segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Putin: Um discurso histórico

 
Por Atilio Borón

Há discursos que sintetizam uma época. O que Winston Churchill pronunciou no Westminter College, em Missouri, em março de 1946, é um deles. Ali popularizou a expressão “cortina de ferro” para caracterizar a política da União Soviética na Europa e, segundo alguns historiadores, marcou com essa frase o início da Guerra Fria.
Antes, em abril de 1917, um breve discurso de Lênin ao chegar de seu exílio suíço à Estação Finlândia de São Petersburgo, anunciava, ante a surpresa de sua entusiasta audiência animada pelos acordes da Marselhesa, que a humanidade estava parindo uma nova etapa histórica, prognóstico que haveria de confirmar-se em Outubro com o triunfo da Revolução Russa.
Em Nuestra América, um papel semelhante cumpriu “A história me absolverá”, o célebre alegado com que, em 1953, o jovem Fidel Castro Ruz se defendeu das acusações do ditador cubano Fulgêncio Batista pelo assalto ao Quartel Moncada. Nesta linha haveria que agregar o discurso pronunciado por Vladimir Putin a 24 de outubro deste ano no marco do XI Encontro Internacional de Valdai, uma associação de políticos, intelectuais e governantes que anualmente se reúnem para discutir sobre a problemática russa e, nesta ocasião, a preocupante situação mundial.
As três horas consumidas pelo discurso de Putin e seu amplo intercâmbio de opiniões com algumas personalidades da política europeia –entre eles o ex-primeiro-ministro da França, Dominique de Villepin e o ex-chanceler da Áustria Wolfgang Schuessel- ou com acadêmicos de primeiro nível como o grande biógrafo de Keynes, Robert Skidelsky, foi convenientemente ignorado pela imprensa dominante.
O líder russo falou claro, sem meias palavras e abandonando de saída a linguagem diplomática. E mais, no início de seu discurso relembrou a frase de um deles que dizia que “os diplomatas têm línguas para não dizer a verdade” e que ele estava ali para expressar suas opiniões de maneira franca e dura para, como ocorreria depois, confrontá-las com as de seus incisivos interlocutores, aos quais também lhes fez umas quantas perguntas. Discurso ignorado, dizíamos, porque nele se traça um diagnóstico realista e privado de qualquer eufemismo para denunciar a aparentemente irreprimível deterioração da ordem mundial e os diferentes graus de responsabilidade que lhes cabe aos principais atores do sistema. Como disso não se deve falar, e como o mundo tem um líder confiável e eficaz nos Estados Unidos, peças oratórias como as de Putin merecem ser silenciadas sem maiores trâmites.
Um breve comentário no New York Times no dia seguinte, com ênfase em algumas passagens escolhidas com escandalosa subjetividade; algumas notas mais com as mesmas características no Washington Post e isso foi tudo. O eco desse discurso na América Latina, onde a imprensa em todas as suas variantes está fortemente controlada por interesses norte-americanos, foi inaudível. Por contraposição, qualquer discurso de um ocupante da Casa Branca que assegure que seu país é uma nação “excepcional” ou “indispensável”, ou que difame a líderes ou governos que não caem de joelhos ante a ordem estadunidense corre muito melhor sorte e encontra amplíssima difusão na mídia do “mundo livre”. Que disse Putin em sua intervenção? Impossível resenhar em poucas páginas seu discurso e as respostas aos questionamentos feitos pelos participantes. Porém, com o ânimo de estimular uma leitura desse documento, resumiríamos algumas de suas teses, como segue na continuação.
Primeiro, ratificou sem papas na língua que o sistema internacional atravessa uma profunda crise e que, contrariamente a relatos auto complacentes –que no Ocidente minimizam os desafios do momento-, a segurança coletiva está em muito sério perigo e que o mundo se encaminha para um caos global. Opositores políticos queimados vivos no porão do Partido das Regiões pelas hordas neonazistas que se apoderaram do governo na Ucrânia, a derrubada do voo MH17 da Malasya Airlines por parte da aviação ucraniana e o Estado Islâmico decapitando prisioneiros e brandindo suas cabeças pela Internet são alguns dos sintomas mais aberrantes do que, segundo um internacionalista norte-americano, Richard N. Haass, é a decomposição do sistema internacional que outros, situados numa postura teórica e política alternativa, como Samir Amin, Immanuel Wallerstein, Chalmers Johnson e Pepe Escobar preferem denominar “império do caos”. Esta execrável realidade não se pode ocultar com belos discursos e com as armadilhas publicitárias aos quais são tão afeitos Washington e seus aliados. O desafio é gravíssimo e só poderá ser exitosamente enfrentado mediante a cooperação internacional, sem hegemonismos de nenhum tipo.
Segundo, em sua exposição Putin forneceu uma detalhada análise do decadente itinerário transitado desde a pós-guerra até o fim da Guerra Fria, o surgimento do fugaz unipolarismo norte-americano e, em sua curva descendente depois do 11-S, as tentativas de manter a atual [des]ordem internacional pela força ou pela chantagem das sanções econômicas como as aplicadas contra Cuba por mais de meio século, Iraque, Irã, Coréia do Norte, Síria, Costa do Marfim e agora Rússia. Uma ordem que cai em pedaços e, como anunciava o título do Encontro, que se debate entre a criação de novas regras ou a suicida aceitação da força bruta como único princípio organizador do sistema internacional. De fato, nos encontramos ante um mundo sem regras ou com regras que existem porém são pisoteadas pelos atores mais poderosos do sistema, começando pelos Estados Unidos e seus aliados, que dão por desagregada as Nações Unidas sem propor nada em troca.
A Carta das Nações Unidas e as decisões do Conselho de Segurança são violadas, segundo Putin, pelo auto proclamado líder do “mundo livre” com a cumplicidade de seus amigos, criando assim uma perigosa “anomia legal” que se converte em campo fértil para o terrorismo, a pirataria e as atividades de mercenários que ora servem a um e depois acorrem a prestar seus serviços a quem lhe oferece o melhor pagamento. O ocorrido com o Estado Islâmico é paradigmático neste sentido. Terceiro, Putin relembrou que as transições na ordem mundial “por regra geral foram acompanhadas, se não por uma guerra global, por uma cadeia de intensos conflitos de caráter local”. Se há algo que se pôde resgatar do período da pós-guerra, foi a vontade de chegar a acordos e de evitar até onde fosse possível as confrontações armadas. Houve, aliás, muitas, porém a temida guerra termonuclear pôde ser evitada nas duas maiores crises da Guerra Fria: Berlim em 1961 e a dos mísseis soviéticos instalados em Cuba em 1962. Posteriormente, houve importantes acordos para limitar o armamento nuclear. Porém, essa vontade negociadora desapareceu.
O que hoje prevalece é uma política de perseguição, de bullying, favorecida por um hipertrofiado orgulho nacional com o qual se manipula a opinião pública que assim justifica que o mais forte –Estados Unidos- abuse e submeta aos mais fracos. Mesmo que não menciona o dado, no fundo de seu discurso se perfila com clareza a preocupação pela exagerada expansão do gasto militar estadunidense que, segundo os cálculos mais rigorosos, supera o bilhão de dólares [ou seja, um trilhão de dólares], quando, ao desintegrar-se a União Soviética, os publicistas do império asseguraram urbi et orbi que o gasto militar se reduziria e que os assim chamados “dividendos da paz” se derramariam em programas de ajuda ao desenvolvimento e combate à pobreza. Nada disso teve lugar. Quarto, ao declarar-se a si mesmos como vencedores da Guerra Fria, a dirigência norte-americana pensou que todo o velho sistema construído à saída da Segunda Guerra Mundial era um oneroso anacronismo. Não propôs um “tratado de paz”, onde se estabelecessem acordos e compromissos entre vencedores e vencidos, senão que Washington se comportou como um “novo rico” que, embriagado pela desintegração da União Soviética e seu acesso a uma incontestada primazia mundial, atuou com prepotência e imprudência e cometeu um sem-fim de disparates. Exemplo rotundo: seu contínuo apoio a numerosos “combatentes da liberdade” recrutados como aríetes para produzir a “mudança de regime” em governos desafetos e que a pouco andar se converteram em “terroristas”, como os que no 11-S semearam o horror nos Estados Unidos ou os que hoje devastam a Síria e o Iraque. Para invisibilizar tão gigantescos erros, a Casa Branca contou com “o controle total dos meios de comunicação globais [que] permitiu fazer passar o branco por negro e o negro por branco”.
E, numa passagem de seu discurso, Putin se pergunta: “Pode ser que a excepcionalidade dos Estados Unidos e a forma como exerce sua liderança sejam realmente uma bendição para todos nós, e que sua contínua ingerência nos assuntos de todo o mundo esteja trazendo paz, prosperidade, progresso, crescimento, democracia e simplesmente tenhamos que relaxar e gozar? Me permito dizer que não.” Quinto, em diversos momentos de sua alocução e do intercâmbio de perguntas e respostas com os participantes, Putin deixou assentado muito claramente que a Rússia não cruzará os braços ante as ameaças que pairam sobre sua segurança nacional. Utilizou para transmitir essa mensagem uma eloquente metáfora para referir-se, indiretamente, aos planos da OTAN de cercar a Rússia com bases militares, e para responder às inquietações manifestadas por alguns dos presentes acerca de uma eventual expansão imperialista russa. Disse que em seu país se tem grande respeito ao urso “amo e senhor da imensidão da taiga siberiana, e que para atuar em seu território nem se incomoda em pedir permissão a ninguém. Posso assegurar que não tem intenções de transladar-se para outras zonas climáticas porque não se sentiria cômodo nelas. Porém, jamais permitiria que alguém se aproprie de sua taiga. Creio que isto está claro.”
Esta observação foi também uma resposta a uma caracterização muito difundida nos Estados Unidos e na Europa que menospreza a Rússia –e antes a União Soviética- como “um Alto Volta [um dos países mais pobres e atrasados da África] com mísseis”. Sem dúvidas que a mensagem foi muito clara e despojada de eufemismos diplomáticos, em linha com sua confiança na fortaleza da Rússia e sua capacidade para suportar com patriotismo os maiores sacrifícios, como ficou demonstrado na Segunda Guerra Mundial. Disse textualmente: “Rússia não se dobrará ante as sanções, nem será incomodada por elas, nem a verão chegar à porta de alguém para mendigar ajuda. Rússia é um país autossuficiente”. Em síntese: se trata de um dos discursos mais importantes sobre o tema pronunciado por um chefe de estado em muito tempo e isto por muitas razões.
Por seu documentado e descarnado realismo na análise da crise da ordem mundial, onde se nota um exaustivo conhecimento da literatura mais importante sobre o tema produzida nos Estados Unidos e na Europa, refutando nos fatos as reiteradas acusações acerca do “provincianismo” do líder russo e sua falta de contato com o pensamento ocidental. Por sua valentia ao chamar as coisas por seu nome e identificar aos principais responsáveis pela situação atual. Exemplo: quem arma, financia e recruta aos mercenários do EI? Quem compra seu petróleo roubado de Iraque e Síria e assim contribui para financiar o terrorismo que dizem combater? Perguntas estas que nem o saber convencional das ciências sociais nem os administradores imperiais jamais as formulam, pelo menos em público. E que são fundamentais para entender a natureza da crise atual e os possíveis caminhos de saída. E pelas claras advertências que fez chegar aos que pensam que poderão subjugar a Rússia com sanções ou cercos militares, como nos referíamos mais acima. Porém, diferentemente do célebre discurso de Churchill, ao não contar com o favor do império e seu imenso aparato propagandístico camuflado sob as roupagens do jornalismo, o notável discurso de Putin passou despercebido, por enquanto. A cem anos da explosão da Primeira Guerra Mundial e a vinte e cinco da queda do Muro de Berlim, Putin lançou a luva e propôs um debate e esboçou os lineamentos do que poderia ser uma saída da crise. Passou algo mais de um mês e a resposta dos centros dominantes do império e seu mandarinato tem sido um silêncio total. É que não têm palavras nem razões, só armas. E vão continuar tensionando as cordas do sistema internacional até que o caos que estão semeando reverta sobre seus próprios países. Nuestra América deverá estar preparada para essa contingência.
Infelizmente, esse discurso só está disponível em russo e em inglês no sítio web da presidência da Rússia. Uma tradução ao castelhano foi realizada por Iñaki para o blog http://salsarusa.blogspot.com.ar/2014/11/discurso-de-putin-en-valdai.html

A versão revisada e corrigida desse primeiro esforço de tradução do discurso de Putin se encontra disponível em www.atilioboron.com.ar
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