Autor: Hernando Calvo
Ospina (Colômbia/França)
Tradutora: Urda Alice
Klueger (Brasil)
“Se o Che nos
escolheu para continuar a sua revolução, terá tido seus motivos”,
me disse um boliviano repleto de orgulho, em La Paz.”
Os carros são muitos,
demasiados. Principalmente os do serviço público. Não dá para
entender como não batem uns nos outros. Os transeuntes devemos
calcular como passar de uma cal,cada a outra sem se atropelados.
Porém ninguém parece se importar. Somente aos que não somos daqui.
Alguém disse uma vez que era a “Shangai latino americana”.
Paro para observar.
Olho e olho por muitos minutos e comprovo que os índios, grande
maioria neste país, não descem da calçada para dar passagem a um
mestiço ou branco.
Lembro, faz dois anos,
quando vi no parlamento às índias com suas saias típicas e seus
chapeuzinhos. Aos operários com suas humildes, ainda que muito
limpas roupas. Tive um impacto. É que a cultura ocidental, a
“civilizada”, nos ensinou e nos acostumo que num recinto assim só
se vai de paletó e gravata. Com saias bem cortadas e saltos altos.
Existe menos pobreza. O
que quero dizer é que agora muito poucas crianças e idosos pedem
esmola. Há poucos anos não se tinha tranquilidade para almoçar em
um restaurante: os pedintes passavam regularmente, pedindo um pouco
de comida ou dinheiro. Algumas pessoas se sentiam culpadas por ter o
que comer. O normal era que o proprietário do lugar os enxotasse a
pau. Nunca vi pedintes com outras caras além de indígenas. Eles, os
donos originários destas terras, tinham sido como um lixo que
incomoda e só eram braços para trabalhar, desde que chegaram os
espanhóis no século XVI. Isso foi mudando a passos gigantescos
desde que Evo, o índio, chegou ao governo em janeiro de 2006.
No ambiente da capital
e de outras cidades se sente otimismo. Claro, faltam hospitais. E nos
que estão sendo construídos, para atender à maioria, faltam
médicos: continua sendo elitista a formação médica, como em quase
todas as partes do mundo. Desde o alvorecer deste governo começaram
a chegar milhares de médicos cubanos. Instalaram-se para trabalhar
em lugares remotos, aonde apenas chegava o sol e o ar. Milhares e
milhares de bolivianos têm descoberto que existe uma ilha chamada
Cuba, e que essas mulheres e homens de uniforme branco os tratam como
humanos.
Muitos, muitos deles,
nem falar castelhano sabem, porque é em aimara, quechua ou guarani
que se comunicam. Línguas milenares, reconhecidas faz poucos anos.
Em La Paz este governo,
o do “irmão presidente” construiu um teleférico, o “amarelo”,
que é o maior do mundo. Esta semana se inaugura o “verde”, que
creio que é maior que o outro. Para os que vivem lá em cima, no
município de El Alto, é uma economia de uma hora pra chegar
embaixo, a La Paz. Custa somente TRÊS bolivianos todo o trajeto, de
quase 30 minutos. É super moderno. Ao olhar-se, cabine após cabine,
parece uma invasão de OVNIs. Os paceños, os de La Paz,
sentem-se orgulhosos.
E Evo ganhou outras
eleições. Todos o esperavam. Foi a grande festa nacional. O mais
impressionante foi que arrasou em Santa Cruz, o reduto da oposição,
onde aconteceram até atos terroristas, atentados contra a vida de
Evo e projetos separatistas. Lá, a maioria são brancos. Vendo na TV
os resultados nessa cidade, lembrei da rainha da beleza de TRÊS anos
atrás, mais ou menos. A santacruzeña se atreveu a dizer, no
concurso de miss universo, que na Bolívia não havia índios. Essa
cidade e em Sucre, a capital original do pais, a publicidade e
realizada com modelos nacionais, de cor e feições europeias.
Em Santa Cruz muitos
industriais compreenderam que reinvestindo os lucros no próprio país
poderiam também ganhar. Com Evo está se formando uma burguesia
nacional, que reivindica a soberania. Aliada do processo de mudança.
E seus empregados e trabalhadores não são semiescravos, e são
pagos com justiça.
A imprensa, a que mais
vende ainda, a das elites, a que segue adorando e esperando que os
Estados Unidos voltem a governar com ela, tem o mesmo discurso que a
do Equador e da Venezuela. Penso que seus milionários proprietários
investiriam dinheiro se alguns poucos dos seus jornalistas se
coordenassem para fazer os artigos de política nacional e
internacional. Só haveria que mudar alguns nomes e dados para por no
contexto de cada um desses países. Pois os textos são uniformes. O
discurso é o mesmo. De qualquer maneira, admiro a esses jornalistas
por todos os malabarismos que fazem para dar outra explicação à
realidade.
Estive revisando o que
propunha a tal oposição. Os bolivianos tiveram razão em lhe dar
tal surra de votos. Bem, é que nada propunham. A base do seu
discurso era criticar e inventar contra Evo e Álvaro García Linera,
o culto vice presidente branco de coração mestiço e guerreiro.
Falavam de “mudança”, de “democratizar”, de “servir às
maiorias”. E a gente não sabe se deve rir ou ficar em dúvida: se
foram os mesmos, ou seus compadres, ou avós, ou bisavós o que
dirigiram o país por décadas, quase por séculos, como sua fazenda.
Tiveram o país prostrado diante do capital estrangeiro e das
decisões da embaixada estadunidense. A Bolívia era, antes de Evo, o
segundo país mais pobre do continente, depois do Haiti. Enquanto
suas imensas riquezas que têm somente iam para a os Estados Unidos e
a Europa.
Lembro quando Evo
entrou na casa presidencial, o Palácio Queimado, situado na pequena
praça Murillo. Suponho que os funcionários que ali serviam estavam
preocupados de que aquele índio sujaria os pisos encerados. Evo
queria saber para servia cada escritório. Depois de ver o seu,
perguntou pelo que havia justamente ao lado. Não queriam abri-lo.
Diziam que deviam pedir autorização para uma pessoa que não era
boliviana. Ou também se deveria chamar um escritório que era fora
dali. Diante da insistência do novo presidente tinham que abri-lo.
Melhor, forçar a porta, porque nenhum boliviano tinha a chave. Nem
mesmo o serviço de segurança. Ali não era nada mais nada menos
que o escritório da embaixada dos Estados Unidos, mas um escritório
particular, de responsabilidade da CIA. Evo, atrevido, ordenou que se
chamasse o responsável pela delegação diplomática para que
tirasse o escritório ali do palácio. Foi seu primeiro ato de
soberania.
Duas
nações golpearam o orgulho europeu e tiveram que pagar: Haiti e
Bolívia. Os escravos negros africanos se rebelaram no final do
século XVIII. Humilharam o poderoso exército francês de Napoleão,
declararam a independência do Haiti no primeiro dia de 1804 e
declararam o fim da escravidão, três anos antes que a Inglaterra.
Na
Bolívia nasceram as maiores revoltas indígenas contra o domínio
espanhol. E desde o século XVII. Tupac Katari e sua mulher Bartolina
Sisa se levantaram em armas, no final do século seguinte. Foram
seguidos por milhares de indígenas. Sitiaram La Paz. Queriam acabar
com a escravidão a que estavam submetidos seus irmãos de sangue.
Claro, não se chamava escravidão porque os reis espanhóis e o
Vaticano haviam decidido, desde o século XVI, que os índios tinham
alma, eram humanos. Era o que não tinham os negros africanos. Porém,
como havia necessidade de braços para as minas e os campos, puseram
outros nomes à escravidão. Depois de muitas batalhas, foram
derrotados. Foram esquartejados e exibiram suas partes por muitas
regiões , para que os demais soubessem o que aconteceria a cada um
se continuassem rebelados. Porém as cinzas continuaram ardendo, e
pouco depois explodiram as batalhas em todo o continente contra o
domínio espanhol. E europeu em geral.
Desde
então, as potências europeias decidiram que os povos dessas nações
deviam pagar sua ousadia, seu anelo de liberdade. Condenaram, nos à
miséria.
E
a Bolívia, com suas minhas de ouro e de prata tornou radiante as
nações europeias. Roubaram tanta prata, a custa de milhares de
vidas, que se diz que com tal quantidade se poderia construir uma
ponte até Sevilha, cidade para onde iam os tesouros roubados.
Ana
Rosa, uma pequena mulher que guarda uma biblioteca de informação
histórica em sua cabeça, me surpreende quando me conta que o
militar Cornéli Savaaedra teve uma decidida participação na
Revolução de Maio, que foi o primeiro passo para a independência
argentina. Converteu-se numa proeminente figura política, a ponto de
chegar a ser um presidente da Primeira Junta de governo das
Províncias Unidas do Rio da Prata. Saavedra era um boliviano,
nascido em Oyuno, na atual província de Potosi. Um grande detalhe ao
qual os argentinos dão pouca importância.
Hoje,
com Evo e Álvaro, a Bolívia voltou a ser soberana. A maioria da
sua população, a índia, sente que renasce o Império Inca.
Hernando Calvo Ospina é jornalita colombiano, residente
na França e colaborador do Le Monde Dipomatique. Seu mais recente
livro, traduzido para seis idiomar, é “Cala e respira”,
publicado em espanhol pelo El Viejo Topo. Sua página WEB:
HTTP://calvospina.free.fr/
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