Por Saul Leblon
Quem nunca entendeu porque Cuba ainda suscita tanta
paixão e debate na política do século XXI está vivendo um novo
espasmo de perplexidade.
O reatamento das relações diplomáticas entre
Havana e Washington, anunciado na semana passada, dia 17/12, em
pronunciamento casado de Obama, nos EUA, e Raúl Castro, em Cuba,
tornou-se um dos assuntos mais importantes da agenda internacional,
rivalizando com o derretimento do rublo e o mergulho nas cotações
do petróleo.
Por que Cuba ainda magnetiza, a ponto de ostentar uma
estatura geopolítica dezenas de vezes superior ao seu tamanho
demográfico e territorial?
Digamos que não é comum que um país tenha seu nome
imediatamente associado, em qualquer lugar do mundo, a sinônimo de
audácia, soberania e justiça social.
Tampouco é trivial uma nação ser confundida com a
legenda da bravura e da resistência por mais de meio século.
Todas essas exceções viram regra quando quatro
letras se juntam para formar a palavra Cuba.
A pequena ilha do Caribe, na verdade um arquipélago
de 4.195 restingas, ilhotas e ilhas, soma um território de
apenas 110 861 km² (pouco maior que Santa Catarina).
Os cubanos formam um povo de 11,2 milhões de
pessoas.
Cuba, porém, está a léguas de ser uma simples
ocorrência ensolarada no cardume das pequenas nações.
As quatro letras de seu nome condensam um dicionário
de experiências, de esperanças, de vitórias, de tropeços, de
lições e de problemas no caminho da construção de uma sociedade
mais justa e convergente.
Talvez a mais longeva e atribulada experiência no
gênero trazida do século XX para o XXI.
Isso faz dela uma ponte de múltiplas conexões que singularizam e agigantam a sua presença em um tempo em que a utopia socialista perdeu o seu horizonte de transição. Mas ao mesmo tempo, em que a razão de ser dessa travessia avulta torridamente atual.
Isso faz dela uma ponte de múltiplas conexões que singularizam e agigantam a sua presença em um tempo em que a utopia socialista perdeu o seu horizonte de transição. Mas ao mesmo tempo, em que a razão de ser dessa travessia avulta torridamente atual.
Os picos de desigualdade no capitalismo, e tudo o que
isso denuncia em relação às formas de viver e de produzir em nosso
tempo, são uma evidência dessa teimosa pertinência.
Tome-se o caso dos EUA, para deliberadamente
radiografar o cenário mais favorável da opulência capitalista.
Nunca a desigualdade foi tão aguda. Jamais a
probabilidade de que ela solape as bases da sociedade foi tão
presente.
Não é Fidel Castro quem o diz.
A advertência partiu da contida presidente do
Federal Reserve (Fed), o banco central americano, Janet Yellen.
Os abismos sociais no núcleo central do capitalismo
atingiram o ponto em que, segundo a discreta Yellen, os americanos
deveriam se perguntar se isso é compatível com os valores dos
Estados Unidos.
E uma conferência recente, em Boston, a presidente
do Fed disse que os níveis de desigualdade nos EUA são os mais
altos em um século. “A desigualdade de renda e riqueza estão nos
maiores patamares dos últimos cem anos, muito acima da média desse
período e provavelmente maior que os níveis de boa parte da
história americana antes disso”, afirmou.
Cuba não poderia ser tomada como um contraponto
histórico a esse espiral.
A ilha jamais concluiu a transição para onde
decidiu caminhar em 1960.
Tangido pela truculência imperial norte-americana,
Fidel Castro proclamou, então, a natureza socialista e marxista do
governo.
Um ano antes havia derrubado a ditadura de Fulgêncio
Batista e iniciara uma reforma agrária que intensificou a guerra da
elite local e estrangeira contra o novo regime.
Cuba nunca se propôs a ser um modelo.
Desde o início foi uma aposta.
De olhos voltados para o relógio da história.
Quem já não ouviu a velha glosa segundo a qual ‘se
não existe socialismo em um só país, quanto mais em uma só ilha’?
Nem os irmãos Castro, nem Che, nem nenhum dos
pioneiros que desceram de Sierra Maestra para tomar o poder no
réveillon de 1959 imaginavam desmentir esse interdito estrutural.
A aposta alternativa, porém, tampouco se consumou.
Um punhado de golpes de Estado sangrentos e
preventivos, que tiraram a vida de milhares de pessoas e seviciaram
um contingente ainda maior em toda a América Latina, fizeram dos
anos 60 e 70 um cinturão profilático em torno da grande esperança
cubana.
Todas as artérias que poderiam misturar seu frágil
metabolismo ao corpo vigoroso de uma integração regional
progressista foram cirurgicamente seccionadas.
A ação conjunta das elites, da mídia e dos
exércitos latino-americanos, orientados e auxiliados pela mão longa
do Departamento de Estado e da CIA, foi como se sabe implacável.
Durante meio século o cerco asfixiante –que teve
no embargo econômico iniciado em 1962 a sua fivela mais arrochada--
não cedeu.
A obsessão conservadora contra a aposta cubana,
símbolo de múltiplas transgressões em relação aos valores e
interesses das plutocracias regionais, ficou comprovada mais uma vez
nas eleições presidenciais brasileiras de 2014 .
Em um dos debates mais virulentos da campanha, o
candidato conservador Aécio Neves trouxe a ilha para o palanque.
O tucano acusou o governo da candidata à reeleição,
Dilma Rousseff, de cometer duas heresias do ponto de vista do cerco
histórico à audácia caribenha.
A primeira, o financiamento de US$ 802 milhões para
a construção de um porto estratégico de um milhão de conteiners
na costa cubana de Mariel, a 200 quilômetros da Flórida. A obra,
capaz de transformar Cuba em uma intersecção relevante do comércio
entre as Américas, foi denunciada por Aécio como evidência de
cumplicidade com o castrismo.
Mariel se somou a uma ampla parceria na área da
saúde, igualmente bombardeada. Através dela, mais de 11 mil médicos
cubanos ingressaram no país, onde asseguram assistência a 50
milhões de pessoas. O programa Mais Médicos levou doutores cubanos
a lugares onde profissionais brasileiros não querem trabalhar.
O simbolismo inaceitável pelas elites recebeu o
devido tratamento das falanges de jaleco branco e dos
guardas-de-turno do cerco a Havana.
O reatamento das relações diplomáticas da semana
passada trincou as patas desse discurso.
A calculadora política do conservadorismo operava –e
agia-- ancorada na certeza ideológica de que a ‘ilha’ era
apenas uma ditadura enferrujada, falida, desmoralizada e fadada à
reconversão capitalista.
Jamais uma fonte de lições ao regime de mercado.
Cambaleante, servia à demonização de qualquer
traço de planejamento econômico que viesse afrontar a proficiência
da autorregulação dos capitais.
Morta, jogaria a pá de cal nos resquícios
estatistas e socializantes teimosamente colados à tradição da
esquerda latino-americana.
O vaticínio sincronizava o tempo de vida do regime
ao do metabolismo de Fidel Castro –cujo epílogo antecipado foi
tentado inúmeras vezes pela CIA e fracassou.
Paciência. O câncer, era esse o diagnóstico da
grande Miami instalada na alma das elites locais, faria a implosão
do regime diante da qual os agentes e os mercenários tropeçaram,
desde a desastrosa tentativa de invasão da baía dos Porcos, em
abril de 1961.
O reatamento diplomático entre Havana e Washington
adiciona ar fresco à impressionante resistência daquilo que se
imaginava mais frágil do que tem se mostrado.
Faz mais que isso.
Faz mais que isso.
Agrega um inesperado ruído à transição de ciclo
econômico em marcha na América Latina.
Marcada por dificuldades cambiais e de crescimento,
que parecem devolver o mando de jogo às receitas de arrocho e de
rendição incondicional aos ditames dos mercados, vê-se agora
diante de uma incógnita: Cuba ainda teria algo a dizer ao futuro
regional?
Em edição recente, de agosto deste ano, a revista
New Left Review arrolou dados interessantes sobre a resiliência da
frágil sociedade cubana diante da dupla adversidade imposta pelo
embargo americano e o fim do apoio russo, após o esfarelamento do
bloco comunista.
É inescapável a atualidade da lição embutida nessa travessia.
É inescapável a atualidade da lição embutida nessa travessia.
Por maior que tenha sido a rigidez política de que
se acusa o regime –e até por conta da explosividade que esse
fator unilateral acarretaria-- Cuba só não virou pó graças
ao planejamento público, à organização social e à consciência
política de amplas camadas de sua gente.
Não se trata de mitificar um case de custo humano e
social elevadíssimo. Mas de enxergar na experiência extrema da
vulnerabilidade, o alcance mitigador da variável política,
reconhecida agora no reatamento diplomático norte-americano.
Nesse sentido, o retrospecto da épica caminhada do
povo de Cuba fala aos nossos dias e à realidade que nos constrange.
Ao contrário da presunção que vê no degelo
diplomático o atalho da conversão capitalista tantas vezes
frustrada, a resistência pregressa enseja outras esperanças.
Livre da asfixia econômica, o discernimento político
e social acumulado pela sociedade cubana figura talvez como o mais
experimentado laboratório de ponta da história para resgatar o elo
perdido do debate latino-americano sobre a transição para um
modelo de desenvolvimento mais justo, regionalmente integrado,
cooperativo, democraticamente participativo e sustentável.
Se Cuba desmentir a derrocada de seus valores, dará
inestimável contribuição para fixar o chão firme capaz de
desenferrujar essa alavanca histórica.
Não é pouco. E pode ser muito do ponto de vista do
imaginário e da agenda regional, assediados no momento pelo coro
diuturno da restauração neoliberal.
A épica sobrevivência da pequena ilha, cuja morte
anunciada era um poderoso trunfo conservador, confere a dose de
otimismo para brindar o ano de 2015 como um horizonte em aberto na
história cubana, latino-americana e brasileira.
Abaixo, alguns tópicos do retrospecto criterioso
feito pela New Left Review, sobre o momento mais crítico dessa
caminhada e das lições atuais que ela consagrou:
1. (ao perder o apoio russo nos anos 90) e diante da
‘teimosa recusa’ em embarcar em um processo de
liberalização e privatização, a "hora final" de Fidel
Castro parecia, finalmente, ter chegado;
2.Cuba enfrentou o pior choque exógeno de qualquer
um dos membros do bloco soviético, agravado pelo saldo do longo
embargo comercial norte-americano;
3.A dramática recessão iniciada em 1990 exigiria
uma década para restaurar a renda real per capita anterior à
derrocada do mundo comunista;
4. Sugestivamente, porém, Cuba saiu-se melhor em
termos de resultados sociais, comparada às economias do bloco
comunistas atingidas pela mesma borrasca, mas ancoradas em uma base
econômica menos vulnerável;
5. A taxa de mortalidade infantil em Cuba, em 1990,
foi de 11 por mil, já muito melhor do que a média no leste europeu;
em 2000 ficaria ainda abaixo disso, apenas 6 por mil, uma melhora
mais rápida do que a verificada em muitos países da Europa Central
que haviam aderido à União Europeia;
6.Hoje, a taxa de mortalidade infantil em Cuba é de
5 por mil ; um desempenho superior ao dos EUA,
segundo a ONU, e muito acima da média latino-americana.
7.Não só. A expectativa de vida da população
cubana aumentou de 74 para 78 anos na década de 90, mesmo com a
ligeira alta das taxas de mortalidade entre grupos vulneráveis nos
anos mais difíceis.
8.Hoje, após 53 nos de embargo e 24 de fim do apoio
russo, a ilha ostenta uma das expectativas de vida mais altas
do antigo bloco soviético e de toda a América Latina.
9.Não se subestime as terríveis privações, o
custo humano, econômico e político cumulativos. A solitária
busca de uma luz em um túnel claustrofóbico, década após década,
teve um preço alto.
10. A superlativa dependência da economia cubana em
relação às exportações de açúcar para a Rússia era
proporcional ao estrangulamento da estrutura produtiva cubana
decorrente do bloqueio norte-americano.
11. A conta só fechava graças a uma cotação
preferencial paga pelo Kremlin: uma libra de açúcar enviada à
Rússia gerava US$ 0,42 em receitas a Havana; cinco vezes a cotação
mundial do produto (US$ 0,09);
12. Até a derrocada do bloco comunista, as
importações cubanas equivaliam a 40% do PIB; delas dependiam 50% do
abastecimento alimentar da população e mais de 90% do petróleo
consumido;
13. Mesmo com o permanente racionamento de tudo, de
papel higiênico à energia elétrica, o déficit comercial de
US $ 3 bilhões tinha que ser refinanciado generosamente pela União
Soviética;
14. Essa rede de segurança se rompeu abruptamente em
janeiro de 1990 e sumiu por completo há 23 anos. As receitas
propiciadas pelo açúcar cairiam em 79%: de US $ 5,4 bilhões para
US $ 1,2 bilhão. As s fontes de financiamento externo que
mitigavam o embrago americano evaporaram.
15.Washington viu aí a oportunidade de bater o
último prego no caixão de Havana. As sanções e represálias
comerciais e financeiras contra países e instituições que
facilitassem o acesso de Cuba ao crédito comercial foram acirradas.
Deu certo: enquanto nos países do leste europeu, a transição
pós-Muro (1991-1996) amparou-se em um fluxo de crédito externo da
ordem de US$ 112 dólares per capita/ano, em Cuba esse valor
foi de US$ 26 dólares per capita/ano.
16. O resultado foi um dramático cavalo de pau no
comércio exterior: Cuba caiu de uma das taxas de importações mais
altas do bloco comunista (de 40% do PIB), para uma das mais
baixas (15% do PIB). Todas as tentativas de Havana de diversificar e
ampliar seu leque de exportações foram inviabilizadas pelo embargo
norte-americano.
Alguma surpresa pela gratidão emocionada de Fidel em relação a Chávez, que por anos a fio garantiu um fluxo de petróleo à ilha, na base do escambo, em troca de serviços médicos e sociais?
Alguma surpresa pela gratidão emocionada de Fidel em relação a Chávez, que por anos a fio garantiu um fluxo de petróleo à ilha, na base do escambo, em troca de serviços médicos e sociais?
17. Ainda assim, a penúria foi de tal ordem, que o
manejo puro e simples do racionamento não explica a sobrevivência
do regime até a última quarta-feira (17/12) quando Obama e Raúl
Castro anunciaram o reatamento das relações diplomáticas.
18. Quando o ferramental econômico já não
respondia mais e patinava em círculos, Havana viu-se diante de duas
escolhas: render-se ao lacto purga ortodoxo e rifar a ilha numa
apoteótica rendição capitalista, ou apostar no seu derradeiro
trunfo: a resposta coletiva liderada pelo Estado, ancorada em uma
longa tradição de planejamento, mobilizações de massa, debate
popular e participação das bases nas tarefas nacionais.
19. A opção escolhida instalou uma rotina de
prontidão na ilha, como se a população vivesse permanentemente na
antessala de uma catástrofe natural em marcha.
20. Cortes deliberados em serviços essenciais
treinavam a sociedade para a defesa civil em mobilizações
coordenadas envolvendo fábricas, escritórios, residências,
escolas, hospitais.
21. A segurança alimentar básica foi planejada com
disciplina férrea e mantida em condições de escassez extrema.
Cuba soçobrou, acumulou recuos.
O regime recorreu às forças extremas de sua
organização política e social para enfrentar restrições
equivalentes às de uma guerra, que se estendeu por meio século, a
mais longa de que se tem notícia no mundo moderno.
A sociedade cubana não se desmanchou, nem se rendeu.
É o que nos mostram as pinceladas rápidas extraídas
da New Left.
Sem ilusões.
Cuba continua a ser uma construção inconclusa, que
independe de suas próprias forças para se consumar.
Como tal enseja debate, comporta retificações e,
sobretudo, cobra agendas desassombradas – e não apenas em
Havana.
O reatamento das relações diplomáticas com os EUA
tende a ser um acelerador desse processo.
Mas ao contrário da rendição inapelável prevista
nos prognósticos conservadores, Cuba pode surpreender de novo.
E frustrar seus coveiros, contribuindo para
reinventar a transição rumo a uma sociedade mais justa e libertária
no século XXI.
Nesse sentido, a ilha ainda tem algo de novo a dizer
aos povos latino-americanos. E aos brasileiros, em especial, nesse
momento particular.
A ver.
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