementando entre si.
Há uma forte recuperação de elementos de consciência coletiva que se encontravam deteriorados por anos de ofensiva neoliberal.
Nas atuais circunstâncias, a função histórica das esquerdas, mais que autoproclamar-se vanguardas, é propender a fortalecer os elementos de autonomia e de cidadania das massas e da constituição de fatores de poder popular assentados no protagonismo do novo sujeito popular.
Há que considerar que nas crises orgânicas os setores dominantes não se paralisam, senão que buscam aproveitar a revolta inorgânica para produzir movimentos reacionários de direita buscando o massacre das mobilizações o e retorno à passividade política.
Por isso se torna decisivo propor nas assembleias e mobilizações populares e em cada circunstância, agora que o momento é propício, a construção de uma contra hegemonia, de um contrapoder, de um novo sistema de instituições que consolidem o direcionamento das forças antagônicas às da dominação.
Se bem que é necessário atuar com rapidez e responder um a um aos acontecimentos, deve-se prever também que a crise, que está aberta, tenha uma duração prolongada como produto dos esforços do bloco dominante por sustentar o regime.
Portanto, será crucial o aspecto da organização popular e sua capacidade para que a diversidade prevalecente possa manifestar-se de maneira unificada nas lutas por um período extenso para dar uma via positiva à espontaneidade e acumular forças. Junto, pois, aos esforços apontados à constituição do sujeito num novo sistema hegemônico, serão decisivas as tarefas de reforço das forças definidamente revolucionárias.
O elemento decisivo de toda situação –e voltamos a Gramsci- é a força permanentemente organizada e predisposta desde longo tempo que se pode fazer avançar quando se julga que uma situação é favorável [e é favorável só na medida em que uma força tal existe e está impregnada de ardor combativo].
Nesse sentido, a iniciativa apresentada desde Havana pela delegação das Farc de convocar uma Assembleia Constituinte soberana pela paz é um elemento que pode unificar todos os setores populares na ideia de uma mudança radical do Estado e do regime social e político na perspectiva de uma democracia ampliada e com justiça social.
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Equipe ANNCOL - Brasil