A VIII
Cúpula da União de Nações Sul-americanas (Unasul) realizada em
Guayaquil e em Quito, Equador, é de importância extraordinária.
Nela, inaugurou-se a sede do organismo continental no complexo A
Metade do Mundo da capital equatoriana. A reunião foi também
precedida na quarta-feira (3) por uma conferência magistral em
Guayaquil feita pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva "A
unidade e a integração latino-americana e caribenha: passado,
presente e futuro".
No início da Cúpula, quinta-feira (4), o presidente
do Uruguai, José Mujica, recebeu a presidência pro tempore da
instituição das mãos do presidente de Suriname, Désiré Bouterse,
e foi alvo de uma cálida homenagem por parte do presidente
anfitrião, Rafael Correa, respondendo com um discurso de enorme
repercussão. No encontro, destacou-se que a Unasul é o reflexo do
ideal bolivariano da integração latino-americana e caribenha e
ficou claro o destacado papel da nova América Latina no mundo atual.
Lula avaliou o atual panorama do continente e os
desafios imediatos que devem ser superados através dos mecanismos de
integração. A ideia central de sua fala é que a “América do Sul
e o Caribe têm possibilidades reais de contribuir para uma nova
ordem política e econômica global mais justa, equitativa e
equilibrada” e que nesse caminho o principal desafio é “construir
um pensamento estratégico da América Latina e do Caribe, um projeto
integrador que aproveite sua formidável riqueza histórica, cultural
e natural”. Destacou a necessidade de inovar nos processos
inclusivos para alcançar um verdadeiro projeto de integração na
região, um continente potência com uma população de 600 milhões
de habitantes e um PIB superior aos 5 bilhões de dólares.
Em sua avaliação, é preciso apostar não apenas em
uma integração política e econômica, mas na dos povos da região.
E destacou que a maior integração do continente será possível
quando os povos estiverem envolvidos e superarem as travas
burocráticas.
Neste último aspecto, sua exposição foi de extrema
vivacidade. Dirigindo-se a Ernesto Samper, o ex-presidente da
Colômbia, que está na secretaria-geral da Unasul, enumerou uma
série de exemplos concretos de travas burocráticas de todo tipo que
impediram, em múltiplos casos que detalhou, a execução prática
das decisões adotadas pelos presidentes do bloco. Os exemplos que
expôs foram conclusivos e trouxeram o assunto para a realidade.
O comentário geral é que as palavras do líder do
Partido dos Trabalhadores fortaleceram as bases estabelecidas pelos
que originalmente impulsionaram o órgão regional, os presidentes
Néstor Kircher, da Argentina, e Hugo Chávez, da Venezuela, aos
quais Lula fez menção especial. Ressaltou, neste sentido, que a
integração não é o problema, mas parte da solução; que os
avanços alcançados nessa matéria nos últimos anos foram muitos,
mas que ainda há muito por fazer nesse terreno.
Uma das principais conquistas do processo
integracionista é que, em apenas 10 anos, o comércio dentro do
Mercado Comum do Sul (Mercosul) passou de 15 bilhões de dólares
para 66 bilhões de dólares. Nesse mesmo período, o intercâmbio
comercial entre todos os países latino-americanos e caribenhos
passou de 50 bilhões de dólares para 189 bilhões. Acrescentou que
esses avanços na integração foram além das relações comerciais,
porque agora os empresários de nossos países aprenderam a investir
em países vizinhos, e não apenas vender e comprar.
Outra conquista muito significativa do bloco,
integrado por Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Equador,
Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela consiste na
criação do Conselho Sul-americano de Defesa. “Com tais medidas,
impensáveis para muitos, marcamos um território de soberania, de
diálogo e de paz em nosso continente”, disse Lula. Também indicou
o imediato funcionamento da Escola de Defesa Sul-americana.
No âmbito da política integracionista, ressaltou a
criação da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos
(CELAC) como um espaço de cooperação democrática e sem a presença
dos Estados Unidos e do Canadá. “Agora somos 33 países com mesma
vontade de construir nossos sonhos e possibilidades”, disse,
relembrando que nada disso seria possível sem a chegada de governos
progressistas ao poder na Venezuela, na Bolívia, no Equador, no
Brasil, Uruguai, Argentina, El Salvador, Nicarágua, entre outros
países.
Considerou também que os avanços integracionistas
não estão à altura do potencial da região. Defendeu também
aproveitar de forma conjunta sua enorme riqueza hídrica, por
integrar a rede de gasodutos e oleodutos e as cadeias produtivas por
aumentar a conectividade via banda larga e por colocar em
funcionamento o Banco do Sul. Neste último aspecto, insistiu também
o chanceler equatoriano Ricardo Patiño, que expressou que é urgente
abrir e colocar o Banco do Sul para funcionar.
A jornada de painéis e conferências em Guayaquil,
que incluiu a fala de Lula, fez parte da inauguração oficial da
nova sede da Unasul, no dia seguinte, em Quito. A esse respeito, Lula
manifestou que “a inauguração da nova e permanente sede da Unasul
representa um passo extraordinário para concretizar o sonho de
integração de nossos povos e países” e parabenizou o presidente
equatoriano Rafael Correa por ser um dos principais apoiadores deste
projeto, de modo que “Quito se transforme na capital da
integração”. Lembrou como Kirchner e Chávez contribuíram de
forma ativa para o processo de integração. “Líderes de origem de
países diferentes mostraram espírito de fraternidade e compromisso
com o desenvolvimento e emancipação dos povos da América Latina e
do Caribe. Foram personagens fundamentais no processo de criação da
Unasul, o fortalecimento do Mercosul e a constituição da Celac”.
Defendeu que atualmente os países da América Latina
estão construindo um projeto alternativo ao neoliberalismo baseado
na democracia, no diálogo e na busca por formas mais justas de
desenvolvimento. Em sua opinião, “a crise econômica mundial tem
um efeito inibidor sobre as iniciativas de integração. Como se
tivéssemos que esperar para voltar a tratar da integração. Estou
convencido de que é exatamente o contrário. Quanto mais nos
integrarmos, melhores serão as condições de enfrentar e superar a
crise. Separados somos mais fracos e juntos somos uma potência”.
Fez referência especial à paz a partir do diálogo
pela paz entre o governo a Colômbia e as Farc realizado há dois
anos em Havana, que esteve interrompido e que felizmente já foi
retomado após a libertação do general Alzate e de seus
acompanhantes. Lula afirmou: “Estou convencido de que os inimigos
da paz na Colômbia serão derrotados. A paz será alcançada!”. E
depois de ressaltar os êxitos dos governos das forças de esquerda
em vários países da América do Sul, fez um chamado à consolidação
da região como “continente de paz”.
Em suas palavras: “Este continente, desprezado por
tanto tempo, será o continente onde a paz prevalecerá”.
O “fogo de dentro” de Pepe Mujica
Ao receber a presidência pro tempore da Unasul em
nome do Uruguai, Pepe Mujica fez um discurso fora de série, que deu
a volta ao mundo nos últimos dias. Não apenas por seu conteúdo,
mas por seu tom, caracterizado por sua marca pessoal, seu estilo
direto e reto, sua honestidade, seu profundo humanismo, seu amor às
pessoas. Ele se emocionou diante da homenagem prestada pelo
presidente Correa e foi ovacionado por todo o auditório lotado. Mas
também emocionou os que o ouviram em todo o mundo. É uma figura da
oratória que ficará para a história. A Telesur contribuiu de
maneira significativa para que adquirisse ampla repercussão
internacional. Eu pude escutá-lo integralmente por essa emissora,
assim como o mencionado discurso de Lula.
O presidente Correa elogiou Mujica nestes termos:
“Quando caminha entre as pessoas quase sem escolta ou segurança,
quando a fome aperta e você procura um pão na primeira porta que
encontrar aberta, quando renega as circunstância que não se pode
mudar, quando ajuda na madrugada a arrumar o teto do seu vizinho,
quando ri dos protocolos, quando leva Manuela nos braços, seu
cachorro de estimação que não tem uma patinha e se esgueira entre
os tapetes vermelhos, teu povo te reconhece e se identifica contigo.
Tem razão ao dizer que viver melhor não é ter mais, mas ser mais
feliz. Obrigado por teu exemplo”. E em outro momento: “Quando as
gerações vindouras olharem o passado buscando explicações para
seu presente, indubitavelmente vão encontrar seu nome. Você disse
que o hoje nasceu das sementes férteis de ontem, e nós te dizemos
que amanhã crescerá a semente fértil que você está semeando
neste presente”. Correa também o chamou de “ícone da pátria
grande” e como um “presidente filósofo”, acrescentando que
“queria ter sua juventude, porque para além das idades, a
juventude é um estado da alma”. Concluiu: “Em nome dos 15
milhões de equatorianos e em nome das centenas de milhares de
latino-americanos, queremos te agradecer e te reconhecer”.
A resposta de Mujica foi um exemplo de humildade e
coerência: “Sou um camponês meio atravessado e o único mérito
que tenho é ser um pouco teimoso, duro, basco, persistente e
constante. Não sou um fenômeno e na verdade, os anos que passei na
cadeia foram porque me faltou velocidade. Não tenho vocação para
herói”. E introduziu sua autodefinição: “Tenho sim um fogo
dentro de mim diante da injustiça social. Aquele fogo que tive em
minha juventude é o que nos permitiu chegar até hoje”. Disse
também que “há uma só juventude, e é aquela com que somos
capazes de nos comprometer”.
Dirigindo-se aos jovens, recomendou “lutar para dar
significado à vida”. Nestes termos: “Não desperdicem porque não
podem comprar a vida no supermercado. O importante é caminho”
porque no final da vida “não há um gol, nem um arco do triunfo,
nem odaliscas, nem paraíso. O que há é a beleza de viver no auge e
de querer a vida. Lutem para vivê-la, para dar significado à vida”.
Ao receber a presidência pro tempore da Unasul,
Mujica sinalizou a favor da unidade latino-americana. Pediu que os
governos da região “se preocupassem com as pessoas” por ter
sintonia com eles porque “a política não pode ser conduzida pelo
mercado”. Falou de governos “críveis e comprometidos” que
possam concretizar “a tão esperada união latino-americana”. Mas
advertiu que “haverá integração somente se houver vontade
política, o que depende do compromisso de todos, porque os
obstáculos do mundo são enorme e o passado continua nos apertando”.
Insistiu que “se não entendermos a necessidade de nos unir,
ganharão o jogo e perderemos uma nova oportunidade irrecuperável”.
A integração precisa ser “construída e é preciso se sobrepor às
dificuldades que cada Estado tem em particular. Devemos aprender com
o passado, das derrotas, das prisões, da dívida social que a
América Latina tem”. Pediu “resgate no mundo duas coisas: a paz
e a dignidade da política. É preciso gritar forte: não à
corrupção!”.
A sede da Unasul terá o nome do presidente argentino
Néstor Kirchner, que exerceu a presidência do órgão criado em
2008 até seu falecimento, em 27 de outubro de 2010.
Depois destes acontecimentos, o presidente Mujica
viajou para o México, visitou Cancún (que ratificou uma irmanação
com Punta del Este) e Guadalajara, e participou da Cúpula
Ibero-americana em Veracruz, Simultaneamente, revelou a “Carta
Aberta ao povo uruguaio e a Barack Obama”. Este documento foi
motivado pelo fato de que se anunciou a chegada iminente no Uruguai
de seis pessoas que passaram vários anos detidas na prisão de
Guantánamo, território cubano usurpado pelos Estados Unidos desde o
início do século passado. Trata-se de um cidadão palestino, quatro
sírios e um tunisiano.
A carta aberta de Mujica começa com uma frase do
poeta chileno Pablo Neruda: “La solidaridad es la ternura de los
pueblos'” (A solidariedade é a ternura dos povos), escrita quando
se empreendia a imensa tarefa de evacuar, socorrer e abrigar dezenas
de milhares de republicanos espanhóis após a tragédia da guerra
civil em 1939. O presidente lembrou a tradição do Uruguai pacífico
e pacificador e seu papel na criação de instrumentos internacionais
para a paz. Agora, recorrendo a essa vocação, e por razões
humanitárias inevitáveis, o Uruguai oferece hospitalidade a seres
humanos que sofriam uma clausura atroz em Guantánamo. A carta
destaca o apoio dado aos refugiados de outros países, valorizando
sua solidariedade e a mão estendida de outros povos aos uruguaios na
época da ditadura.
Mujica projeta estes fatos na realidade atual
internacional, e formula um pedido duplo ao presidente Barack Obama:
o fim do bloqueio ao país irmão Cuba, imposto há mais de meio
século, e a libertação dos três lutadores antiterroristas cubanos
Antonio Guerrero, Ramón Labañino e Gerardo Hernández, que
continuam presos nos Estados Unidos há 16 anos. Solicitou a
libertação do lutador independentista porto-riquenho Oscar López
Rivera, preso político nos Estados Unidos há mais de trinta anos.
“'Estamos seguros – conclui – de que estas demandas
insatisfeitas abrirão amplas avenidas para o processo de paz,
entendimento, progresso e bem-estar para todos os povos que habitam
aquela região crucial da Nossa América”.
Os 10 anos da Alba
Nesta resenha de fatos e órgãos que cimentam o
processo de unidade da América Latina, convém mencionar a
celebração dos 10 anos da criação da Alba (Alternativa
Bolivariana dos Povos de Nossa América) que aconteceu na sexta-feira
passada (5) na Sala Maggiolo da Universidade da República.
Participaram os representantes diplomáticos da Bolívia, Benjamín
Blanco; de Cuba, Igor Azcuy; de Equador, Emilio Izquierdo; de
Nicarágua (leitura de uma mensagem do embaixador Mauricio Gelli) e
da Venezuela, Julio Chirino. Como se sabe, integram o órgão também
uma série de ilhas caribenhas: Antígua e Barbuda, Dominica, Santa
Lucía, São Vicente e Granadinas. Os embaixadores dos cinco países
mencionados ressaltaram o grande trabalho realizado pela Alba a favor
da unidade e da integração da América e da solidariedade e
cooperação entre seus povos ao longo desta década transcorrida
--
Equipe ANNCOL - Brasil
anncol.br@gmail.com
http://anncol-brasil.blogspot.com
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