Por
Armando Boito Jr., professor de Ciência Política da
Unicamp
Especial para Escrevinhador
Especial para Escrevinhador
As motivações e os objetivos das campanhas contra a
corrupção que nos últimos anos têm sido a bandeira de guerra do
PSDB e da grande imprensa são vários e nenhum deles é nobre. O
motivo mais óbvio é obter o desgaste político e eleitoral dos
governos do PT. Mas, a coisa não para por aí. Para entender melhor
tais campanhas é preciso fazer uma espécie de sociologia política
do discurso e da prática das cruzadas contra a corrupção,
tratá-los como um fenômeno ideológico que deforma de maneira
interessada a realidade política – o que não significa que o faça
de modo consciente.
Temos de seguir algumas pistas e a primeira delas é a seletividade da indignação moral tucana: nem toda corrupção é denunciada e combatida. Essa seletividade opera com dois filtros.
Temos de seguir algumas pistas e a primeira delas é a seletividade da indignação moral tucana: nem toda corrupção é denunciada e combatida. Essa seletividade opera com dois filtros.
Moral e interesses
O primeiro filtro, e o mais óbvio, consiste em
denunciar apenas e tão-somente os casos de corrupção que envolvem
os partidos adversários, principalmente o PT. A corrupção tucana é
varrida por esses campeões da moralidade pública para debaixo do
tapete. Esse comportamento nos obriga a descartar, de saída, toda e
qualquer motivação ética na ação tucana, se entendermos a ética,
tal qual eles próprios propalam, como um conjunto de valores morais
imperativos desvinculados de interesses materiais “menores”. Não
é verdade, portanto, que os tucanos sejam contra a corrupção.
O segundo filtro, esse raramente notado, consiste em
denunciar os casos de corrupção que envolvem empresas, instituições
e lideranças que desempenham um papel importante na política
neodesenvolmentista dos governos do PT. Não se trata apenas de
desgastar o PT para vencer eleições. Trata-se, na verdade, de
eleger como alvo as instituições que têm sido um instrumento
importante da política econômica e social dos governos do PT.
De fato, a julgar pelos casos rumorosos de corrupção
investigados com sanha que atropela o próprio direito – como ficou
patente no julgamento da Ação Penal 470 pelo STF – e divulgados
com persistência e detalhes inauditos pela grande imprensa,
instituições como o Banco Central, onde imperam os interesses do
grande capital financeiro, seriam verdadeiras vestais do Estado
brasileiro, a despeito das relações incestuosas das sucessivas
diretorias do BC com as diretorias de instituições financeiras
privadas, enquanto a Petrobrás, instrumento central da política
neodesenvolvimentista, seria um antro de larápios.
A oposição tucana, como todos sabem, manifesta-se,
há tempo, na voz de seus mais autorizados dirigentes, contra o
regime de partilha na exploração do petróleo e contra a legislação
que obriga a presença da estatal em todos os poços em exploração.
Os tucanos querem abrir mais a exploração ao capital estrangeiro.
Outro resultado muito apreciado pelo PSDB de um
eventual recuo na posição da Petrobrás na exploração do petróleo
seria o fato de que a redução dos investimentos produtivos da
petroleira brasileira liberaria mais capital para a distribuição de
dividendos aos acionistas privados da Petrobrás.
Em reportagens do jornal Valor Econômico, as vozes
das finanças têm deixado clara sua insatisfação com o programa
“muito ambicioso” de investimentos (produtivos) da Petrobrás que
desviam a receita da empresa da nobre tarefa de encher o bolso dos
acionistas privados. As finanças preferem o modelo tucano de gestão
da Sabesp: farto na distribuição de dividendos aos acionistas
privados e minimalista no investimento para captação, conservação,
tratamento e uso racional da água.
Ademais, os tucanos têm se manifestado, e de modo
insistente, contra a política de conteúdo local nas compras da
petroleira brasileira. A Petrobrás tem a obrigação de adquirir e
contratar 65% dos produtos e serviços junto a empresas locais. Essa
política praticamente ressuscitou a indústria naval brasileira.
Fernando Henrique Cardoso jogara a indústria naval na lona.
Após uma sucessão de medidas de abertura comercial,
restrição de financiamento e outras, Cardoso entregou o governo com
o setor naval empregando diretamente apenas 4.000 trabalhadores.
Hoje, os antigos estaleiros brasileiros foram recuperados, criaram-se
estaleiros novos, e o setor oferece 80.000 postos de trabalho.
A política de conteúdo local incomoda muito o PSDB,
esse procurador dos interesses do capital estrangeiro e das empresas
brasileiras integradas esse capital. Seus economistas mais
credenciados contam-nos a seguinte fábula. O objetivo declarado da
política de conteúdo local é estimular a produção brasileira de
navios, plataformas, sondas, equipamentos, serviços de engenharia
etc. Contudo, dizem-nos, o efeito obtido será, num futuro próximo,
o contrário do desejado.
Com a proteção da produção brasileira no sistema
de compras da Petrobrás, as empresas ficam a salvo da concorrência
internacional, perdem o estímulo para inovar e, no médio prazo,
tornam-se obsoletas, sendo levadas ao declínio econômico. Que
felicidade descobrir que a corrupção contaminara justamente o
sistema de compras da Petrobrás, isto é, a política de conteúdo
local!
Os tucanos e a grande imprensa estão, agora, na fase
mais importante da operação política que se assenhorou da Operação
Lava a Jato. Reportagens e editoriais dos jornais O Estado de S.
Paulo e O Globo já estão propondo como solução para a “crise de
Petrobrás” o fim do regime de partilha, o fim da política de
conteúdo local e até a completa privatização da estatal. Com a
Petrobrás exangue em decorrência da “campanha contra a
corrupção”, as petroleiras estrangeiras poderão voltar a reinar
e a indústria naval da Ásia, Europa e Estados Unidos voltará a ter
livre acesso ao mercado brasileiro.
No segmento da construção pesada, o capital europeu
almeja um objetivo semelhante.
Em reportagem publicada no jornal O Estado de S.
Paulo, a Comissária de Comércio da União Europeia, Cecilia
Malmstrom, após rápidas considerações de ordem moral criticando a
corrupção no mercado brasileiro de obras públicas, afirmou que a
União Europeia exige, para fechar um acordo de comércio com o
Mercosul, maior abertura às empresas europeias no processo de
contratação de obras públicas.
A Comissária Cecilia Malomstrom nada disse sobre as
empresas europeias Siemens e Alstom que são rés confessas em
processo que apura a prática de corrupção no sistema de trens e no
metrô de São Paulo sob governos tucanos. O que importa mesmo é que
em 2013 o mercado de obras públicas no Brasil movimentou mais do que
movimentaram os mercados da Índia e da Argentina somados. Se o
judiciário declarar inidôneas as grandes empreiteiras brasileiras,
impedindo sua participação na contratação de obras públicas,
seja qual for o sentimento ou a ideia que anime procuradores e juízes
que vierem a concorrer para essa decisão, a Comissária Cecilia
Malomstrom lhes será grata.
A Petrobrás é um instrumento chave do
neodesenvolvimentismo. Ela é uma empresa estatal gigante que dá ao
Estado capacidade para fazer política industrial e de crescimento.
Em torno dela, giram a indústria da construção naval, a construção
pesada e outros segmentos importantes da burguesia interna
brasileira. O PSDB, como representante do capital internacional e da
burguesia a ele integrada, não escolheu a Petrobrás como alvo por
acaso.
Seguindo essa linha de raciocínio, uma hipótese plausível é que, depois da Petrobrás, chegará a vez do BNDES.
Seguindo essa linha de raciocínio, uma hipótese plausível é que, depois da Petrobrás, chegará a vez do BNDES.
Política e ideologia
Se o que desejam o capital internacional, as empresas
brasileiras a ele integradas, o PSDB e a grande imprensa é a
destruição de um instrumento chave da política
neodesenvolvimentista, porque, então, não vão direto ao assunto?
Por que o longo desvio da “luta contra a corrupção”?
Porque os tucanos estão às voltas com a dificuldade
– típica das forças políticas que representam interesses
minoritários – que consiste em ter de obter apoio popular para
bandeiras impopulares. Eles são obrigados a esconder seus
verdadeiros objetivos e a agitar o programa retórico da ética na
política para poder obter um mínimo de aceitação. Não é uma
tarefa fácil convencer a massa da população de que o melhor a se
fazer seria abrir mão do controle nacional sobre a riqueza do
pré-sal, reduzir a receita da Petrobrás, desidratar o Fundo Social
da Educação e da Saúde proveniente da exploração do pré-sal e
cortar emprego na construção naval.
Para chegar a esses objetivos impopulares são
obrigados a escondê-los, a dar voltas, animando a cruzada contra a
corrupção. A favor dos tucanos só podemos dizer uma coisa. No
geral, eles não fazem isso apenas com o cinismo. É certo que mentem
conscientemente em público e urdem intrigas nos bastidores. Porém,
fazem isso no varejo.
No atacado, eles “acreditam crer” nos grandes
princípios que alardeiam e se deixam iludir pelos personagens aos
quais dão vida na cena pública – o político ético, o gestor
competente, o condottiere da mudança e outros. O fato é que os
tucanos lograram confiscar a justa indignação popular com os
criminosos de colarinho branco para atingir um objetivo que não
interessa aos setores populares, mas, sim, ao grande capital
financeiro internacional e a seus aliados internos.
Para uma análise segura desse caso da Petrobrás
seria preciso estar de posse de muitas informações que não temos.
Dentro de alguns anos, talvez venhamos saber com segurança como é
que foi tomada a decisão de se iniciar a operação que a Política
Federal e a grande imprensa denominam “Lava Jato” (sic). Na falta
de informações, podemos fazer algumas conjecturas.
Algo que não deve ser descartado é a ideia de que
tenha ocorrido uma conspiração orientada por um centro – a
crítica à teoria da conspiração não deve nos levar a negar a
ideia de que há conspirações na história. Por exemplo, um lobby
das petroleiras ou da indústria naval estrangeira obteve apoio de
embaixadas estrangeiras no Brasil para, em festas regadas a champanhe
na capital federal, soprar nos ouvidos de procuradores do Ministério
Público, de juízes ou de delegados da Política Federal a ideia de
criar a operação “Lava Jato” (sic). Podem ter oferecido também
algum estímulo material para convencer esses ilibados senhores da
importância da empreitada. A cruzada contra a corrupção pode
conter na sua origem a própria corrupção
Outra possibilidade é que a operação tenha uma
história mais complexa e tortuosa. Altos funcionários do Estado,
movidos pelo ódio de classe que os indivíduos pertencentes à
classe média abastada nutrem pelos governos do PT, decidem
desencadear a operação.
O trabalho entusiasma juízes, procuradores do
Ministério Público e delegados da Política Federal, todos emulando
Joaquim Barbosa. A animação é tanto maior quando percebem o apoio
amplo e firme que a operação recebe da grande imprensa – que age
como representante do grande capital internacional e das empresas
brasileiras e ele ligadas. Ato contínuo, os tucanos vêm na operação
a oportunidade de ganhar votos e ferir de morte um dos principais
instrumentos da política neodesenvolvimentista do PT.
Terceira possibilidade, os dois caminhos
anteriormente descritos misturam-se de forma complexa.
Conjecturas à parte, algumas coisas são certas.
Primeiro, o PSDB não está preocupado, ao contrário do que afirmam
seus dirigentes, com uma suposta “ética republicana”. Tanto é
assim, que condenam apenas seletivamente a corrupção. Segundo, o
objetivo oculto desse discurso opaco é, ao menos para as forças
mais poderosas envolvidas na cruzada contra a corrupção,
desregulamentar, abrir e privatizar ainda mais a economia brasileira.
Luta popular e corrupção
Dirigentes, parlamentares, ocupantes de cargos
executivos do Partido dos Trabalhadores estão ou estiveram
envolvidos com corrupção – aliás, isso não representa novidade
na história dos partidos de tipo socialdemocrata. O movimento
democrático e popular não deve se calar diante desse fato; deve
assumir, sem hesitação, a luta contra a corrupção. Mas, deve
fazê-lo a seu modo.
Em primeiro lugar, ao contrário do que dizem os
moralistas, a corrupção não é o único elemento a ser considerado
na avaliação de um governo ou de um partido político. O movimento
popular não pode descartar a possibilidade de ter de garantir apoio
a um partido que abriga corruptos – os moralistas da cruzada contra
a corrupção também fazem esse tipo de cálculo, embora não o
digam abertamente.
Em segundo lugar, o movimento popular deve saber que
a corrupção é uma prática endêmica na sociedade capitalista em
decorrência de elementos definidores do próprio capitalismo: a
disputa econômica entre as empresas, a concentração da propriedade
e da renda – concentração que pode ser convertida em influência
política –, da concentração do poder político – que, por sua
vez, pode ser convertida em vantagens econômicas – e em
decorrência, também, do segredo que protege a burocracia de Estado.
Deve saber, portanto, que ao combater a corrupção combate por leis
e instituições que a inibam, mas que não vão erradicá-la. A
corrupção não decorre da mera desonestidade dos ocupantes de
cargos públicos e dos diretores de empresas privadas.
Por último, deve ter claro que o discurso contra a
corrupção e a política que ele estimula estão ligados a
interesses de classe que, no caso dos interesses do capital
internacional e do PSDB, permanecem ocultos. O movimento popular tem
interesse em que sejam investigados e punidos os crimes de colarinho
branco praticados por funcionários da Petrobrás e por diretores de
empresas.
Mas, não pode ignorar que o PSDB e a grande imprensa
estão usando a cruzada contra a corrupção para suprimir leis e
instituições que protegem a economia nacional e para inviabilizar o
apoio crítico que o movimento popular tem dispensado ao Governo
Dilma. O declínio do voto popular em Dilma Rousseff na eleição de
2014 em São Paulo indica que o PSDB alcançou em parte esse
objetivo.
É preciso tirar outras lições desse caso. Ele
evoca a luta por uma Constituinte exclusiva e soberana para reformar
o sistema político. A reforma política, oriunda dessa Constituinte,
poderia, além de proibir a contribuição financeira de empresas a
candidaturas, prever a organização de Conselhos Populares para
supervisionar os processos de licitações e de compras públicas.
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