A popularização da internet e de aparelhos
multimídia massificou a produção de informação e registro de
toda sorte de acontecimentos, relevantes ou não. As redes sociais
abriram espaço para que as pessoas experimentassem novas formas de
se relacionar e se articular em torno de objetivos comuns. Estes
fatores estão mudando a forma com que os cidadãos lidam com a
imprensa, a política, o poder de forma geral.
A entrevista é de Rennan
Martins, publicada pelo blog
Desenvolvimentistas
Este processo de transição e assimilação de uma
nova tecnologia pela sociedade
levanta uma série de importantes questões. Qual o real potencial
da internet? A grande imprensa
realmente perdeu capacidade de influenciar a opinião pública? Como
era e como é a configuração da mídia em nosso país? Que relação
tem a mídia com o poder?
Estas questões tão caras a democracia merecem uma
reflexão que nos auxilie no caminho de inclusão social e
participação política. Para isso, é preciso ouvir os
intelectuais e personalidades que atuaram e atuam no debate público
brasileiro.
Conversei então com Nilson
Lage, jornalista de larga
experiência e professor de obra vastamente citada na academia. Lage
diz que a mídia corporativa é a “essência do poder”.
Considera que a regulamentação dos meios de comunicação é
positiva, mas que não afetará tanto o alinhamento editorial dos
veículos. Enxerga ainda que a imprensa latino-americana é
coordenada desde Miami,
promovendo valores antinacionais e patrocinando a submissão dos
povos aos EUA.
Eis a entrevista.
Quais as principais diferenças entre o
jornalismo analógico e o digital? Que possibilidades a massificação
da internet nos trouxe?
A diferença básica é que a veiculação pela
Internet
eliminou os custos de transmissão (gráfica, eletrônica),
distribuição e arquivamento, permitindo a multiplicação dos
produtores e reduzindo radicalmente a escala de investimentos
necessária a empreendimentos jornalísticos.
A segunda diferença em importância é que,
virtualmente, toda a produção (gráfica, sonora, audiovisual)
concorre para um só equipamento – o computador. Isso permite a
composição dos diferentes media em produtos complexos (a página,
o site, o portal, o aplicativo) dirigidos a uma ou a várias formas
de exposição (em computador, smartphones, tablets, cinemas etc.)
A terceira diferença é que a Internet
abala o conceito antigo de direito autoral, torna-o, em muitos
casos, artifício legal contornável e tende a suprimir a
apropriação de obras antigas e consagradas em novas edições,
reimpressões, regravações etc.; facilita a recuperação de
informação em arquivos e subtrai valor comercial de produtos antes
muito prestigiados, como dicionários e enciclopédias.
Como você enxerga a inserção da internet
e a massa de mídias no debate público? Há mudanças nas
estruturas de poder e hegemonia?
É cedo para dizer.
A mudança de quantidade não configurou, por ora,
qualidade nova. Os veículos tradicionais mantêm a hegemonia,
embora com alguns novos concorrentes.
O sistema de informação pública organizou-se,
historicamente, em todos os níveis, em modelo centralizado (poucos
produtores → muitos consumidores) com redes de malhas que divergem
de pontos bem definidos, baixa interatividade, retorno lento e
respostas estocásticas. Assim funcionam os financiamentos, a
veiculação publicitária, as fontes profissionais etc.
Uma das consequências é que o acesso à informação
primária continua sujeito à mediação de poucos veículos, com
privilégio da mídia tradicional. É mais viável negociar a
informação (troca de informação por informação ou de
informação por outra mercadoria) com poucos agentes, e conhecidos,
do que facultar o acesso a número indefinido de incontroláveis
interlocutores.
Finalmente, a produção de informação de acesso
público é atividade profissional, com sua técnica, ética de
convívio e práticas consolidadas. Constata-se que a aparente
liberdade que a Internet
propicia dá espaço à mistura de verdade e fantasia, constatações
e invenções, mundo real e mundos possíveis, diálogo educado e
insulto; facilita o reingresso de toda sorte de conceitos e valores
abandonados ao longo da História
e que se mantinham recessivos na sociedade.
O risco é uma explosão de entropia que resultará
inevitavelmente em desinformação de massa.
Quanto à relação da imprensa com a
geopolítica. Os conglomerados de mídia corporativa ocidentais
atuam como braços do poder? A guerra de informação é real?
São a essência do poder.
Pode-se afirmar que o domínio da cultura saxônica,
que antes disputava, no nível acadêmico e no mercado de consumo,
com outras fontes – no Ocidente,
principalmente, com a cultura francesa – consolidou-se na etapa
norte-americana (após a década de 1920 e, sobretudo, da Segunda
Guerra Mundial), dada a supremacia
na área da informação.
A retórica do jornalismo americano tornou-se padrão
de objetividade, impondo antagonismos absurdos (como democracia x
comunismo), e ambiguidades surpreendentes (como liberal =
socialista, socialista = comunista ou, no Brasil,
trabalhismo,= comunismo), substituições convenientes
(estrangeiro/internacional) etc.
Seguindo o estilo consagrado pela revista Time
(1922), a combinação de informação objetiva com adjetivação
criativa, metáforas e acumulações de sentido produziu um modelo
de relato-comentário da realidade que se mostra dominante,
principalmente em revistas se informação geral e suplementos.
Através de mecanismos hábeis e de recursos bem
direcionados, transferiu-se a luta política histórica (o conflito
de classes e da distribuição de riqueza no mundo) para o universo
existencial (a relação ente os sexos, as raças, do homem com a
natureza); a escatologia – questão dos fins últimos e causas
primeiras da humanidade da vida, do universo – passou do universo
religioso para o debate partidário, adquirindo extraordinário
potencial de conflito.
Como se dá a relação dos grandes grupos
de imprensa com os governos progressistas latino-americanos?
A grande imprensa, coordenada desde Miami
pela Associação Interamericana de
Imprensa (SIP), por via das associações
nacionais, como a ANJ
– e, de maneira similar, no setor de rádio e televisão (no
Brasil,
Abert) –
é um instrumento (hoje, o principal) de dominação multinacional,
o que determina sua oposição radical ao nacionalismo, ao
desenvolvimento econômico autônomo e à integração regional que
esses governos patrocinam.
Isto se consolidou historicamente com penetração
continental da indústria estrangeira da informação (gravadoras de
música, distribuidoras de filmes etc), a partir da década de 1950,
e com a orientação empresarial das agências de publicidade, em
cuja direção (e na filosofia de trabalho) se concentra a visão
mais cínica e reacionária da sociedade – haja visto o papel que
tiveram, em fatos ainda recentes no Brasil,
expoentes do setor, como Ênio Mainardi
ou Ivan Hassolocker,
o dirigente do Ibad
que ajudou a articular o golpe de 1964.
Impermeável às identidades nacionais, a retórica
publicitária vende cosmopolitismo,
individualismo, racismo, hedonismo, superficialidade, imoralidade
que sequer se assume e, sempre que possível, cultura global amorfa,
sem história e sem pátria. Seu discurso é o da
irresponsabilidade, da autocomplacência e do escapismo.
É tão enraizado isso que dificilmente se imagina
como poderia ser diferente.
Em relação as últimas eleições. Como se deu a cobertura dos fatos políticos? A isenção existiu?
Em relação as últimas eleições. Como se deu a cobertura dos fatos políticos? A isenção existiu?
Claro que não, se considerarmos a cobertura em
geral. Muitos jornalistas se esforçaram para fazer um trabalho
correto, como sempre acontece. Conseguiram, minoritariamente, também
como de hábito, mesmo nos momentos mais difíceis.
Sobre a liberdade de imprensa no país.
Nossos jornalistas têm liberdade de investigar e escrever? Que
poderes mais constrangem os colegas?
A censura empresarial está geralmente introjetada e
se implanta através das estruturas hierárquicas que divulgam as
linhas editoriais, comandam as redações, supervisionam pautas e
avaliam trabalhos. De modo geral, numa espécie de seleção às
avessas, os editores principais dos grandes veículos são
jornalistas não muito brilhantes, mas bastante domesticados, que
operam como via de transmissão das ordens da empresa, assumidas em
geral como normas de sua lavra.
A política das redações varia um pouco, da
relativa estabilidade aparente (em O
Globo, por exemplo) ao estímulo da
competição desvairada entre os repórteres (na Folha),
com traço generalizado e crescente de insegurança que a
concentração empresarial, a equação declinante
empregados/candidatos a emprego e a decadência da mídia
tradicional acentuam.
A liberdade é das empresas, desde que elas se
articulem com os bancos que as financiam e agências que as
sustentam, manobrando verbas públicas e privadas.
É sabido que no Brasil muitos políticos
detêm concessões de rádios e televisão. Quais as consequências
disso? Porque esse assunto tem pouco apelo entre os cidadãos?
Os cidadãos são mantidos na ignorância por um
sistema (não só de comunicação, também educacional) que ordena
os fatos como convém e oculta os que interessa ocultar.
A posse de veículos por políticos – algo mais
generalizado no Brasil
do que em outros países – decorre da origem histórica regional
da imprensa, de um lado, e da estratégia montada pelas redes que se
instalaram no Brasil
com modelos e patrocínio estrangeiro, em particular a Rede
Globo: ela assegurou sua hegemonia ao
articular-se com as oligarquias regionais preexistentes, de que se
originam (ou que representam), em sua maioria, os políticos que
chegam ao congresso.
Nessas eleições muito se falou sobre a
regulamentação dos meios de comunicação. O Brasil precisa dela?
Por que?
Sim. Reduzirá ou eliminará a concentração de
poder na mão da meia dúzia ou menos de famílias que controlam a
informação no Brasil
no plano nacional.
No entanto, não creio que afete radicalmente o
alinhamento dos media. Por muitos que sejam os veículos e as redes
– e por mais que aparentemente estejam competindo – terão traço
comum dominante. É como as rádios FM
da região metropolitana de São Paulo:
são dezenas, como 14 milhões de ouvintes, mas não têm escolha:
oferecem música pop-lixo, música brega-lixo, rock-lixo,
sertanejo-lixo, mpb-lixo, qualquer coisa-lixo porque tocam o que
interessa às gravadoras e por imposição do mercado publicitário,
são impotentes para segmentar o público por padrões reais de
gosto. Cabe aos ouvintes escolher entre um lixo e outro dentre o que
lhe é oferecido ou recorrer ao CD-DVD-pen drive.
Há alguns dias a Comissão
Nacional da Verdade publicou seu relatório final. Poderia nos
dar um testemunho de como foi a ditadura na visão de um jornalista?
Um processo regressivo.
O Brasil
tinha imprensa regionalizada, com correspondente na capital federal
e veículos de todos os estados e principais regiões
metropolitanas.
Havia jornais, revistas, emissoras de rádio e
televisão cobrindo amplo espectro ideológico dentro da normalidade
de uma sociedade capitalista (a imprensa comunista sempre foi
insignificante em termos de público): o trabalhismo de Última
Hora, o nacionalismo classe-média do
Diário de Notícias,
a oposição radical e encasacada do Correio
da Manhã, o catolicismo progressista
(estética e editorialmente) do Jornal
do Brasil, o reacionarismo provinciano
do Estadão,
a picaretagem assumida dos Diários
Associados, o golpismo sistemático de
O Globo, a
criatividade da TV Excelsior
etc.
Os militares – não tanto por interesse deles, mas
por se deixarem convencer pelo inimigo que supunham amigo –
destruíram tudo, e o que havia de liberdade foi quase toda junto.
Hoje em dia vemos toda uma nova geração
dos blogueiros, que praticam comunicação sem formação
específica, muitos deles com amplo sucesso. Que críticas faria a
essas figuras? Que sugestões?
Não creio tanto nessa “falta de formação
específica”. Há os cientistas políticos, os panfletários de
ideias, os humoristas, os pregadores religiosos, os nefelibatas
políticos… Sempre houve. Os que sobreviverem tendem a se
profissionalizar.
--
Equipe ANNCOL - Brasil
anncol.br@gmail.com
http://anncol-brasil.blogspot.com
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