terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O aroma da Bolívia de Evo e Álvaro


Autor: Hernando Calvo Ospina (Colômbia/França)
Tradutora: Urda Alice Klueger (Brasil)



Se o Che nos escolheu para continuar a sua revolução, terá tido seus motivos”, me disse um boliviano repleto de orgulho, em La Paz.”

Os carros são muitos, demasiados. Principalmente os do serviço público. Não dá para entender como não batem uns nos outros. Os transeuntes devemos calcular como passar de uma cal,cada a outra sem se atropelados. Porém ninguém parece se importar. Somente aos que não somos daqui. Alguém disse uma vez que era a “Shangai latino americana”.
Paro para observar. Olho e olho por muitos minutos e comprovo que os índios, grande maioria neste país, não descem da calçada para dar passagem a um mestiço ou branco.
Lembro, faz dois anos, quando vi no parlamento às índias com suas saias típicas e seus chapeuzinhos. Aos operários com suas humildes, ainda que muito limpas roupas. Tive um impacto. É que a cultura ocidental, a “civilizada”, nos ensinou e nos acostumo que num recinto assim só se vai de paletó e gravata. Com saias bem cortadas e saltos altos.
Existe menos pobreza. O que quero dizer é que agora muito poucas crianças e idosos pedem esmola. Há poucos anos não se tinha tranquilidade para almoçar em um restaurante: os pedintes passavam regularmente, pedindo um pouco de comida ou dinheiro. Algumas pessoas se sentiam culpadas por ter o que comer. O normal era que o proprietário do lugar os enxotasse a pau. Nunca vi pedintes com outras caras além de indígenas. Eles, os donos originários destas terras, tinham sido como um lixo que incomoda e só eram braços para trabalhar, desde que chegaram os espanhóis no século XVI. Isso foi mudando a passos gigantescos desde que Evo, o índio, chegou ao governo em janeiro de 2006.
No ambiente da capital e de outras cidades se sente otimismo. Claro, faltam hospitais. E nos que estão sendo construídos, para atender à maioria, faltam médicos: continua sendo elitista a formação médica, como em quase todas as partes do mundo. Desde o alvorecer deste governo começaram a chegar milhares de médicos cubanos. Instalaram-se para trabalhar em lugares remotos, aonde apenas chegava o sol e o ar. Milhares e milhares de bolivianos têm descoberto que existe uma ilha chamada Cuba, e que essas mulheres e homens de uniforme branco os tratam como humanos.
Muitos, muitos deles, nem falar castelhano sabem, porque é em aimara, quechua ou guarani que se comunicam. Línguas milenares, reconhecidas faz poucos anos.
Em La Paz este governo, o do “irmão presidente” construiu um teleférico, o “amarelo”, que é o maior do mundo. Esta semana se inaugura o “verde”, que creio que é maior que o outro. Para os que vivem lá em cima, no município de El Alto, é uma economia de uma hora pra chegar embaixo, a La Paz. Custa somente TRÊS bolivianos todo o trajeto, de quase 30 minutos. É super moderno. Ao olhar-se, cabine após cabine, parece uma invasão de OVNIs. Os paceños, os de La Paz, sentem-se orgulhosos.
E Evo ganhou outras eleições. Todos o esperavam. Foi a grande festa nacional. O mais impressionante foi que arrasou em Santa Cruz, o reduto da oposição, onde aconteceram até atos terroristas, atentados contra a vida de Evo e projetos separatistas. Lá, a maioria são brancos. Vendo na TV os resultados nessa cidade, lembrei da rainha da beleza de TRÊS anos atrás, mais ou menos. A santacruzeña se atreveu a dizer, no concurso de miss universo, que na Bolívia não havia índios. Essa cidade e em Sucre, a capital original do pais, a publicidade e realizada com modelos nacionais, de cor e feições europeias.
Em Santa Cruz muitos industriais compreenderam que reinvestindo os lucros no próprio país poderiam também ganhar. Com Evo está se formando uma burguesia nacional, que reivindica a soberania. Aliada do processo de mudança. E seus empregados e trabalhadores não são semiescravos, e são pagos com justiça.
A imprensa, a que mais vende ainda, a das elites, a que segue adorando e esperando que os Estados Unidos voltem a governar com ela, tem o mesmo discurso que a do Equador e da Venezuela. Penso que seus milionários proprietários investiriam dinheiro se alguns poucos dos seus jornalistas se coordenassem para fazer os artigos de política nacional e internacional. Só haveria que mudar alguns nomes e dados para por no contexto de cada um desses países. Pois os textos são uniformes. O discurso é o mesmo. De qualquer maneira, admiro a esses jornalistas por todos os malabarismos que fazem para dar outra explicação à realidade.
Estive revisando o que propunha a tal oposição. Os bolivianos tiveram razão em lhe dar tal surra de votos. Bem, é que nada propunham. A base do seu discurso era criticar e inventar contra Evo e Álvaro García Linera, o culto vice presidente branco de coração mestiço e guerreiro. Falavam de “mudança”, de “democratizar”, de “servir às maiorias”. E a gente não sabe se deve rir ou ficar em dúvida: se foram os mesmos, ou seus compadres, ou avós, ou bisavós o que dirigiram o país por décadas, quase por séculos, como sua fazenda. Tiveram o país prostrado diante do capital estrangeiro e das decisões da embaixada estadunidense. A Bolívia era, antes de Evo, o segundo país mais pobre do continente, depois do Haiti. Enquanto suas imensas riquezas que têm somente iam para a os Estados Unidos e a Europa.
Lembro quando Evo entrou na casa presidencial, o Palácio Queimado, situado na pequena praça Murillo. Suponho que os funcionários que ali serviam estavam preocupados de que aquele índio sujaria os pisos encerados. Evo queria saber para servia cada escritório. Depois de ver o seu, perguntou pelo que havia justamente ao lado. Não queriam abri-lo. Diziam que deviam pedir autorização para uma pessoa que não era boliviana. Ou também se deveria chamar um escritório que era fora dali. Diante da insistência do novo presidente tinham que abri-lo. Melhor, forçar a porta, porque nenhum boliviano tinha a chave. Nem mesmo o serviço de segurança. Ali não era nada mais nada menos que o escritório da embaixada dos Estados Unidos, mas um escritório particular, de responsabilidade da CIA. Evo, atrevido, ordenou que se chamasse o responsável pela delegação diplomática para que tirasse o escritório ali do palácio. Foi seu primeiro ato de soberania.
Duas nações golpearam o orgulho europeu e tiveram que pagar: Haiti e Bolívia. Os escravos negros africanos se rebelaram no final do século XVIII. Humilharam o poderoso exército francês de Napoleão, declararam a independência do Haiti no primeiro dia de 1804 e declararam o fim da escravidão, três anos antes que a Inglaterra.
Na Bolívia nasceram as maiores revoltas indígenas contra o domínio espanhol. E desde o século XVII. Tupac Katari e sua mulher Bartolina Sisa se levantaram em armas, no final do século seguinte. Foram seguidos por milhares de indígenas. Sitiaram La Paz. Queriam acabar com a escravidão a que estavam submetidos seus irmãos de sangue. Claro, não se chamava escravidão porque os reis espanhóis e o Vaticano haviam decidido, desde o século XVI, que os índios tinham alma, eram humanos. Era o que não tinham os negros africanos. Porém, como havia necessidade de braços para as minas e os campos, puseram outros nomes à escravidão. Depois de muitas batalhas, foram derrotados. Foram esquartejados e exibiram suas partes por muitas regiões , para que os demais soubessem o que aconteceria a cada um se continuassem rebelados. Porém as cinzas continuaram ardendo, e pouco depois explodiram as batalhas em todo o continente contra o domínio espanhol. E europeu em geral.

Desde então, as potências europeias decidiram que os povos dessas nações deviam pagar sua ousadia, seu anelo de liberdade. Condenaram, nos à miséria.
E a Bolívia, com suas minhas de ouro e de prata tornou radiante as nações europeias. Roubaram tanta prata, a custa de milhares de vidas, que se diz que com tal quantidade se poderia construir uma ponte até Sevilha, cidade para onde iam os tesouros roubados.

Ana Rosa, uma pequena mulher que guarda uma biblioteca de informação histórica em sua cabeça, me surpreende quando me conta que o militar Cornéli Savaaedra teve uma decidida participação na Revolução de Maio, que foi o primeiro passo para a independência argentina. Converteu-se numa proeminente figura política, a ponto de chegar a ser um presidente da Primeira Junta de governo das Províncias Unidas do Rio da Prata. Saavedra era um boliviano, nascido em Oyuno, na atual província de Potosi. Um grande detalhe ao qual os argentinos dão pouca importância.
Hoje, com Evo e Álvaro, a Bolívia voltou a ser soberana. A maioria da sua população, a índia, sente que renasce o Império Inca.

Hernando Calvo Ospina é jornalita colombiano, residente na França e colaborador do Le Monde Dipomatique. Seu mais recente livro, traduzido para seis idiomar, é “Cala e respira”, publicado em espanhol pelo El Viejo Topo. Sua página WEB: HTTP://calvospina.free.fr/


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